Maria Amélia Mano
Madrugada, susto me espreita. Nenhum sinal de leveza. Escuto o alarde dos gatos nos telhados pedindo que eu pise em brasas pra provar minha fé. Não me arrisco. Nas pausas, costuro silêncios e bordo expectativas com ponto cruz, linha em meada de seda de amoreira amarela, degradé até o coral de coragem. A que preciso ter.
Na juta, no etamine, no cânhamo fino, nascem aves migratórias maduras orientadas pelo sol, pelas estrelas, pelos ventos. Elas nunca perdem rumo. Mas não sou ave. Não sei ver céu, usar bússola. Não sei de norte e nostalgia e peito aperta, pisado por palavras, planos, inventários, receitas, refrões e revoluções. As que preciso fazer.
Tento bordar berro e voz não sai. Linha enrosca, sai da agulha, angústia, perde ponta, ponto, erra, fura dedo e dedal, calo, cria nó em nós. Penso em coisas que nunca pensei. Aquele alguém que sumiu e não percebi, aquele segredo inútil no sótão, aquele demônio preso num frasco de vidro. O tempo que perdi. O que preciso reinventar.
Depois disso tudo, quando amanhecer, te prometo ser outra, separar o importante como quando se joga feijão na peneira. Tirar pedras e grãos podres, manter os bons, fazer caldo grosso, barulho mal educado ao comer, lambuzar mãos e dedos, criar bigodes escuros, grãos nos dentes e rir de mim. O que preciso rir.
Vou coar café, tomar banho de cheiro, por vestido de sonho. Vou iluminar essa manhã e todas as manhãs de amor. As que preciso viver.
Ilustração: Monica Barengo
Texto parte da coletânea Marias e Clarices organizada por Rubem Penz
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