12 fevereiro 2024

CADA DIA MAIS

 

 

Foto de Edna Rocha

CADA DIA MAIS

 

Bateu uma insegurança, uma sensação de malfeito, mesmo uma culpa de não ser bom o suficiente, de dar muito menos do que sempre recebeu. Comentou com amigos que sentia este desconforto moral, psicológico, espiritual, que achava que não amava os homens como devia, que se retraía muitas vezes diante da penúria. Buscava ampliar suas ações de ajuda, não negava doações pedidas em nome de boas causas, de mitigar fome, de tratamentos especiais, dava um dia de voluntariado num orfanato cozinhando e lavando chão e banheiros. Fazia compras para cozinhas que alimentavam população em situação de rua. Tinha uma ex-namorada que era Assistente Social de um mega projeto que tinha parceria com a Prefeitura e que vivia solicitando seus préstimos, mas a cada vez se sentia mais confuso e angustiado. Eram muitos os “assistidos”, e os rostos eram recorrentes nas filas de ajuda. Nunca parecia haver solução! Tudo muito paliativo, famílias na rua sem emprego, sem teto, sem educação. Gravidezes sem acompanhamento, muitas vezes com doenças  maternas evitáveis, outras com uso de entorpecentes que ajudavam a mudar a visão do mundo cruel onde estes seres humanos sobreviviam.

 Já não era criança e sua aposentadoria não era muita, pagava suas contas e guardava um pouco num sonho de uma viagem num futuro não muito distante. Sem filhos e agora viúvo, tinha na ex-namorada uma amiga mas o convívio não amainava as dores da sua alma. Ela tinha seu emprego no projeto, lidava com os problemas durante o trabalho e vivia com a família cheia de vigor e alegria. Ele se sentia definhar de compaixão, de culpa e medo do que poderia ser o seu mundo com tanta desigualdade. Queria sanar estas dores, mas só se fosse onipotente, e se sabia limitado. Mas até seus defeitos (que todos têm, se dizia) eram mais pesados pela sua impossibilidade de ser melhor.

 Sob orientação resolveu fazer terapia mas o que gastava nas consultas pesava mais por não estar revestido e investimento no outro. Até que um dia levou isto na consulta e foi agraciado com um comentário confortador: “Se você estiver mais feliz, mais dono de si, mais seguro, isto libertará seu coração para um trabalho melhor com o próximo” . não foi totalmente curativo, mas deixou a culpa do gasto consigo de lado. E... salvou a poupança da viagem que um dia faria.

 E por 3 vezes na semana continuou se dedicando ao trabalho voluntário, colocando o seu fazer na medida do seu poder fazer. E conseguiu seus momentos de gratidão pelo que tinha, sem culpa, e de felicidade sem cobrança. Claro que sabia que recaídas acontecem, mas a ajuda viria.

                                                                                                          Maria Lúcia Futuro Mühlbauer

Escreve às segundas-feiras

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