Maria Amélia Mano
Ida é a moça solitária e sonhadora do pedágio. Trabalha nas idas e vindas, na reinvenção da roda, da rodovia, da máquina, de si, no intervão da pista, no intervalo da velocidade, velocímetro, nas vias, intervidas que se entremeiam, rodeiam, nas interveias que às vezes voam, ventam, povoam, rompem, rugem em ruído. Atrevidas. Atrasadas. Vozes e dias iguais entre motores e rumores. Lidas de dar, receber, deixar passar.
Silêncio, motoristas: facilitem o troco para Ida.
Ida só quer receita de criar asas. Simples asas. Quer escrever pouso e poesia, mas se prende a palavra única, sempre, todo dia, pra se reinventar, sobreviver. Hoje a palavra é arquipélago que tem umas quantas dentro. Tem arco, tem pé, tem lá, tem lã, tem lago, tem ela. Vida de Ida, arrancar inspiração de freio e frio, descortinar aurora em descompasso de neblina, fuligem, cinza céu da solidão de si.
Paciência na demora, motoristas: facilitem o troco para Ida.
Ida sofre, sangra, sabe, segue sem nada, vaga, reza, rega, rege esperança e, num relâmpago, transborda, inunda. Atira ticket, tudo, pare pranto, tanto, canto, concha, cuidado e coração. E verso vem em água de chuva, pane no pedágio. Ida é sereia que tonteia buscando estrela, é semente menina na estrada alagada, é terra firme. Na pista atônita de petróleo, no asfalto úmido de infinitas lágrimas, Ida renasce. Só.
Hoje, mais do que nunca, motoristas, por favor: facilitem o troco para Ida.
Ilustração: Monica Barengo
Texto parte da coletânea Marias e Clarices organizada por Rubem Penz
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