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16 fevereiro 2018

MATADOR DE CANGACEIRO

Imagem capturada na internet, 2018.
Ernande Valentin do Prado
“Você é homem letrado
Mas minha ignorância tem vergonha”.
Antônio das Mortes

Às vezes quero ter a certeza de que o Judiciário age como o Antônio das Mortes.
— Lembra dele?
Antônio das Mortes, encarnado por Mauricio do Valle, personagem criado por Glauber Rocha no (extraordinário) “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964, fez história e ainda está no (meu) imaginário revolucionário.
Antônio das Mortes, em Deus e o diabo na terra do sol, recebe a missão, dada por Coronéis donos de terras, o clero (da família, propriedade e tradição) e de políticos, de caçar e matar cangaceiros, o que faz muito bem, eliminando de forma magistral Corisco, o diabo loiro, quase na última cena do filme.
Gostem ou não de Corisco ou de Sebastião (ou de João Pedro Stédile ou de Lula), são eles personagens que no imaginário (de parte) do povo, estão do lado dos pobres e dos desgraçados da terra, a quem Manoel e Rosa (gente que não tem mais o que perder) recorrem em busca de continuar a existir, nada mais do que isso: existir apenas.  
A resistência (quase) pacífica do Beato Sebastião termina, não pela “papo-amarelo” certeira de Antônio da Mortes, mas pelas mãos do próprio povo.

“Homem nessa terra
 só tem validade
quando pega nas armas
pra mudar o destino.
Não é com rosário não
Satanás
é no rifle
no punhal”

Sebastião é despachado para o inferno (como querem os coronéis) ou para o Céu (como acreditam os fiéis) e Manoel e Rosa, são jogados no partido de Corisco, que imediatamente rebatiza Manoel, dando-lhe um novo propósito na vida, como se faz em algumas igrejas neopentecostais:

“Manoel?
Manoel é nome de vaqueiro
Eu te batizo de outro jeito
Chama
Agora
Satanás.
Vamos agora pegar o Coronel Calazans
que ele é gente do governo”.

Corisco e seu bando são caçados pelas terras secas e arrasadas de um Brasil que insiste em não mudar, até que são condenados pelo TRF1 e até pelo TRF4. Foi assim ou foi pela fúria justiceira de Antônio da Mortes, o que dá quase no mesmo, percebe?
— Acabou a resistência?
Ao menos na cabeça de Antônio das Mortes, matador de cangaceiro e de todo e qualquer herói que não foi institucionalizado, não é bem assim.
Ao matar cangaceiros, beatos e santas e até os miseráveis que se encontravam no meio, Antônio das Mortes não desejava acabar com a resistência, pelo contrário, esperava fortalece-la.  Ele acreditava que perseguindo, difamando, condenando, de preferência de forma violenta e injusta na frente de seus seguidores, o povo não teria outra escolha a não ser aderir a luta por libertar-se do próprio homem (branco, supostamente heterossexual, a favor do porte de armas, da pena de morte e do aumento a maioridade penal, contra a leia Maria da Penha e dito cristão).
— Percebeu a semelhança entre Antônio das Mortes e os atuais justiceiros?
Só parece que querem acabar com toda e qualquer resistência do outro lado (certo ou errado, não importa, é o outro lado e tão legítimo quanto qualquer lado ou isso não é mais uma democracia, mesmo que capenga).
No-fundo-no-fundo, esses senhores de terno, gravata e discursos arrogantes, podem só estar fomentando a revolta definitiva nas massas. E talvez essa seja a centelha que faltava.
— Tudo que não nos mata, nos fortalece, não é assim?
E mais cedo ou mais tarde o fogo vai pegar.
As notícias, das grandes mídias, nos deixam, no mínimo, confusos e ainda não aprendemos a acreditar em nossas mídias. São sentenças exageradamente severas para um lado só, dizem alguns. Punições brandas, inexistentes ou de fachadas para o lado de sempre. Condenações por convicção, mesmo que sem provas. Sentenças dadas antes do julgamento. Parcialidade total, sem disfarces.
Tudo feito de forma transparente e, diria, descarada. Só faltam dizer, em alto e bom som: FAÇO O QUE QUISER, QUE AQUI, NESTA REPUBRIQUETA DAS BANANAS, MANDAMOS NÓS.
E a canalha, achando que sua hora não vai chegar, bate palmas com entusiasmo e finge que é assim mesmo, que está tudo certo.
Acusações de venda de sentença, ritos jurídicos acelerados e viciados. Salários acima do exorbitante (ultrapassando teto, sobretetos, bom-senso e o ridículo desmoralizante total). Auxílio moradia inescrupuloso, verba para educação dos filhos, abuso de poder, despesas reembolsadas por comprar ternos em Miami e outros absurdos que pisoteia, humilha, enxovalha, cospe na cara do povão.
E os estrangeiros rindo de nossas instituições burguesas em franca decadência moral. O que quer dizer, entre outras coisas, que aqui vale tudo. Não precisa escrúpulo: podem entrar, saquear, rapinar, sem culpa.
Mas quem sabe (e quero acreditar que é isso), só para não enlouquecer, o plano destes homens de camisa de ouro, compradas com dinheiro ganho dos ricos (se bem que o judiciário ganha (ou tira) dos pobres também), é trazer a revolta popular de fato, não uma manifestação de black bloc (que já cumpriu sua missão, não saques em supermercados, mas uma revolta generalizada que derrube a bastilha, que não deixe cinza sobre brasas e nem cabeças sobre pescoços.  
Deve ser isso. Só esperar e vamos acabar descobrindo que juízes e promotores brasileiros só estão agindo, da forma como estão, para trazer a verdadeira justiça popular, assim como Antônio da Mortes. Ou seja, são verdadeiramente os verdadeiros revolucionários (praticando o “quanto pior melhor” que trará a revolução popular) e trarão a justiça para essa terra onde pode mais quem faz as leis e faz as leis quem pode mais.

E o resto? Bem, o resto é isso aí mesmo.


“— Doutor, há muito tempo que eu tô procurando um lugar pra ficar... agora eu vou ficar do lado de lá, bem junto da santa. Eu já tô entendendo quem são os inimigos.”
Antônio da Mortes

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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