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05 novembro 2021

SAGARANA ROUBADO

 


Ernande Valentin do Prado

 

Fátima serviu-se na cozinha com arroz, feijão, frango e mais alguma outra coisa e foi para sala com o prato na mão. Para. Antes de falar de Fátima, preciso falar de minha mãe, Dona Iolanda. Ela é mineira, e isso por si só quer dizer que cozinha em panelas gigantesca, prevendo que alguém inesperado vai chegar. E Fátima sempre chegava. Chegava tanto que nem era mais inesperada, minha mãe já cozinhava pensando nela:

— A Fátima gosta de almeirão cortando bem fininho,

ou

 — vou fazer sopa de batata com massa de tomate, que a Fátima gosta.

Fátima trabalhava no Centro da cidade em um laboratório de revelação fotográfica especializada em filme preto e branco.  Revelação de filme é uma coisa que os mais novos talvez nunca tenham ouvido falar e quem tem idade para saber, pode nem ter memória para se lembrar. Em todo caso é bom dizer, houve um tempo em que não existia fotografia digital e as fotos precisavam ser reveladas em laboratórios. Existiam rolos Kodak ou Fuji de 12, 24 ou 36 poses. E revelar essas fotos era o trabalho de Fátima.

Por volta das 20 horas a gente já começava a esperar por Fátima. As vezes ela chegava muito tarde e minha mãe cansava de esperar, guardava as panelas, mas para ela isso não era inconveniente, ia para cozinha, esquentava tudo, comia, lavava a louça, sentava para ver um pouco da novela, bater papo e só depois ia para casa.

Voltando ao caminho entre a cozinha e a sala: Fátima flagrou o livro: Sagarana, de Guimaraes Rosa, descuidadamente em cima da TV. Com uma mão segurava o prato, com a outra pegou o livro, olhou a primeira página e disse:

— Este livro é meu.

— Como assim, esse livro é seu?

Me apressei em questionar, desacreditar e acrescentar:

— Eu roube este livro do Paulo.

— Eu tinha emprestado para o Marcelo,

disse Fátima,

— que disse ter emprestou para o Valdemar, que emprestou para alguém e não lembrar quem, faz uns três anos, em um encontro do grupo de jovens.

Sagarana, de Guimarães Rosa. Um livro clássico de contos. Importante, imponente, elegante e de uma boniteza que não dá para medir. Eu não tenho mais esse exemplar. Emprestei para algum ladrão e perdi no labirinto do tempo. infelizmente Marcelo, o primeiro ladrão do livro, morreu de COVID-19. Saudade de todos: Fátima, Paulo, Valdemar, Marcelo, minha mãe, meu pai, minhas irmãs e do livro roubado.  

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