Comparsas, 2017. |
Ernande
Valentin do Prado
Meu
amigo Julio diz que Pessoas importantes, sérias como Eymard têm seguidores, discípulos.
Julio também têm seus seguidores, embora negue para melhor poder cutucar os
outros mestres. De minha parte sempre fui anarquista demais para ter
discípulos. Olho para o tempo e vejo que tive e tenho comparsas fieis, leais,
amigos e irmãos, alguns que estão, neste momento fazendo a enfermagem acontecer
na Bahia, a Estratégia Saúde da Família (ESF) acontecer em alguns outros
lugares, outros convivem comigo todo dia. Esse texto é sobre isso.
Na
educação popular muito se fala sobre autonomia, mas ao mesmo tempo há um culto,
em minha opinião, exagerado aos grandes mestres, que precisam mesmo serem
prestigiados, reverenciados, (talvez com mais discrição). Seguidos? Tenho
dúvidas. Colocados em altar, jamais. Ter as falas decoradas e repetidas
infinitamente em infinitos discursos e citados em páginas e mais páginas de
artigos e livros?
Faz
tempo que se corre o risco, em certas circunstancias, de que o leitor descubra
que todas essas páginas escritas a partir do que já foi escrito, não digam nada
além do que o mestre já havia falado antes. Tenho cá para eu que a maioria dos
discípulos só fazem bajular o mestre. Por outro lado, a maioria dos metres
desmentem o ditado popular de que o bom discípulo ultrapassa o mestre. Será que
acreditam nisso mesmo?
Não
vejo como a maioria dos discípulos, mantidos em rédeas curtas, podem ultrapassar
seus mestres. À maioria dos mestres, mesmo sem querer, mesmo sem notar, mesmo
que inconscientemente, mesmo negando verbalmente, não interessa que o discípulo
se descole, que ande com as próprias pernas, que pense com a própria cabeça. Por
isso, entre outras dificuldades, é tão difícil que a autonomia seja de fato
praticada na maioria das relações entre liderança e liderado, entre professor e
estudante, entre coordenador e coordenado. Essa observação vale para academia,
para os movimentos sociais e populares, para os sindicatos, partidos e até para
famílias.
A maioria das pessoas concordam,
ao menos em público, que é preciso de indivíduos mais proativos na sociedade,
mas quando esses começam a questionar, a querer mudar os processos, os mesmos
sujeitos que defendem a proatividade começam a fechar as portas, a se queixar
dos ritmos, da falta de cerimônia nas relações, nas tomadas de decisões. Os sujeitos, os líderes, os mestres, os
professores, parecem aceitar autonomia até o limite que não interfira em suas
conquistas, em suas aulas, em seus quintais, ao menos a maioria deles.
Quero contar duas historinhas:
A primeira aconteceu no
Mato Grosso do Sul. Numa reunião com a equipe de ESF, da qual fazia
parte, falei sobre um assunto que não lembro qual e conclui, sozinho, que
deveríamos fazer determinada coisa de tal modo.
Ademar, um dos ACS e um
dos três padrinhos de Alice, sujeito íntegro, honesto, leal, disse que aquilo
não estava certo, que era o contrário do que havíamos debatido e combinado na
semana anterior.
Pensei bem, por quase um
minuto e conclui que ele estava certo e eu errado. Desfiz o que havia dito e pedi
ao Ademar sugestão de como deveríamos fazer. Ele explicou o que pensava e
fizemos.
Dias depois, sozinho,
fiquei pensando na ousadia do Ademar: como assim me corrigir na frente de toda
equipe, apontar meu engano? Até a médica, que nunca ia às reuniões, estava lá.
E ele falou sem nenhuma cerimônia, como se não fosse nada me corrigir daquele
jeito e fez isso com a voz de quem sabia o que estava dizendo, não foi uma
pergunta, apontou o problema com argumento, a incoerência do discurso, o que
aconteceria se realmente aquilo prevalecesse.
Deu um baita orgulho (bem
egoísta, é verdade, porque não pensei no Ademar, no quanto estava se
empoderando, mas no quanto eu estava fazendo Educação Popular bem feita). Orgulho
dele também, é claro. Nem todo mundo tem coragem de desautorizar O COORDENADOR,
assim na frente de todo mundo, sem cerimônia, sem reverência, sem bajular, sem
disfarçar. Ou tem?
Ele ainda nem era padrinho
de Alice, nem frequentava minha casa, a gente ainda nem ia tomar cerveja no bar
do Chico nos sábados, nem fazer churrasco na casa do Junior. Ainda nem faziamos o
programa de rock e humor na rádio comunitária da cidade, programa no qual
Ademar interpretava as personagens: O matador de cachorro e o empresário
mexicano José Mercearia, fabricante de tequila. Tudo isso só viria a acontecer
bastante tempo depois deste dia.
Esta história aconteceu há
mais de dez anos e lembrei disso por causa da segunda história:
Estou trabalhando no
VEPOP-SUS, projeto de pesquisa e extensão financiado pelo Ministério da Saúde
através da Política Nacional de Educação Popular em Saúde. Desde o final de
2016 estamos trabalhando na organização de diversos livros, entre outras coisas.
Um desses livros é sobre Processos educativos no Sistema Único de Saúde.
Abrimos um edital público e chegaram mais de 100 textos. Entre esses, um eu
mesmo enviei, outro participei como terceiro autor. Participo da equipe de
avaliação dos textos, junto com várias outras pessoas da equipe do VEPOP.
Iniciaram as avaliações,
que não são cegas. Sobre o primeiro texto, “Porta
aberta quer dizer que pode entrar”, disseram:
Penso que o texto ficou meio uma colcha de retalhos" com muitas
"idas e vindas" o que dificulta a fluidez e compromete a leitura,
além de ser um texto muito extenso.
Sobre o segundo texto, “Qualificação do cuidado
a comunidade: formação e intervenção em serviço na Estratégia de Saúde da
Família”, disseram:
O texto traz boas reflexões sobre o cotidiano do fazer saúde, apresenta
ainda certa intencionalidade na promoção de estratégias de superação das
dificuldades enfrentadas no serviço, mas não apresenta “o fazer”, a forma ou o
método.
Apesar de terem no texto citações de renomes da Educação Popular,
apenas em um momento a metodologia utilizada (problematização) é colocada de
forma mais explícita.
Uma outra questão que me incomodou foi o foco muito persistente do
texto de apresentar números que respaldassem o trabalho que foi realizado, não encontrei
a subjetividade dos encontros ou aprendizados mais emocionais em nenhuma parte
do relato. E acredito que deva ter tido inúmeros, mas o texto não relata.
Para mim a experiência tem muito mais a dizer do que apresentar os
percentuais elevados e alcance de metas, mas não encontrei.
Porém, desta vez o
texto foi para uma segunda avaliação, porque gerou dúvidas sobre a aprovação ou
não, o que estava previsto na discussão sobre as avaliações. E uma segunda
avaliadora, da equipe, deu o seguinte parecer:
O texto está bem escrito, a
experiência é louvável e relevante. No entanto, senti falta de maiores
interfaces com a Educação Popular. Isso não diminui o texto, nem a experiência,
que deveria ser multiplicada em muitos ESF, mas não adequa o texto ao nosso livro.
Tem claras interfaces com a Educação Permanente, com a Saúde da Criança, com o
Planejamento em Saúde, com a Atenção Básica. Mas não tem notória relação com o
fazer da Educação Popular. Talvez se a problematização da situação com os
profissionais estivesse descrita de forma mais detalhada e a partir daí
surgissem as soluções, essa lacuna poderia ser suprida, mas não é o caso. Em
diversos trechos, inclusive, fala-se que o objetivo era aumentar a cobertura de
atendimento às crianças. Isso é ótimo, mas parece pouco para um objetivo de uma
ação própria da Educação Popular. No entanto, em outros momentos fica clara a
tentativa de maior vinculação com os usuários e o maior comprometimento dos
profissionais com a população a partir da intervenção. Acredito que o texto
precisa do parecer de mais um avaliador.
De fato fiquei desconcertado
por ter dois textos reprovados para um livro que eu mesmo participo da
organização. Será que estavam tão inadequados assim?
De novo deu um baita orgulho
por trabalhar com pessoas tão integras, éticas e respeitosas. Poderiam
simplesmente aprovar os dois textos apenas por causa de meu nome, ninguém
questionaria, nem eu. Porém tiveram a decência de ler e a coragem de os reprovar,
não por ser meu, apesar disso.
Não preciso concordar com
todos os argumentos que usaram para dizer que o texto não estava adequado, acho
que não concordo ainda. Por outro lado, é inegável que são pessoas que exercem
autonomia (e desta vez nem posso achar que estou fazendo um bom trabalho, pois
já eram assim antes de trabalhar comigo).
Dá para dizer que é um
privilégio fazer parte de um grupo deste?
Dá, embora ainda seja apenas
uma parte do que poderia dizer.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]