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23 maio 2014

TOLERÂNCIA CARECE DE COERÊNCIA OU VIRA CONVIVÊNCIA

Ernande Valentin do Prado

Noite dessas estive debatendo com uma amiga sobre as condições dos PROVABIANOS, que ela acompanha como supervisora de campo do PROVAB e eu como Apoio Pedagógico no curso de especialização ao qual são “obrigados” a cursar.
Ela acredita que as condições em que trabalham são muito difíceis. Não nego as dificuldades, realmente falta muita coisa, mas não são ruins apenas para os PROVABIANOS, são para todos os outros profissionais já inseridos na Estratégia Saúde da Família e, principalmente, para população que depende do serviço. Aliás, penso que se as condições fossem as ideais, esse tipo de estratégia seria completamente desnecessário.
Os profissionais de saúde e não apenas os Médicos estudam em escolas públicas ou particulares com incentivos públicos. Recebem bolsas de diversos tipos, desde incentivo à moradia, iniciação científica, residência e até para estudar no estrangeiro. Até aí tudo bem, acho que tudo isso é importante mesmo, porém o Estado brasileiro, diferente de outros tão ou mais burgueses que o nosso, nada exige do estudante. Pode frequentar ou não as aulas,  pode aprender ou não, pode formar-se ou não, pode, depois de formado trabalhar ou não e ainda escolher onde e tudo bem, nada tem que provar para ninguém, sobretudo para população, que em alguns casos serviram de “cobaias” para que aprendessem seu saber/fazer.
Estudei na PUCPR, com bolsa não reembolsável. Meu compromisso para manter a bolsa, segundo a assistente social, não faltar às aulas e tirar notas boas. Os beneficiados do Programa Bolsa Família (PBF) precisam assumir uma série de compromissos com as condicionalidades, por exemplo, frequentar às aulas, se grávida fazer pré-natal. Concordo, só não entendo porque estas e outras exigências não são para todos independentes da classe social.
Após 6 anos de estudo, o profissional de medicina pode aderir a uma bolsa de especialização em serviço e, além de trabalhar, aprimorar-se, tornar-se apto a entender e praticar Atenção Primária à Saúde. A bolsa prevê 40 horas de trabalho em uma equipe de ESF, e, dessas 40 horas, 8 são dedicadas (em teoria) à especialização. Alguns levam à sério, outros nem tanto, mesmo tendo assinado um contrato comprometendo-se a fazer (o mesmo vale para os beneficiados do Bolsa Família). No meio do curso começam as “desculpas” honestas ou não para não fazer isso ou aquilo. Não seria isso o condicionamento do Estado que “tudo” oferece sem nada pedir em troca (para alguns)? Ninguém está acostumados a dar nada, comprometer com nada que não seja individualizado – essa parece ser uma resposta possível. Outra é que, de fato, a maioria não têm interesse em atenção primária, estão no programa, parece por dois motivos; primeiro, para maioria, por conta do incentivo de 10% de bônus para cursar a residência que escolher depois, segundo lugar, a bolsa de dez mil reais, que  parece pouco pelo valor que se atribuem, mas que de fato não é tão pouco assim.
Porém, estes, a meu ver, são os problemas pequenos. O que incomoda mesmo é o fato de que estão em tese preparando-se para ser melhores profissionais, mas poucos aproveitam essa oportunidade. Conheço PROVABIANOS que alegam que foram obrigados pelo Ministério da Saúde a fazer o curso. O problema é que não se engajam no fazer, não demonstram conhecer nenhuma técnica ou terapêutica além da consulta clínica calcada na distribuição de pedidos de exames e receitas medicamentosas.
Não espero que estes recém-formados tenham condições de enfrentar problemas complexos e os resolver, pois em APS muitos problemas não têm mesmo solução, mas que se importem o suficiente para incomodar-se com eles, para que “infernize” a vida dos colegas e dos gestores em busca de soluções conjuntas e que não simplesmente passem um encaminhamento e acreditem que já fizeram sua parte.
Dia desses falei com um PROVABIANO que está há 10 meses em determinado território que visitei um senhor acamado, com sequelas de AVE em sua área e ele respondeu-me que não sabia da existência desse homem. Realmente ele não sabia, mas esse é exatamente o problema, disse-lhe: como ficar tanto tempo em um lugar e não conhecer seus moradores? Será isso ético, humano, condizente com a profissão e com o PROVAB não conhecer, não saber da existência desse homem?
Diante desse quadro, pergunto-me: A minha tolerância com esse tipo de comportamento é coerente com meu compromisso com a população, com meus deveres éticos e legais?
Acho que não estou pedindo (ou exigindo) muito, na verdade não estou nem mesmo exigindo que faça o que estou fazendo, pois nem dormir direito durmo quando tenho um problema que não consigo encaminhar de modo satisfatório. O que aprendi nestes anos todos trabalhando em APS é que não existem problemas intransponíveis, mas pouca criatividade, pouca insistência, pouca vontade de ser mais e fazer mais.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Revisão – Jailson Conceição – Bahia.

18 abril 2014

O DESEJO DE SER MENOS (O EXEMPLO QUE VEM DE CIMA)

Ernande Valentin do Prado


Paulo Freire diz que o homem nasceu para ser mais, quer mais, precisa de mais. Porém, ser mais dá um pouco de trabalho e há quem prefira ser menos, mesmo que, em palavras, nunca ouvi ninguém dizer isso. Nestes tempos, parece que realmente está compensando ser menor, fazer menos. Claro que Paulo Freire não estava falando do particular, do individual, mas de uma vocação do ser humano em procurar o belo, em completar-se, pois sabemos do nosso inacabamento. O que estou dizendo não contradiz em nada minha crença nos ensinamento de Paulo Freire. Acredito que o homem nasceu para ser mais, busca mais, quer mais, esforça-se por sem mais, porém o exemplo que vem de cima, das classes dominantes (e o poder ideológico é infectante) tem condicionado o modo como muita gente encara a vida e o necessário para viver ou sobreviver, sobretudo nas classes intermediárias, como os servidores públicos, por exemplo.
Noite destas estive debatendo com algumas pessoas sobre o Programa de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica (PROVAB) e sobre as condições de trabalho em que acontece. Algumas pessoas, bem mais compreensivas do que eu, com outros referencias de vida, argumentavam que é muito difícil trabalhar no interior, sem infraestrutura, sem uma gestão consciente e competente, sem internet, sem transporte adequado. Concordo com tudo, mas fico pensando que a população destes lugares foi justamente quem patrocinou e continua patrocinando a formação desses profissionais, ontem na universidade, hoje no PROVAB, com, ao menos, oito horas semanais para dedicar-se a especialização. É difícil para eles, sem dúvida, principalmente se comparado com a vida que deveriam ter antes ou a que podem ter depois, mas e para população que paga e pagou, é menos difícil ver profissionais formando-se em universidades públicas e não ser beneficiado?
Particularmente acho uma vergonha um País como o Brasil, com tantas Universidades públicas, com bolsas de estudo em universidades particulares e até bolsa de iniciação científica que não inicia em nada ou com pesquisa que não se chaga a lugar nenhuma, ter que importar Médicos de Cuba (ou de qualquer lugar) para suprir a necessidade de profissionais.
Minha experiência com PROVABIANOS, no curso ou no dia a dia não é totalmente boa. Infelizmente não percebo mudanças qualitativas no fazer e nem no saber da maioria deles. Não vejo como falha do programa, mas como falha da implementação, falha na ação que deveria ser transformadora, falha no acompanhamento. Será que um profissional que passa entre 4 e 6 anos na faculdade não sabe que não basta apenas trancar-se no consultório e distribuir solicitação de exames, que é necessário conhecer o território, a vida das pessoas? Não será questão de vontade ser menor e isso é responsabilidade, primeiro do indivíduo, mas, sobretudo, de quem, sendo parte do programa, recebedor de uma bolsa para acompanhar, não o faz de fato, aceita desculpas e o direito sagrado do profissional em desconsiderar o que o sujeito precisa e merece?
Em muitos lugares, o PROVAB não está cumprindo sua função escrita no papel ou no arquivo digital, mas apenas provendo um profissional despreparado, desmotivado (e possivelmente domesticado) para o exercício do cuidado com ética, com compromisso social, com vontade ser mais. Dá para aceitar que isso acontece por falhas externa tão somente, por uma falha postural do indivíduo que não se vê como cidadão partícipe de uma sociedade? Será que é preciso que o profissional seja “vigiado e punido” para no fim dar muito pouco?  Em muitas cidades admitem-se as falhas, toleram-se as falhas, as negligências com suas atribuições, com o cumprimento do horário de trabalho, com a postura pouco humana e participativa, com a desonestidade, as falhas de caráter, mas será que deveriam tolerar? Não se está criando uma geração que consegue alargar a “tolerância”, o jeitinho desonesto, as desculpas na mesma proporção em que estreita a governabilidade para ser e fazer mais e melhor pelo simples fato de que pessoas merecem mais pelo simples fato de ser parte da comunidade  humana?
Em determinado local onde trabalhei, tive dificuldade em conseguir profissionais com vontade de ser mais (e não apenas Médicos, mas todos: Enfermeiros, Dentista, Técnicos de Enfermagem, ACD, ACS), não que estes profissionais motivados e sabedores de seu inacabamento não existam. Eles existem, mas não são tantos quantos necessários e estão dispersos e o atual sistema (o exemplo que vem de cima) não ajuda a que apareçam com facilidade e quando aparecem, percebem que não vale a pena ser honestos, sobretudo consigo mesmos, com suas escolhas, com o juramento que fizeram ao receber os diplomas.
No início de julho de 2013, um profissional ligou para Secretaria de Saúde querendo emprego. Perguntei por que queria sair de seu município, já que era do PROVAB e ele respondeu, como se fosse um direito sagrado, que onde estava queriam lhe “obrigar” a trabalhar três dias na semana. Fiquei intrigado e perguntei se por acaso o contrato lá não era de 40 horas, com 8 horas liberado para estudo e ele disse que sim, mas que sempre se dava um jeitinho. Ele queria trabalhar dois dias na semana. Infelizmente ou felizmente em nosso município não estávamos nessa de dar jeitinho (mesmo precisando do profissional). Na mesma semana recebi a visita de uma moça recém-formada à procura do primeiro emprego. Ela trouxe o pai e o noivo para negociar por ela, o que já demonstrava, no mínimo, falta de aptidão para Saúde Coletiva que estávamos fazendo. Expliquei-lhe  sobre nosso regime de trabalho, a tolerância zero com atraso, com faltas sem justificativas, etc, que contrataríamos por 20 horas, uma vez que não poderia trabalhar 40, como era nosso desejo. A pergunta do papai era se contrataríamos por 20 horas, mas pagaríamos por 40. Respondi que não, que isso seria uma prática imoral e desonesta, mas ele me acalmou dizendo que não tinha problema, que ela trabalharia 20 horas, mas produziria como se fosse 40, bastava que lhe disséssemos quantos “pacientes” deveria atender por dia. Realmente indecente, mas tenho certeza que, com essa conversa, deve ter conseguido emprego fácil, mas em outro lugar ou com outros gestores.
Infelizmente, essa é a realidade com a qual convivo e por mais que tente ser tolerante, no que a tolerância tem de bom, não aceito determinadas posturas pessoais ou coletivas, mesmo sabendo do condicionamento pelo qual as pessoas passam na vida. Paulo Freire diz que tolerância

desprovida, porém, de outra importante qualidade, a coerência, a tolerância corre o risco de perder-se. É a coerência entre o que dizemos e o que fazemos que, estabelecendo limites à tolerância não permite que ela se transforme em convivência. Posso, por exemplo, convivendo com neoliberais, discutir nossas posições, o que não posso é firmar nenhum acordo com eles de que decorram concessões que deteriorem meu sonho estratégico. Já não seria, neste caso, tolerante, mas convivente com a “poluição” de meu sonho[1]:60.

É por isso que posso aceitar que algumas pessoas achem o PROVAB ou o trabalho na Atenção Básica um sacrifício muito grande, mas não os posso tolerar em nome da individualidade ou da condicionalidade, pois a população precisa e merece profissionais com desejo de ser mais, de dar um jeito e não de dar uma desculpa.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Revisão – Jailson Conceição – Bahia



[1] FREIRE, P. À sombra desta mangueira. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.    

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