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30 agosto 2019

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANQUELAS - PARTE 11



Ernande Valentin do Prado

— Direitos humanos o caralho...
Pensou Mendonça, dentro de seu de seu coturno impecavelmente engraxado e sua farda engomada, sem um vinco se quer.
Olhou para o lado esquerdo: ninguém. Olhou para o lado direito: ninguém. No muro a sua frente o nome de um candidato em campanha eleitoral.
— Mito...
Pensou, quase exibindo na face a alegria que sentia no seu íntimo. Mas o Sargento, sobretudo em serviço, não era de sorrir, nem de rir, na verdade não era nem de falar. Se considerava um homem de ação. “Teoria é para os frescos”, repetia com frequência entre os soldados sob seu comando.
— Vamos retomar esse país...
Nas costas sentia toda energia negativa vinda dos barracos improvisados com resto de madeira, lona, papelão e sonhos desfeitos. A sola do coturno preto pisava na lama de esgoto a céu aberto e milhares de frustrações cotidianas. Só via, além da cor da pele do meliante, seus olhos brancos arregalados na noite mais escura que já devia ter visto na vida.
— Mito.
Repetiu baixinho para si mesmo e passou a lâmina na jugular.
Não foi tão fácil quanto via nos filmes, mas nem um ruído se espalhou pela noite. Morreu calado.
Sorriu satisfeito enquanto o pacote se desmanchava no chão fétido.
— Uma mãe vai chorar amanhã e não vai ser a minha.
Pensou mais do que satisfeito consigo mesmo.
— ...não mandei abrir as pernas e por bandido no mundo...
Limpou a lâmina e guardou na bainha preza a cintura. Nada ouviu, nada aconteceu. Total silêncio.
— Ninguém viu nada...
Pensou, enquanto admirava a inscrição no muro.
— Aqui ninguém vê nada, nada nunca, mito!
Voltou para viatura, onde os outros três subordinados o aguardam. Entrou, bateu a porta com excessiva força, fingindo não perceber e disse, quase sorrindo:
— Missão cumprida.


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

16 agosto 2019

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANQUELAS - PARTE 10


Ernande Valentin do Prado

O enterro de Valdomiro sairá às 16 horas rumo ao cemitério do Bairro da Capelinha. Segundo foi apurado por esta reportagem, Rosangela Santos, viúva de Valdomiro, proibiu que o pastor da igreja frequentada pelo marido, comparecesse ao enterro. Amigos próximos disseram que a viúva responsabilizar o pastor, defensor do uso de armas por homens de bem, pelo marido ter comprado um revólver.
O pastor não quis comentar a morte do fiel de sua igreja e nem a opinião da viúva sobre ele. Apenas disse:

— Só Deus pode me julgar.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

09 agosto 2019

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANQUELAS - PARTE 9



Ernande Valentin do Prado

Jaime Peçanha, 32 anos, policial militar há seis anos, foi baleado no peito nesta madrugada ao atender chamada de violência doméstica.
Os vizinhos estão chocados com a brutalidade do crime. Segundo eles, o assassino era calmo e tranquilo, vivia de casa para o trabalho e não incomodava os vizinhos.
Após atirar no soldado, o homem evadiu-se do local. O Cabo Amarildo, parceiro de Jaime, socorreu o companheiro e não pode ir atrás do assassino. Até o momento não se tem pista do paradeiro dele, mas o delegado Gervásio acredita que logo colocarão as mãos no homicida. A corporação está revoltada. O comandante do batalhão declarou:
“Nestas horas, ninguém dos direitos humanos aparece para defender a família do policial, se fosse bandido, já tinha fila de advogados dos direitos humanos em minha porta, acusando a polícia de brutalidade”.
Com mais essa morte, já são 27 os policiais militares mortos em serviço, só esse ano.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

26 julho 2019

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANQUELAS - PARTE 8



Ernande Valentin do Prado

Bandidos portando armas de grosso calibre invadiram, nesta madrugada, a delegacia da Capelina e resgataram dois detentos. Para entrar na delegacia imobilizaram o delegado de plantão e um carcereiro. Na fuga trocaram tiros com PMs que estava chegando na delegacia. Três, dos quatro militares, morrem no local. O sargento Mendonça foi levado ao hospital com vida, mas morreu no caminho.
De acordo com informações da Polícia Militar, a invasão aconteceu por volta das 3 horas. Os meliantes estavam muito bem armados, inclusive foram encontradas, pela perícia, cápsulas disparadas de calibre 762 de uso restrito as forças armadas.
 Além de libertar os presos, os criminosos roubaram todas as armas da delegacia, os computadores e até os celulares dos policiais, que foram deixados amarrados no banheiro.
O delegado acredita que a motivação da invasão era libertar Abraão, líder da milícia.  O bando aproveitou a oportunidade e libertou todos os outros presos, com exceção de Amebão, líder do tráfico de drogas na região e principal adversário dos milicianos.
O comando interventor divulgou nota informando que assumirá a responsabilidade pela captura dos presos libertados e a investigação para determinar como o bando conseguiu armas de uso exclusivo das forças armadas.

Com mais essa morte, já são 31 os policiais militares mortos em serviço, só esse ano.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

12 julho 2019

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANQUELAS - PARTE 7


Ernande Valentin do Prado

Porte de armas é o documento, com validade de até 5 anos, que autoriza o cidadão a portar, transportar e trazer consigo uma arma de fogo, de forma discreta, fora das dependências de sua residência ou local de trabalho.
Para obter o porte de arma de fogo o cidadão deve dirigir-se a uma unidade da Polícia Federal munido de requerimento preenchido, além de apresentar os seguintes documentos e condições:
(a) ter idade mínima de 25 anos;
(b) cópias autenticadas ou original e cópia do RG, CPF e comprovante de residência (Água, Luz, Telefone, DECLARAÇÃO com firma reconhecida do titular da conta ou do proprietário do imóvel, Certidão de Casamento ou de Comunhão Estável);
(c) declaração escrita da efetiva necessidade, expondo fatos e circunstâncias que justifiquem o pedido, principalmente no tocante ao exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física;
(d) comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual (incluindo Juizados Especiais Criminais), Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, que poderão ser fornecidas por meios eletrônicos;
 (e) apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa;
(f) comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, realizado em prazo não superior a 01 ano, que deverá ser atestado por instrutor de armamento e tiro e psicólogo credenciado pela Polícia Federal;
(g) cópia do certificado de registro de arma de fogo;

(h) 1 (uma) foto 3x4 recente.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

28 junho 2019

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANQUELAS - PARTE 6


Ernande Valentin do Prado

Ontem, Valdomiro Santos, 38 anos, entregador de encomendas, morador do Bairro Capelinha e frequentador da Igreja do Rebanho Remanescente de Israel, foi alvejado com três tiros de fuzil 762, de uso exclusivo das forças armadas, por soldados no centro da cidade.

Segundo o comando militar, o elemento estava portando uma arma clandestina na cintura, calibre 38.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

14 junho 2019

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANQUELAS - PARTE 5


Ernande Valentin do Prado


O interventor militar, General Osório, disse que é “fundamental” mudar as leis do país de modo que seja permitido ao militar, ao menos durante a intervenção, alvejar qualquer homem armado na rua. Sem essa liberdade de ação, disse o General, a intervenção irá fracassar e muitos homens de bem vão morrer.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

31 maio 2019

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANQUELAS - PARTE 4


Ernande Valentin do Prado

Jaime sorriu ouvindo o homem no carro de som.
— O bandido anda armado, mas o pai de família está indefeso.
Disse o homem e esperou pelos aplausos.
— Verdade!
Aplaudiu quase sozinho Jaime com entusiasmo exagerado, enquanto cutucava um senhor de terno e gravata, com uma bíblia embaixo do braço, em pé ao seu lado.
— Esse é bom, né não?
Disse encarando o homem, esperando uma resposta que só poderia ser positiva, segundo o que acreditava como uma verdade absoluta.
— Gente como a gente, né não?
O homem, constrangido, tentou afastar-se. Insistente, aguardando sua resposta, Jaime deu um passo em direção ao senhor com a bíblia e continuo argumentando:
— Pai de família tem que andar armado, né não? Eu mesmo não saio de casa sem meu treisoitão.
Disse e apalpou o volume na cintura para que o homem visse.
— Esse é meu, não é da corporação. Tô ou não tô certo?
Jaime, desde criança está sempre disposto a comprar briga. Não precisa motivo, parece que nasceu com ódio ou que relaxa esmurrando alguém. Para melhor executar seu talento, desde cedo frequenta academias e aulas de jui shih tzu. Tem vontade de ser lutador de MMA, mas já ouviu o Sargento Mendonça dizendo que isso não é para os homens da corporação.  Jaime leva muito em conta a opinião do sargento mais durão do batalhão.
Jaime, nos dias de folga, diverte-se metendo medo nas pessoas que discordam de suas opiniões. Coloca roupas civis e entra em todo tipo de discussão.
Queria mesmo era voltar a descer a porrada em serviço, mas depois de responder dois processos disciplinares, resolveu atender ao pedido do coronel e maneirar por uns tempos.
— Tem sempre um escroto dos direitos humanos de olho na gente.
Disse o coronel, ao arquivar mais um processo disciplinar contra ele.
— Direitos humanos só para humanos, coronel...
Disse batendo continência.
O coronel sorriu olhando o soldado sair de sua sala.
— Cuidado com as câmeras de celulares...
Ainda acrescentou o coronel.
Às 20 horas, daquela mesma noite, Jaime estava sentado no banco direito da viatura, estacionada em frente ao Cachorro quente do Zé Pretinho. Atendeu o rádio: violência doméstica. 
— Coisa boba...
Pensou.
Instintivamente levou a mão ao revólver e pensou que seria bom trabalhar na viatura do Sargento Mendonça, trocar tiros com marginal de verdade. Ultimamente só atendia esse tipo de chamado, quando não era marido bêbado, era som alto, quase sempre em igrejas pentecostais. Essas chamadas o Sargento não atende.
Certa vez, quando chegou para atender um destes chamados, já mais de meia noite, prendeu o reclamante e desculpou-se com o pastor. Essa história contou de forma anedótica mais de uma vez, sempre tomando cerveja em bares onde PEMES não pagam as próprias despesas.
— Onde já se viu? 
Repetia com o copo na mão, falando cada vez mais alto e mais entusiasmado:
— O negão era da umbanda...
Dizia esperando que a conclusão fosse óbvia para todos e diante do silêncio, concluía gritando:
— ...vagabundo, né não? Enfiei o cano do treisoitão na boca do meliante, algemei e levei o negão embaixo de porrada para delegacia do Gervásio, que além de delegado dos brabos, é pastor da Assembleia de Deus.
E antes que todos se afastassem, acrescentou:
— Satanista na minha área não, né não, mermão?
Quando chegou ao local, já não ouviu mais nada. A briga devia ter terminado. Mesmo assim resolveu entrar para averiguar, quem sabe ainda pudesse dar uns sopapos...
Muitas vezes divertia-se agredindo o agressor. Era sempre a mesma coisa.
— A mulher, depois de apanhar bem...
Dizia.
— ... ainda pede pelo amor de Deus para liberar o seu marido.
Ria contando essas histórias nas sessões de cerveja e salgadinhos na faixa, nos bares do bairro, enquanto a viatura ficava estacionada em cima da calçada.
— Mulher é bicho sem vergonha, né não?
Dizia ao colega, no volante da viatura:
— Nem precisa descer. Essa região é de casas de trabalhador, chá comigo, eu resolvo.
 Desceu, entrou pelo portão, caminhou através do jardim ouvindo o vira-lata e o colega parar em uma estação de rádio que tocava “Bichos escrotos”, do Titãs. Deu três batidas leves na porta:
— Abre a porta, cidadão, é a polícia.
Foi o que disse com voz firme.
A porta não se abriu. Jaime bateu novamente três vezes, agora mais forte e gritou:
— Abre, é a polícia.
Esperou e a porta não se abriu. De dentro, o homem de bem, pai de família, puxou o gatilho duas vezes.



[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


24 maio 2019

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANQUELAS - PARTE 3


Ernande Valentin do Prado

— Homi, deixa disso, você sabe atirá, Valdomiro?
— Isso se aprende, Rosangela, isso se aprende muito fácil, sabe disso, que você nem é burra.
No culto de terça-feira, o pastor disse, com todas as letras, para que não houvessem dúvidas, que todo homem de bem, todo pai de família deveria andar armado e se defender dos bandidos, dos malditos bandidos.
— Nanias...
Disse o pastor, esmurrando o púlpito.
— ...lá no seu tempo, já dizia: uma colher para erguer o muro, em uma mão e a espada na outra. E por que, irmãos, Nanias disse isso? Ele disse porque o pai de família, o homem de bem, não pode irmãos, não pode sob pena de pagar com a vida, não pode deixar de se defender.
Esmurrou novamente o púlpito enquanto encarava os fies admirados do poder de oratório do pastor. Não só do poder de falar, de encantar, mas da sabedoria do pastor, que era capaz de falar de diversos assuntos e tirar as dúvidas de seu rebanho enquanto emocionava.
— Os bandidos, os canalhas, os comunistas, esses, irmãos, estão em toda parte, eles podem andar armados, podem entrar na sua casa, estuprar sua mulher, sua filha, rasgar a sua bíblia, atirar no seu cachorro...
É isso mesmo, balançava a cabeça concordando, Valdomiro. E já fazia seus planos, suas contas:
— Preciso arranjar um revólver para protege minha família, meu cachorro.
— E você tem cachorro, criatura?
Disse a mulher, irritada, quase ouvindo os pensamentos do marido, enquanto colocava a roupa na máquina de lavar.
— O pastor disse, no culto de terça-feira...
— Home, lá vem você falar desse pastor, dessa igreja... você sabe o que penso de gente que anda com bíblia embaixo do braço, não sabe?
Disse Rosângela, caminhando para o quarto, onde tirou o lençol da cama, as fronhas dos travesseiros e jogou nas mãos do marido:
— Pare de fala e joga isso na máquina de lava e vem me ajuda a amarra um lençol limpo nessa cama, que não suporto lençol embolado.
— Só deixa eu fala: o pastor disse que todo homi de bem...
— Deixa que eu faço sozinha...
Disse Rosângela com toda impaciência que lhe era peculiar, ainda mais naquela hora da manhã.
— ...queria vê esse pastor trabalha ao invés de enche a cabeça dos tonto ...eu já te pedi, Valdomiro, já te implorei mais de uma veiz pra não fala nesse pastor e nessa igreja comigo, se não quisé  me vê vira um bicho. Qué i na igreja, Valdomiro, vá, não vou mais falá, cada um com suas mania, mas não encha meu saco falando em bíblia, falando em conversa de pastor. Um burro demora formar, mas quando forma dá gosto...
Disse a mulher forrando sozinha o lençol, estampado com flores vermelhas, na cama e já levantando o colchão para amarrar.
— Por que o homi de bem, o pai de família tem que se entregá como uma ovelha muda ao matadoro, se o bandido pode andá armado, me diz, mulher?
— Isso eu não sei, Valdomiro. Nem sei se bandido pede autorização pra andá armado, o que sei mesmo, homi, é que “otário é otário e malandro é malandro.
Disse Rosângela ao mesmo tempo em que caminhava para lavanderia. Valdomiro tentava ignorar a agressividade da mulher com as coisas da igreja e dar a outra face.
— Vou ora por essa infeliz.
Era o que pensava enquanto tentava não se abalar.
Na assembleia o pastor disse: “em Exudus 22:2,3, a bíblia autoriza o cristão a andar armado e a se defender”.
— Por isso, irmãos, cada um de nós, que somos homens de bens, deveríamos comprar um revólver, não para sair por aí atirando, barbarizando geral, porque cristão não é disso. Cristão é ordeiro, é respeitador das leis, da moral, da família, da propriedade alheia, mas o cristão, caros irmãos, o cristão tem o direito de se defender, de defender sua propriedade, seus bens...
Parou por um segundo, como que repensando o que acabara de dizer, e continuou:
— ...o cristão tem mais do que o direito de se defender, o cristão tem o dever, a obrigação de se defender, ele não pode ser um boboca, tem que se defender. O cristão não pode aceitar, como os direitos humanos querem, que só bandido tenha armas. O cristão tem que usar armas para ser respeitado pelos bandidos.


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

10 maio 2019

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANQUELAS - PARTE 2



Ernande Valentin do Prado

— Se não fosse eu, seria outro...
Justificou-se com sua consciência, fechou o porta-malas do chevette e trocou de chave com o comprador.
Entrou no carro deixado pelo outro, que atrás do volante do chevette sumiu na escuridão. Antes disse:
— Some com essa merda o mais rápido que der.
Sem medo de ser feliz, mas temendo vacilar com tanto dinheiro em um carro roubado, voltou pelo mesmo caminho que chegou, conforme fora orientado.
Pela manhã, antes de se levantar, ouviu no rádio a notícia. Sabia, mesmo tentando se justificar: “se não fosse eu, seria outro”, que a responsabilidade era sua.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

26 abril 2019

JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANQUELAS - PARTE 1



Ernande Valentin do Prado

Lucas, de pouco mais de oito anos, aproveitou-se que se distraíram dele e ficou para trás, queria andar sozinho por entre os túmulos. Era a primeira vez que entrara em um cemitério. Não sentia medo, não sentia nada, além do desejo de aventura. Quer dizer, sentia certo remorso por não estar tão triste quanto todos esperavam que estivesse, mas era só uma sensação, não sabia disto, não deste jeito.
Por instantes esqueceu-se do que acontecia e do porque estava ali. Isso durou pouco, só até chegar ao túmulo onde colocariam o caixão com o corpo de seu pai. Foi quando, assim de repente se deu conta de que não mais veria seu pai, nunca mais. Sentiu o que deveria ser tristeza, o que deveria ser o que todos esperavam que ele sentisse.
Pela primeira vez, ao menos era assim que lembrava, via sua mãe como estava agora na beira do buraco: rosto lavado pelas lágrimas, olheiras profundas, que lhe davam a aparência feia, cabelos despenteados, como nunca vira, nem quando a mãe levantava pela manhã para lhe chamar para a aula.
A mãe, mais do que falando, estava gritando e chorando ao mesmo tempo, quase não se entendia seu lamento:
— Eu avisei, eu pedi para esse home...
Dizia a mulher indignada:
— ...não vá se metê com arma, homi de Deus. Mas Valdomiro, depois que se enfiou nessa igreja, virou um jumento. Só ouvia o que o guia dos jumentos falava.
Rosangela parecia a única pessoa indignada no cortejo fúnebre, formado por parentes do morto e alguns colegas da empresa onde Valdomiro trabalhava. Será que todos estavam acostumados com essa vida?

Da igreja do pai, não veio ninguém, nem o pastor.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

19 setembro 2018

O mundo impossível

O mundo impossível por Mayara Floss

- Você tem certeza disso? - o homem pergunta para a mulher enquanto segura o filho de três anos no colo.
- Agora não tem mais volta, talvez Jimi possa voltar, mas só se a Terra melhorar. - ela acaricia o filho. 
- Estou com medo da viagem. - ele diz.
- Você nem vai ver, vamos entrar na crioimersão - diz ela.
- Verdade - ele diz mas  a ideia toda não agrada, ele imagina eles entrando na câmera deixando um vazio silencioso na conversa. - Ao menos marquei para fazermos a crioimersao os três juntos na mesma câmera. - complementa pensando no custo extra para uma câmera familiar.
A mulher suspira e diz:
- Por que você sempre tem que ser tão fraco? Não tem o que fazer, a Terra não dá mais. - ela fala de forma incisiva. Ele responde:
- Eu sei que a Terra não dá mais, por isso que estamos embarcando aqui. Mas vou sentir saudades. - diz com os olhos baixos.
- A saudades que a gente sente é de um lugar que não existe mais, olhe pela janela. - ela diz cética.Ele olha pela janela seca, os olhos são secos, a tosse é seca. 
- A Terra esquentou demais a natureza vai ter que fazer as pazes com o que a humanidade fez, estamos tomando a decisão certa e temos dinheiro pra conseguir um bom Condominio em Marte. - e segura a mão dele. 
- Vivemos em um mundo impossível. - ele diz, repetindo a propaganda que entra pela sua retina da Marte Travels. Ele inclusive começa a lembrar dos argumentos que é bom sair da Terra para deixar ela se reconstituir, um dia a humanidade volta. Uma parte da humanidade fica, ele pensa. Na verdade, quem não tem dinheiro fica. Fora as pessoas que ganham bolsas da Marte Travels para viverem em Marte. 

Ele fecha os olhos, mas nem assim imagem da terra seca desaparece. Ainda lembra de 2040 quando era mais novo e conseguiu ver um pouco da natureza nos parques, sua mãe dizia que não era mais tão bonita, mas ainda assim quando chovia levantava um cheiro fresco da terra molhada. Agora só levanta ácido que queima o nariz.

- Passageiros do voo MT1984 por favor dirijam-se até o portão B24 para Embarque. Por favor, tenham em mãos o passaporte inteplanetário. Primeiramente será realizado o embarque de clientes plus e prioritários.- diz a voz feminina no alto-falante. 

Abraços que pousam,
Mayara Floss

12 setembro 2018

TCLE

Ilustração: Pawel Kuczynski


Os pais sentam no escritório, o médico está por vir , a mãe segura o bebê recém nascido com força enquanto embala num ritmo que é mais para tranquiliza-la do que para tranquilizar o bebê, não fazem nem 48hs que ele nasceu. Eles postergaram ao máximo essa decisão. No hospital tudo parece áspero, as paredes azul claro, as janelas para um mundo quente e impossível de um ano quase impossível: 2084. A mesa branca áspera separa a cadeira dos pais e a cadeira do médico. Tudo precede a decisão que ainda não foi tomada.

O médico abre a porta dos fundos do consultório sem bater nem avisar, tem certas coisas que nem o tempo resolve, o que faz o homem e a mulher darem um sobressalto, por sorte o bebê não acordou, mas os olhos da mulher já usaram esse pressuposto para encherem de água. O médico de camisa sem botões, a mais nova modernidade desta era e uma calça super slim também da mais última moda. Ele tem um sorriso grande olha com comoção para os pais falando: 

- Senhor e senhora Silva, bom quase já não acontece mais nos dias de hoje, mas vejo que vocês estão em duvida em relação ao termo de consentimento livre e esclarecido e colocam em risco o futuro do filho de vocês.

O pai tenta falar mas falha a voz:

- É-é-é que não estamos certos se a colocação do implante é uma boa ideia. 

O médico olha para eles: 
- Qual é o medo de vocês?

A mãe fala:
- O implante parece ser seguro, mas temos medo que o nosso filho possa também ser controlado por ele.

O médico então segue:
- Em relação ao procedimento é extremamente seguro, cerca de 45 minutos e o, como é mesmo o nome dele? - e olha os formulários - Ah sim o Gabriel, poderá desfrutar de uma vida normal com acesso a informação direto no telencéfalo dele, basta pensar para fazer as conexões. A grande vantagem é que quanto menor a pessoa mais facilmente se adapta a transformação. Eu por exemplo coloquei o implante com três anos apenas e precisei de pelo menos toda a minha infância para lidar bem com ele. - os pais assentem com a cabeça, o médico faz mais uma observação: Vejo que vocês decidiram por não usar o implante.

O pai diz ajustando o óculos tecnológico que busca informações e interage com a lente em sua Iris enquanto escuta o médico:
- Não, na nossa época o governo não fornecia gratuitamente como agora. Nos mantivemos como Androids tipo 1. 

O médico diz:
- Ah sim, certamente, mas então seguindo a grande vantagem é que todas as crianças agora serão muito mais competitivas e o filho de vocês não conseguirá acompanhar o nível educacional se não colocar o implante. Vocês poderão dar um futuro para o filho de vocês. Se não ele será um excluido digital, como já existem muitas crianças em países menos desenvolvidos.

A mãe diz:
- Sim, estamos acompanhando as propagandas na nossa retina. 

O médico segue:
- Ele poderá ter acesso às informações instantaneamente, e irá processa-las muito mais rapidamente, com a energia do cérebro dele e irá desenvolver-se muito bem.

O pai pergunta:
- E qual a sua opinião sobre a Síndrome de Excesso de informação?

O médico diz:
- Aguarde um segundo vamos conectar nossos dispositivos e vou mostrar algo para vocês.

Uma sequência de imagens envolvendo os pais e a criança começa a aparecer na retina dos pais e do médico, e os implantes cocleares começam a vibrar com as informações sobre o futuro da criança, cuidados para evitar a síndrome do excesso de informação e claro, no final, eles aparecem abraçados e felizes com um possível Gabriel já crescido, que já muito se assemelha ao que será o real Gabriel, pois todos os bebês agora tem leitura de código genético fenotípica prévia. É claro que o logo do laboratório BB aparece no final. 

- Perfeito não? - Diz o médico - para vocês concordarem com isso basta assinarem esse termo de consentimento livre e esclarecido digital. 

- Está é uma bela demonstração de amostra grátis do laboratório BB - diz o pai. O médico sorri e pega uma caneta digital, um ato simbólico nos dias de hoje, que estava no bolso e estende para a mãe, não sem antes dizer - pelo futuro do seu filho. 


Abraços que pousam,
Mayara Floss

16 março 2018

NINGUÉM SENTIU SUA FALTA


Imagem capturada na internet, 2018.
Ernande Valentin do Prado

Kátia Maria das Dores, de vinte e três anos, saiu do forró do Bezerra, na sexta-feira por volta das três horas. Caminhou pela rua, descalça carregando os sapatos nas mãos. Ia em direção a sua casa, que ficava perto.  
Estava alcoolizada o suficiente para trançar as pernas.
Apesar de caminhar em direção à sua casa, Kátia lá não chegou.
Ela deixou os meninos com Dona Margarida, na sexta-feira pela manhã e foi se arrumar para o forró que iria à noite. Dona Margarida, na segunda, ainda não tinha dado falta da filha. A mãe, acostumada com os sumiços eventuais da filha, não deu importância ao fato, nem deu queixa na delegacia. Sabia que a filha poderia ter se desviado no caminho, assim como já tinha desviado da vida que queria para ela.
Às vezes, Dona Margarida Maria das Dores, queria que a filha sumisse de vez. Estava cansada de passar vergonha com a menina tão falada que, em seu íntimo, pedia a Deus...
— Melhor nem dizer.
 Quando lhe perguntaram sobre Kátia, na segunda-feira, disse despreocupada:
— Dessa aí só Deus sabe.
Pensava que tivesse tomado o caminho de sua própria casa ou ido dormir com o ex-marido.
— Não seria a primeira vez... e nem a última...
Era o que pensava.
- ...não sei qual desses dois tem menos vergonha na cara, Deus me livre!
A sofrida mãe limpou o suor da testa com a manga do vestido, olhando os netos pequenos que brincavam no quintal. O menino corria atrás de uma gorda galinha e a menina penteava os ralos cabelo loiros de uma imitação baratinha de Barbie, já bastante desgastada.
Kátia e Marcelino estavam separados há seis meses e volta e meia se encontravam para fazer as pazes...
— Pelo bem das crianças...
Era o que falava o homem franzino, de mais ou menos metro e sessenta e alguma coisa.
Na única foto encontrada de Marcelino, via-se um homem com barba tão malfeita quanto sua aparencia desmilinguida.
— Que mulher ia querer um trapo desses?
Era o que pensava o policial, olhando a barba que crescia em tufos aqui e ali e buracos entre uma moita e outra de barba. Mas uma coisa era impressionante: a barba do homenzinho era tão preta que deu até inveja. O encarregado da investigação, de uns 40 e tantos anos, já tinha os pelos da cara bem grisalhos. Até coçou o queixo branco olhando a cor da noite da barba do ex-marido de Kátia.
— Ao menos não sou corno...
Pensou em silêncio o policial e logo corrigiu-se mentalmente, porque corno é sempre o último a saber e quase sempre o único a não saber. Então, se era corno, como saberia?
— ... ao menos não tenho fama de broxa.
Conformou-se e decidiu não deixar mais sua imaginação devanear em assunto que não tinham relação com o caso.
Marcelino Pedro Cavalcante, de vinte oito anos fora encontrado morto na segunda-feira por volta do meio dia. Um tiro na cabeça. Quer dizer, um tiro que entrou pela base do crânio e saiu na altura do osso occipital. Morte instantânea, pensou o policial, já mais acostumado com aquilo do que o ser humano deveria ser capaz.
A arma estava próxima da mão esquerda da vítima, que era canhoto. No quintal a polícia encontrou o corpo de Kátia. A tragédia aconteceu na casa onde moravam, quando casados. Ele não aceitava o fim do relacionamento e tentou a reconciliação, pela quinta e última vez.
— Ao menos é o que sugeria a cena.
Concluiu o policial, ainda com a imagem da barba preta de Marcelino na cabeça:
— Que desperdício.
Marcelino atirou em Kátia na madrugada de sexta para sábado, depois de a encontra-la saindo do Forró do Bezerra, famoso risca faca de Brejo Grande.  Ao ver a ex-companheira ferida, ficou desesperado.
— O que me resta na vida, agora?
Não pensou nos filhos, nem no que poderia lhe acontecer. Pensou na vida sem Kátia e isso parecia insuportável. Com ela viva ainda tinha esperanças, podia correr atrás dela, brigar, insistir, até odiá-la. Mas com ela morta, qual o sentido de sua vida?
O delegado, Galênio Silveira do Amaral, usando seu mais novo terno, disse não ter dúvidas de que fora um crime passional. O casal estava separado, e o homem não aceitava o fim do relacionamento.
— Já ouviu alguma testemunha, Delegado?
Perguntou o rapaz com o telefone celular na não.
— Perfeitamente...
Disse o delegado, virando-se para outro rapaz que tirava fotos.
— ...testemunhas afirmaram que Marcelino perseguia a ex-mulher, exigindo a reconciliação. Várias testemunhas afirmaram que os dois brigavam até em locais públicos e que, não raras vezes, Kátia se referia ao ex-marido como broxinha.
— Ela não dava satisfação do que fazia.
Disse a mãe, sem nenhum remorso, mas também sem esconder uma lágrima que rolou do olho esquerdo.
— Foi uma surpresa encontrar o corpo de Kátia no quintal da casa...
Disse o delegado, pousando para mais uma foto, que minutos depois estaria no blog de notícias policiais e nos programas policiais das rádios da cidade e até da capital.
— Quem sabe até nos programas da tv.
Pesava secretamente.
O delegado não soube responder se existiam denúncias de ameaças de Marcelino contra a vida da ex-companheira, talvez por serem muitos os casos de violência na cidade.
— Ou talvez por não dar importância a esse tipo de denúncia.
Pensou o rapaz que gravava o depoimento do delegado com o celular.
— Deixa isso prá lá, coitado do broxinha.
Disse, certa vez o delegado, para o policial de barba quase branca, diante de uma queixa de Kátia.
Kátia passou a madrugada de sexta para sábado, todo o domingo e só fora encontra, já morta, na segunda-feira por volta do meio dia.
— ...o tiro nem foi tão sério, se ela tivesse sido socorrida de imediato, a vítima não estaria morta.
Afirmou o delegado e concluiu:
— “Kátia morreu porque ninguém sentiu sua falta”.



[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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