— Homi, deixa disso, você sabe atirá, Valdomiro?
— Isso se aprende, Rosangela, isso se aprende muito
fácil, sabe disso, que você nem é burra.
No culto de terça-feira, o pastor disse, com todas
as letras, para que não houvessem dúvidas, que todo homem de bem, todo pai de
família deveria andar armado e se defender dos bandidos, dos malditos bandidos.
— Nanias...
Disse o pastor, esmurrando o púlpito.
— ...lá no seu tempo, já dizia: uma colher para
erguer o muro, em uma mão e a espada na outra. E por que, irmãos, Nanias disse
isso? Ele disse porque o pai de família, o homem de bem, não pode irmãos, não
pode sob pena de pagar com a vida, não pode deixar de se defender.
Esmurrou novamente o púlpito enquanto encarava os
fies admirados do poder de oratório do pastor. Não só do poder de falar, de
encantar, mas da sabedoria do pastor, que era capaz de falar de diversos
assuntos e tirar as dúvidas de seu rebanho enquanto emocionava.
— Os bandidos, os canalhas, os comunistas, esses,
irmãos, estão em toda parte, eles podem andar armados, podem entrar na sua
casa, estuprar sua mulher, sua filha, rasgar a sua bíblia, atirar no seu
cachorro...
É isso mesmo, balançava a cabeça concordando,
Valdomiro. E já fazia seus planos, suas contas:
— Preciso arranjar um revólver para protege
minha família, meu cachorro.
— E você tem cachorro, criatura?
Disse a mulher, irritada, quase ouvindo os
pensamentos do marido, enquanto colocava a roupa na máquina de lavar.
— O pastor disse, no culto de terça-feira...
— Home, lá vem você falar desse pastor, dessa
igreja... você sabe o que penso de gente que anda com bíblia embaixo do braço,
não sabe?
Disse Rosângela, caminhando para o quarto, onde
tirou o lençol da cama, as fronhas dos travesseiros e jogou nas mãos do marido:
— Pare de fala e joga isso na máquina de lava e vem
me ajuda a amarra um lençol limpo nessa cama, que não suporto lençol embolado.
— Só deixa eu fala: o pastor disse que todo homi de
bem...
— Deixa que eu faço sozinha...
Disse Rosângela com toda impaciência que lhe era
peculiar, ainda mais naquela hora da manhã.
— ...queria vê esse pastor trabalha ao invés de
enche a cabeça dos tonto ...eu já te pedi, Valdomiro, já te implorei mais de
uma veiz pra não fala nesse pastor e nessa igreja comigo, se não
quisé me vê vira um bicho. Qué i na igreja, Valdomiro, vá, não vou
mais falá, cada um com suas mania, mas não encha meu saco falando em bíblia,
falando em conversa de pastor. Um burro demora formar, mas quando forma
dá gosto...
Disse a mulher forrando sozinha o lençol, estampado
com flores vermelhas, na cama e já levantando o colchão para amarrar.
— Por que o homi de bem, o pai de família tem que
se entregá como uma ovelha muda ao matadoro, se o bandido pode andá armado, me
diz, mulher?
— Isso eu não sei, Valdomiro. Nem sei se bandido
pede autorização pra andá armado, o que sei mesmo, homi, é que “otário é otário
e malandro é malandro.
Disse Rosângela ao mesmo tempo em que caminhava
para lavanderia. Valdomiro tentava ignorar a agressividade da mulher com as
coisas da igreja e dar a outra face.
— Vou ora por essa infeliz.
Era o que pensava enquanto tentava não se abalar.
Na assembleia o pastor disse: “em Exudus 22:2,3, a
bíblia autoriza o cristão a andar armado e a se defender”.
— Por isso, irmãos, cada um de nós, que somos
homens de bens, deveríamos comprar um revólver, não para sair por aí atirando, barbarizando
geral, porque cristão não é disso. Cristão é ordeiro, é respeitador das leis,
da moral, da família, da propriedade alheia, mas o cristão, caros irmãos, o
cristão tem o direito de se defender, de defender sua propriedade, seus bens...
Parou por um segundo, como que repensando o que
acabara de dizer, e continuou:
— ...o cristão tem mais do que o direito de se
defender, o cristão tem o dever, a obrigação de se defender, ele não pode ser
um boboca, tem que se defender. O cristão não pode aceitar, como os direitos
humanos querem, que só bandido tenha armas. O cristão tem que usar armas para
ser respeitado pelos bandidos.
[Ernande
Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]