Kátia Maria das
Dores, de vinte e três anos, saiu do forró do Bezerra, na sexta-feira por volta
das três horas. Caminhou pela rua, descalça carregando os sapatos nas mãos. Ia
em direção a sua casa, que ficava perto.
Estava alcoolizada
o suficiente para trançar as pernas.
Apesar de caminhar
em direção à sua casa, Kátia lá não chegou.
Ela deixou os
meninos com Dona Margarida, na sexta-feira pela manhã e foi se arrumar para o
forró que iria à noite. Dona Margarida, na segunda, ainda não tinha dado falta
da filha. A mãe, acostumada com os sumiços eventuais da filha, não deu
importância ao fato, nem deu queixa na delegacia. Sabia que a filha poderia ter
se desviado no caminho, assim como já tinha desviado da vida que queria para
ela.
Às vezes, Dona
Margarida Maria das Dores, queria que a filha sumisse de vez. Estava cansada de
passar vergonha com a menina tão falada que, em seu íntimo, pedia a Deus...
— Melhor nem
dizer.
Quando lhe
perguntaram sobre Kátia, na segunda-feira, disse despreocupada:
— Dessa aí só Deus
sabe.
Pensava que tivesse
tomado o caminho de sua própria casa ou ido dormir com o ex-marido.
— Não seria
a primeira vez... e nem a última...
Era o que
pensava.
- ...não sei
qual desses dois tem menos vergonha na cara, Deus me livre!
A sofrida mãe
limpou o suor da testa com a manga do vestido, olhando os netos pequenos que
brincavam no quintal. O menino corria atrás de uma gorda galinha e a menina
penteava os ralos cabelo loiros de uma imitação baratinha de Barbie, já
bastante desgastada.
Kátia e Marcelino
estavam separados há seis meses e volta e meia se encontravam para fazer as pazes...
— Pelo bem das crianças...
Era o que falava o
homem franzino, de mais ou menos metro e sessenta e alguma coisa.
Na única foto
encontrada de Marcelino, via-se um homem com barba tão malfeita quanto sua
aparencia desmilinguida.
— Que mulher ia
querer um trapo desses?
Era o que pensava o
policial, olhando a barba que crescia em tufos aqui e ali e buracos entre uma
moita e outra de barba. Mas uma coisa era impressionante: a barba do homenzinho
era tão preta que deu até inveja. O encarregado da investigação, de uns 40 e
tantos anos, já tinha os pelos da cara bem grisalhos. Até coçou o queixo branco
olhando a cor da noite da barba do ex-marido de Kátia.
— Ao menos não
sou corno...
Pensou em silêncio
o policial e logo corrigiu-se mentalmente, porque corno é sempre o último a
saber e quase sempre o único a não saber. Então, se era corno, como saberia?
— ... ao menos
não tenho fama de broxa.
Conformou-se e
decidiu não deixar mais sua imaginação devanear em assunto que não tinham
relação com o caso.
Marcelino Pedro
Cavalcante, de vinte oito anos fora encontrado morto na segunda-feira por volta
do meio dia. Um tiro na cabeça. Quer dizer, um tiro que entrou pela base do
crânio e saiu na altura do osso occipital. Morte instantânea, pensou o
policial, já mais acostumado com aquilo do que o ser humano deveria ser capaz.
A arma estava
próxima da mão esquerda da vítima, que era canhoto. No quintal a polícia
encontrou o corpo de Kátia. A tragédia aconteceu na casa onde moravam, quando
casados. Ele não aceitava o fim do relacionamento e tentou a reconciliação,
pela quinta e última vez.
— Ao menos é o que
sugeria a cena.
Concluiu o
policial, ainda com a imagem da barba preta de Marcelino na cabeça:
— Que
desperdício.
Marcelino atirou em
Kátia na madrugada de sexta para sábado, depois de a encontra-la saindo do
Forró do Bezerra, famoso risca faca de Brejo Grande. Ao ver a
ex-companheira ferida, ficou desesperado.
— O que me resta
na vida, agora?
Não pensou nos
filhos, nem no que poderia lhe acontecer. Pensou na vida sem Kátia e isso
parecia insuportável. Com ela viva ainda tinha esperanças, podia correr atrás
dela, brigar, insistir, até odiá-la. Mas com ela morta, qual o sentido de sua
vida?
O delegado, Galênio
Silveira do Amaral, usando seu mais novo terno, disse não ter dúvidas de que
fora um crime passional. O casal estava separado, e o homem não aceitava o fim
do relacionamento.
— Já ouviu alguma
testemunha, Delegado?
Perguntou o rapaz
com o telefone celular na não.
— Perfeitamente...
Disse o delegado,
virando-se para outro rapaz que tirava fotos.
— ...testemunhas
afirmaram que Marcelino perseguia a ex-mulher, exigindo a reconciliação. Várias
testemunhas afirmaram que os dois brigavam até em locais públicos e que, não
raras vezes, Kátia se referia ao ex-marido como broxinha.
— Ela não dava
satisfação do que fazia.
Disse a mãe, sem
nenhum remorso, mas também sem esconder uma lágrima que rolou do olho esquerdo.
— Foi uma surpresa
encontrar o corpo de Kátia no quintal da casa...
Disse o delegado,
pousando para mais uma foto, que minutos depois estaria no blog de notícias
policiais e nos programas policiais das rádios da cidade e até da capital.
— Quem sabe até
nos programas da tv.
Pesava secretamente.
O delegado não
soube responder se existiam denúncias de ameaças de Marcelino contra a vida da
ex-companheira, talvez por serem muitos os casos de violência na cidade.
— Ou talvez por
não dar importância a esse tipo de denúncia.
Pensou o rapaz que
gravava o depoimento do delegado com o celular.
— Deixa isso prá
lá, coitado do broxinha.
Disse, certa vez o
delegado, para o policial de barba quase branca, diante de uma queixa de Kátia.
Kátia passou a
madrugada de sexta para sábado, todo o domingo e só fora encontra, já morta, na
segunda-feira por volta do meio dia.
— ...o tiro nem foi
tão sério, se ela tivesse sido socorrida de imediato, a vítima não estaria
morta.
Afirmou o delegado
e concluiu:
— “Kátia morreu porque ninguém sentiu sua falta”.