Ernande Valentin
do Prado
Fátima
serviu-se na cozinha com arroz, feijão, frango e mais alguma outra coisa e foi
para sala com o prato na mão. Para. Antes de falar de Fátima, preciso falar de
minha mãe, Dona Iolanda. Ela é mineira, e isso por si só quer dizer que cozinha
em panelas gigantesca, prevendo que alguém inesperado vai chegar. E Fátima sempre
chegava. Chegava tanto que nem era mais inesperada, minha mãe já cozinhava
pensando nela:
— A
Fátima gosta de almeirão cortando bem fininho,
ou
— vou fazer sopa de batata com massa de tomate,
que a Fátima gosta.
Fátima trabalhava
no Centro da cidade em um laboratório de revelação fotográfica especializada em
filme preto e branco. Revelação de filme
é uma coisa que os mais novos talvez nunca tenham ouvido falar e quem tem idade
para saber, pode nem ter memória para se lembrar. Em todo caso é bom dizer, houve
um tempo em que não existia fotografia digital e as fotos precisavam ser
reveladas em laboratórios. Existiam rolos Kodak ou Fuji de 12, 24 ou 36 poses.
E revelar essas fotos era o trabalho de Fátima.
Por volta
das 20 horas a gente já começava a esperar por Fátima. As vezes ela chegava
muito tarde e minha mãe cansava de esperar, guardava as panelas, mas para ela
isso não era inconveniente, ia para cozinha, esquentava tudo, comia, lavava a
louça, sentava para ver um pouco da novela, bater papo e só depois ia para
casa.
Voltando
ao caminho entre a cozinha e a sala: Fátima flagrou o livro: Sagarana, de
Guimaraes Rosa, descuidadamente em cima da TV. Com uma mão segurava o prato,
com a outra pegou o livro, olhou a primeira página e disse:
— Este
livro é meu.
— Como
assim, esse livro é seu?
Me
apressei em questionar, desacreditar e acrescentar:
— Eu roube
este livro do Paulo.
— Eu
tinha emprestado para o Marcelo,
disse
Fátima,
— que disse
ter emprestou para o Valdemar, que emprestou para alguém e não lembrar quem,
faz uns três anos, em um encontro do grupo de jovens.
Sagarana,
de Guimarães Rosa. Um livro clássico de contos. Importante, imponente, elegante
e de uma boniteza que não dá para medir. Eu não tenho mais esse exemplar.
Emprestei para algum ladrão e perdi no labirinto do tempo. infelizmente
Marcelo, o primeiro ladrão do livro, morreu de COVID-19. Saudade de todos: Fátima,
Paulo, Valdemar, Marcelo, minha mãe, meu pai, minhas irmãs e do livro roubado.
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