22 fevereiro 2022

Lenta


 Maria Amélia Mano

    Se eu fosse Poeta, não esculpiria anjos ou asas, esculpiria voos, desordenaria paraísos de mansidão e mentira. Teria lâmina e língua afiada em pedra de amolar, vida de aguçar e açucarar, penetrar víscera e uivar na lua cheia do alto do penhasco. Derramaria todo meu uivo uivado e vivido sobre o chão. E (me) inundaria sem estancar lágrima, navegando no meu pranto. Só atracaria em cais de mundo, na exaustão, roendo as cordas das âncoras com os dentes. 

    Se eu fosse Poeta, cuspiria fogo e colocaria em chamas esse mapa falso que muitos têm dos nossos corpos. Mergulharia meus dedos no mel direto do pote e apontaria quem somos e onde estamos e de onde se originam todas as correntezas do mundo. Depois, me lambuzaria de liberdades e desfaria nós das gargantas, esses que nos atam alma e desatam lençóis que usamos pra escapar de torres medievais, derradeiras moradas de tantas. Mães, irmãs, ancestrais, santas, putas. 

    Mas não sou Poeta. Sou uma farsante. Toco campainha do vizinho e fujo. Conto mentiras bonitas em caligrafias caprichadas e inventadas. Só consigo fazer mísero versinho pobre quando choro nua. E como não é qualquer dor que se chora nua, arcando corpo, soluçando, prefiro leveza mais leve que ar. Entrar voando de manhã pela janela ensolarada dos teus olhos e pousar nas tuas pálpebras mornas. E ficar ali, na sombrinha dos teus cílios, leque longo e livre. Lenta, a me abanar. A me espreguiçar.

Ilustração: Monica Barengo
Texto parte da coletânea Marias e Clarices organizada por Rubem Penz

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