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16 outubro 2020

UMA DESESPERANÇA

 


Não precisa ser uma pessoa muita atenta, desta que presta atenção até na tonalidade das cores, para entender porque Amália escolheu fazer o que fez, exatamente naquele lugar, naquela cidade chamada “solitária”.

Depois de decidida ela planejou tudo com atenção, com uma meticulosidade cruel e irritante.  Para não haver dúvidas, deixou um bilhete escondido entre as páginas do livro de Luiz Felipe Leprevost, “Dias nublados”, que começou a ler dois dias antes. Certamente o bilhete seria encontrado, porém quando isso acontecesse ela já “estaria na rodoviária, talvez até na autoestrada”.

No bilhete, em letras pequenas, redondinhas, quase desenhadas, explicava: “Cansei de ser joguete, cacete. Cansei de ser tão maltratada”.

O incrível, o espantoso, o indescritível é que mesmo diante das terríveis emoções que dilaceravam seu coração, Amália ainda preparou o jantar: “deixou bife e arroz no microondas”, como sempre fazia quando não podia esperar por ele, o que raramente acontecia e quase somente quando saia com seu grupo para ler poesia para estranhos apresados, nas geladas praças de Curitiba.

Quer dizer, suponho que seu coração e sua alma estivessem dilacerados, suponho apenas, não sei dizer se realmente ela se sentia assim ou se neste momento o que se sente é a calma da certeza, a serenidade da decisão tomada e o alivio antecipado pelo que virá depois ou pelo que não virá. Realmente não sei.

A rosa recebida na noite anterior, como um pedido de desculpas, jogou na privada, mas não deu descarga. Isso deveria ser um recado, uma explicação. Deveria? Não, certamente não deveria ser uma explicação, era de fato um recado muito explícito, inequívoco: não consigo mais perdoar. Não desta vez.

A aliança deixou na mesinha de cabeceira. Era grossas, pesada, cara, destas que causam inveja. Pensou que ele poderia vende-la e com o dinheiro pagar as contas, que não eram poucas.

Na penteadeira, essa mesma onde ela dizia que cabia seu amor, “cabia três vidas inteiras”, mas que ficou parcialmente desocupada, deixou o celular, os perfumes e as poucas maquilagens que raramente usava.

No banheiro deixou a escova. Apenas pegou dele a lâmina de barbear. E saiu levando apenas a desesperança. Chegando lá, lá onde ela ia, lá onde o amor que morria nasceu há seis meses de foram arrebatadora, intensa e irresistível, rasparia os cabelos que ele amava (uma pequena vinganças talvez) e beberia querosene... e se isso não fosse suficiente, cortaria os pulsos. Fundo, bem fundo, deitada na banheira do mesmo quarto onde fizeram, pela primeira vez, amor.

Para ouvir o podcast:

Música para pensar

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

01 julho 2016

ONTEM FUI À MISSA

A casa do chapéu. Desenho de Alice Bernini do Prado. Foto Ernande, 2016.
Ernande Valentin do Prado

Depois de muito tempo, ontem fui à missa, na paróquia São Pedro e São Paulo, no Brisamar. No sermão o Padre José Carlos falou sobre a importância de não entrar em pânico, de não se entregar ao pessimismo neste muito tão atribulado, tão cheio de motivos para desesperança.
Verdade.
Cada vez que vou à missa, vejo as pessoas, os ritos, as mensagens de amor ao próximo, de perdão e esperança, lembro do sentido de comunidade, e do lado bom das igrejas. Depois, se passo a ir com frequência, começo a ver as incoerências, os vícios, opressão e discriminação de quem não pensa igual ao que “alguns” dizem que se deve pensar, deixo de ver o sentido de comunidade, de amor ao próximo, de perdão e aceitação. É neste momento que, para o meu próprio bem espiritual, deixo de frequentar a igreja.
Tive uma formação católica, fui batizado, fiz primeira comunhão, fui crismado, frequentei grupo de jovens. Embora para eu não seja importante a igreja em si ou qual a religião, em nome de qual Deus se esteja falando sobre amar o próximo, sinto-me melhor nos ritos católicos, até por uma questão de familiaridade, por isso minha opção é, quando sinto falta, frequenta-la.
Para ser muito sincero: não sei se existe esse Deus que fala a Bíblia e, esse que fala os “cristão boca-aberta”: que prega o ódio aos homossexuais, aos crentes do candomblé, do islamismo e de qualquer outra religião, que tolera sem esforço os políticos corruptos, desde que não sejam filiados à partidos de esquerda, que insistem que se deve ter ensino religioso nas escola, que defende que o estado deve legislar com suas regras para pessoas que não estão interessadas, que proíbe o livre arbítrio em relação ao sexo e ao corpo, que aceitam que pastores devem ser milionários e sustentados pela miséria dos fies, que acham que bandido bom é bandido morto, se esse é o Deus verdadeiro, prefiro não o conhecer.
O Deus que aceito, independente da igreja, da religião, só tem um mandamento: amar o próximo como a te mesmo. Esse é o Deus que todos dizem aceitar, mas parece que o próximo a que se referem não pode ser homossexual, nem mulher que gosta de sexo, não pode ser do MST também, nem eleitor do PT. Nada diferente do que fala Maturana, que diz que a ética só se aplica as pessoas de nosso círculo próximo. E o amor, que grande parte aceita estender ao próximo, não tão próximos, diz respeito as pessoas que não expões seus problemas, que aceitam sem protestar seu lugar de subalternidade na sociedade. As ações demonstram que o amor de que falam, esse tipo de crente, quando se refere aos pobres e oprimidos da sociedade, diz respeito a dar esmola, nos momentos apropriados, oferecer uma cesta de roupas sujas para lavar em troca de um prato de comida, R$ 50 reais semanais para trabalhar de emprega doméstica. Jamais um pagamento justo, jamais bolsa família, possibilidade de escola de qualidade para seus filhos, sobretudo se for para eles disputarem vagas nas universidades com os escolhidos.
Enfim, parece que se o amor ao próximo for realmente de verdade, muitos fieis não poderão contar com “ajuda” quase de graça para limpar suas casas, lavar seus carros, passear com seus cachorros. Mas vamos esquecer tudo isso e lembrar de ontem: tenho lutado contra a sensação de desesperança que insiste em se instalar em mim. Na missa, ouvindo Padre José Carlos, suas mensagens, o modo como as transmite com convicção, alegria e entusiasmo, sinto que fica mais fácil resistir.
Entro pela ampla porta da frente, escolho um lugar no meio da igreja, fico ouvindo os louvores, ontem tinha até sanfona e triangulo, olho para os lados, imaginando quem são as pessoas que lotam a igreja no domingo à noite, quais serão suas crenças, se sentem que podem amar todos os próximos ou só uns ou outros (não consigo evitar). Escuto a missa, as rezas, os evangelhos, o sermão. Misturo-me com todos, fazendo o mesmo que fazem, embora não sinta nem creia em tudo.  Na hora de oferecer ofereço, na hora de se confessar e pedir perdão, faço.
Tudo isso é bom, tudo isso é reconfortante, independente das recompensas prometidas para outra vida, porque, independentemente de ter ou não vida na próxima vida, se Jesus Cristo Morreu na cruz ou ressuscitou no terceiro dia, ter uma fé, qualquer que seja, ajuda a aguentar o absurdo da existência.
 Na igreja, percebi ontem, mais do que das outras vezes, que se pode fazer um balanço da semana, confessar cada uma das vezes que perdi a paciência com as pirraças de Alice, com as promessas que não se cumprem do corretor de imóveis de quem alugo minha casa, do rapaz com quem estou trabalhando para finalizar um site, mas que nunca fica pronto. Posso ver, de novo, o quanto sou intolerante, o quanto me falta paciência, sabedoria para aceitar, porque nada disso depende só de mim, por isso tenho que aceitar e contornar o melhor possível. O que nem sempre consigo fazer.
Quando a missa terminou estava com a sensação de que não tenho só motivos para confessar pecados, reclamar, chorar e me desesperar, mas também muitos motivos para agradecer, como a família que construí, a casa enfeitada que habito (agora próxima ao mar), aos amigos e o quanto cada um deles se esforçam para me aceitar e ajudar nestes momentos de desesperança. Voltei para casa imaginando que tenho mais uma semana para tentar ser melhor.
Ao entrar em casa, não lembro mais da pirraça de Alice para impor sua vontade, apenas do desenho da “casa do chapéu” que fez para me presentear e que agora enfeita meu armário de livros.
Tudo isso em uma hora e quarenta e cinco minutos de missa.
Volto semana que vem.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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