Ernande Valentin
do Prado
Paulo Freire diz
que o homem nasceu para ser mais, quer mais, precisa de mais. Porém, ser mais
dá um pouco de trabalho e há quem prefira ser menos, mesmo que, em palavras,
nunca ouvi ninguém dizer isso. Nestes tempos, parece que realmente está compensando
ser menor, fazer menos. Claro que Paulo Freire não estava falando do
particular, do individual, mas de uma vocação do ser humano em procurar o belo,
em completar-se, pois sabemos do nosso inacabamento. O que estou dizendo não
contradiz em nada minha crença nos ensinamento de Paulo Freire. Acredito que o
homem nasceu para ser mais, busca mais, quer mais, esforça-se por sem mais,
porém o exemplo que vem de cima, das classes dominantes (e o poder ideológico é
infectante) tem condicionado o modo como muita gente encara a vida e o
necessário para viver ou sobreviver, sobretudo nas classes intermediárias, como
os servidores públicos, por exemplo.
Noite destas estive
debatendo com algumas pessoas sobre o Programa de Valorização dos Profissionais
da Atenção Básica (PROVAB) e sobre as condições de trabalho em que acontece. Algumas
pessoas, bem mais compreensivas do que eu, com outros referencias de vida,
argumentavam que é muito difícil trabalhar no interior, sem infraestrutura, sem
uma gestão consciente e competente, sem internet, sem transporte adequado.
Concordo com tudo, mas fico pensando que a população destes lugares foi
justamente quem patrocinou e continua patrocinando a formação desses
profissionais, ontem na universidade, hoje no PROVAB, com, ao menos, oito horas
semanais para dedicar-se a especialização. É difícil para eles, sem dúvida,
principalmente se comparado com a vida que deveriam ter antes ou a que podem
ter depois, mas e para população que paga e pagou, é menos difícil ver
profissionais formando-se em universidades públicas e não ser beneficiado?
Particularmente
acho uma vergonha um País como o Brasil, com tantas Universidades públicas, com
bolsas de estudo em universidades particulares e até bolsa de iniciação
científica que não inicia em nada ou com pesquisa que não se chaga a lugar
nenhuma, ter que importar Médicos de Cuba (ou de qualquer lugar) para suprir a
necessidade de profissionais.
Minha
experiência com PROVABIANOS, no curso ou no dia a dia não é totalmente boa.
Infelizmente não percebo mudanças qualitativas no fazer e nem no saber da
maioria deles. Não vejo como falha do programa, mas como falha da
implementação, falha na ação que deveria ser transformadora, falha no
acompanhamento. Será que um profissional que passa entre 4 e 6 anos na
faculdade não sabe que não basta apenas trancar-se no consultório e distribuir
solicitação de exames, que é necessário conhecer o território, a vida das
pessoas? Não será questão de vontade ser menor e isso é responsabilidade,
primeiro do indivíduo, mas, sobretudo, de quem, sendo parte do programa,
recebedor de uma bolsa para acompanhar, não o faz de fato, aceita desculpas e o
direito sagrado do profissional em desconsiderar o que o sujeito precisa e
merece?
Em muitos
lugares, o PROVAB não está cumprindo sua função escrita no papel ou no arquivo
digital, mas apenas provendo um profissional despreparado, desmotivado (e
possivelmente domesticado) para o exercício do cuidado com ética, com
compromisso social, com vontade ser mais. Dá para aceitar que isso acontece por
falhas externa tão somente, por uma falha postural do indivíduo que não se vê
como cidadão partícipe de uma sociedade? Será que é preciso que o profissional
seja “vigiado e punido” para no fim dar muito pouco? Em muitas cidades admitem-se as falhas, toleram-se
as falhas, as negligências com suas atribuições, com o cumprimento do horário
de trabalho, com a postura pouco humana e participativa, com a desonestidade,
as falhas de caráter, mas será que deveriam tolerar? Não se está criando uma
geração que consegue alargar a “tolerância”, o jeitinho desonesto, as desculpas
na mesma proporção em que estreita a governabilidade para ser e fazer mais e
melhor pelo simples fato de que pessoas merecem mais pelo simples fato de ser parte
da comunidade humana?
Em determinado
local onde trabalhei, tive dificuldade em conseguir profissionais com vontade
de ser mais (e não apenas Médicos, mas todos: Enfermeiros, Dentista, Técnicos
de Enfermagem, ACD, ACS), não que estes profissionais motivados e sabedores de
seu inacabamento não existam. Eles existem, mas não são tantos quantos
necessários e estão dispersos e o atual sistema (o exemplo que vem de cima) não
ajuda a que apareçam com facilidade e quando aparecem, percebem que não vale a
pena ser honestos, sobretudo consigo mesmos, com suas escolhas, com o juramento
que fizeram ao receber os diplomas.
No início de
julho de 2013, um profissional ligou para Secretaria de Saúde querendo emprego.
Perguntei por que queria sair de seu município, já que era do PROVAB e ele
respondeu, como se fosse um direito sagrado, que onde estava queriam lhe “obrigar”
a trabalhar três dias na semana. Fiquei intrigado e perguntei se por acaso o
contrato lá não era de 40 horas, com 8 horas liberado para estudo e ele disse
que sim, mas que sempre se dava um jeitinho. Ele queria trabalhar dois dias na
semana. Infelizmente ou felizmente em nosso município não estávamos nessa de
dar jeitinho (mesmo precisando do profissional). Na mesma semana recebi a
visita de uma moça recém-formada à procura do primeiro emprego. Ela trouxe o
pai e o noivo para negociar por ela, o que já demonstrava, no mínimo, falta de
aptidão para Saúde Coletiva que estávamos fazendo. Expliquei-lhe sobre nosso regime de trabalho, a tolerância
zero com atraso, com faltas sem justificativas, etc, que contrataríamos por 20
horas, uma vez que não poderia trabalhar 40, como era nosso desejo. A pergunta
do papai era se contrataríamos por 20 horas, mas pagaríamos por 40. Respondi
que não, que isso seria uma prática imoral e desonesta, mas ele me acalmou
dizendo que não tinha problema, que ela trabalharia 20 horas, mas produziria
como se fosse 40, bastava que lhe disséssemos quantos “pacientes” deveria
atender por dia. Realmente indecente, mas tenho certeza que, com essa conversa,
deve ter conseguido emprego fácil, mas em outro lugar ou com outros gestores.
Infelizmente, essa
é a realidade com a qual convivo e por mais que tente ser tolerante, no que a
tolerância tem de bom, não aceito determinadas posturas pessoais ou coletivas,
mesmo sabendo do condicionamento pelo qual as pessoas passam na vida. Paulo
Freire diz que tolerância
desprovida,
porém, de outra importante qualidade, a coerência, a tolerância corre o risco
de perder-se. É a coerência entre o que dizemos e o que fazemos que,
estabelecendo limites à tolerância não permite que ela se transforme em
convivência. Posso, por exemplo, convivendo com neoliberais, discutir nossas
posições, o que não posso é firmar nenhum acordo com eles de que decorram
concessões que deteriorem meu sonho estratégico. Já não seria, neste caso,
tolerante, mas convivente com a “poluição” de meu sonho[1]:60.
É por isso que
posso aceitar que algumas pessoas achem o PROVAB ou o trabalho na Atenção
Básica um sacrifício muito grande, mas não os posso tolerar em nome da
individualidade ou da condicionalidade, pois a população precisa e merece
profissionais com desejo de ser mais, de dar um jeito e não de dar uma desculpa.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa
das 10 às 6tas-feiras]
Revisão – Jailson Conceição – Bahia