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02 fevereiro 2018

MARIAS

Imagem capturada na internet e adaptada. 2018.
Ernande Valentin do Prado

1 Maria precisa ir

Quando Gustavo nasceu, não pude cuidar dele. Uma impossibilidade se apossou de meu eu, como uma entidade alienígena, tomou conta do corpo e da alma. Maria veio nesta época em que tudo era escuridão. E trouxe luz.
Era como se Gustavo não tivesse mãe, até ela chegar, não tinha quem cuidasse dele. Até o peito foi Maria quem deu. O filho dela só tinha mãe de noite, alta noite, quando ela voltava para casa, na periferia onde morava (e nunca conheci), acho que Vila São José ou alguma destas com nome de santo.
Agora a luz começou a voltar à minha alma... Gustavo tem que entender: Maria precisa ir (a mãe dele sou eu).

2 Maria vai

Ele me despediu...
O cachorro escapou da coleira e se enfiou embaixo de um daqueles carrões vermelhos que circulam em alta velocidade aqui no bairro.
— Morreu, morreu, o que eu podia fazer?
Dois anos cuidando deste bicho, vi crescer, ficar doente, sarar. Limpei coco, limpei vômito, limpei xixi. Dei de comer, dei banho, dei companhia e carinho, que sem eu era um bicho infeliz.
Agora morreu...

— Eu é que devia ficar triste!

3 Maria fica

— Precisa chegar às seis horas.
Foi o que a mulher me disse, ao mesmo tempo que falava ao celular, com alguém, de um jeito! Sei não, parecia falar com homem, deus me livre:
— ...seis horas em ponto tô aí, pode esperar? Faço valer a pena, juro. Antes não tenho como sair, não posso deixar Stephanny sozinha.
Continuou a mulher a falar, jogando o cabelo loiro artificial de um lado para o outro, trocando o telefone de orelha. Eu sem saber se ela falava comigo ou com o amante. Na dúvida fiquei quietinha, fingindo não notar o tom da conversa.
— ...espera só mais um pouquinnnhoooo. Já vou, promete que espera?
Ficou falando arrastado, olhando pela janela. Depois virou-se para mim:
— Tudo certo, minha filha, pode chegar às seis, amanhã.

Seis horas, pensava eu. Como vou chegar aqui seis horas? Quer dizer, eu tentava pensar nisso, mas de fato pensava em outra coisa: será que vou ter que acobertar o caso da madame, quando o patrão perguntar onde ele foi?

4 Maria não chegou

Marquei oito horas em ponto. Já estou quase atrasada, detesto me atrasar.
Não consigo conter a ansiedade, talvez por ser o primeiro encontro. Preciso voltar à minha vida, já são oito meses de separação e eu não estou morta.
Quase oito, quase oito, quase oito... E Maria que não atende. Bem que ela disse que lá no bairro dela nem sinal de celular tem.
Passei na depiladora, arrumei o cabelo, as unhas, comprei calcinha nova... e Maria não chega. Tinha que me deixar na mão logo hoje?
E esse telefone sem sinal.
Minhas mãos estão suadas. Não posso sair antes de Maria chega, detesto me atrasar, mas não vou sair antes. Vou ligar para ele, avisar que vou me atrasar.

Maria, cadê você?

5 Ainda Maria?

Assim como quem não quer nada, perguntei ao Paulo, no fim do dia:
— O que achou da nova babá?
Ele fez de conta quem não ouviu...
Eu entendi tudo. Cachorro! Menina novinha, com um corpão de mulher, peitão, bundão... cachorro sem vergonha. Pior que Paulinho Junior gostou dela...

Preciso arrumar outra, é urgente, de preferência velha, cheia de estrias, desdentada até. Paulinho que se conforme.

6 Maria Maria

São todas Marias, gentinha burra. Não sabem nem limpar direito, tem que ficar ensinando, insistindo, fiscalizando ou não fazem nada certo. E agora estão com essa mania de querer receber no fim o dia, como se a gente fosse obrigada a ter dinheiro vivo toda hora. Não têm mais humildade, querem exigir seus direitos, querem ser gente.
— Só tenho cartão, Maria, fica para eu te pagar na próxima semana, tá bom.
— Mais eu preciso desse dinheiro, dona...
Não vou nem olhar na cara da coitada, não é de dó não, é nojo mesmo, a mulher tem bigodes. Quando olha para ela não sei se dou risada ou se vomito.
Não vou pagar hoje, que se conforme. Agora sou obrigada a ter dinheiro em casa? Que arrume uma máquina de cartão, se quer receber. Eu que não vou ao banco.
— ...se não puder receber na próxima faxina, Maria, nem precisa voltar mais.
E são mal-agradecidas. Uma vez ofereci uma sacola de pão, que estava aí na cozinha, não quis, disse que na casa dela ninguém come pão dormido. 

7 São todas Marias

Lá vem Maria de novo, com cara de sofredora. Toda hora a mesma coisa, coitada! Não entendo porque não arruma outra família pra trabalhar.
O pior é que é tudo de propósito, só para infernizar mesmo. Já vi a pestinha jogando sorvete no chão e mandando Maria limpar, só de maldade.  Tem criança que parece já nascer ruim, Deus me perdoe, mas essa tem parte com o demo.
Minha avó dizia que a fruta não cai longe do pé, acho que é verdade, a Dona Sophia, mãe dela, parece que vive endemonhada,  até o marido corta uma com ela.
— Vaninha tá aí, tá?
— Tá não, maria, tá não.

8 Maria não sonha

Abri a porta da cozinha com cuidado, já imaginando que o traste estaria encostado nela. Infelizmente não é a primeira vez. Ontem bebeu de novo, bateu na porta até não aguentar mais, foi a maior baixaria com os vizinhos, mas não abri. Quer beber, quer farrear, quer chegar a hora que quiser? Que durma na rua, que a casa é minha.
De verdade mesmo, como fala minha patroa, minha vida está um lixo. Ela diz isso quando briga com o namorado ou tem que estudar para uma prova ou quando tem quer ir para casa dos pais no interior. Depois sai, fica o dia inteiro no Shopping e volta com um monte de sacolas, deixa no quarto, amontoadas num canto, nem desembrulha. 
Que fique na porta. Vou escovar os dentes, jogar uma água no roto, se tiver, que neste lugar água é um luxo que nem sempre tenho. 
Quando não tem água, como hoje, como acontece sempre, levo a escova, a toalha, o desodorante e tomo banho quando a patroa vai para aula ou para o Shopping. As vezes ela não sai, fica na cama o dia todo, aí não dá para tomar banho, que ela não gosta que eu use o chuveiro.
Estou cansada.
Pego a bolsa, pego o cartão do ônibus, pego as chaves, vou deixar tudo trancado, não quero o traste dentro de casa hoje. Se a raiva passar, deixo entrar quando eu voltar ou não deixo mais, vai depender do meu humor.  
Pulo o corpo do nojento encostado na porta, ainda babando e roncando.
— Que nojo, que ódio, traste desgraçado.
Caminho até o final do beco, as vizinhas, sempre tão próximas umas das outras, saem na porta para olhar minha cara mal dormida, quando passo. Viro à direita, antes olho de volta para o traste desacordado na porta, com o sol já quente na cara. Não consigo deixar de pensar: minha vida é um lixo, devia beber também.
Caminho rápido até o ponto de ônibus, que já vem passando, antes pulo o esgoto que corre no canto da rua, aceno para o ônibus.

9 Maria passou por aqui

Maria saiu do elevador carregando uma sacola, parecia cheia de roupas. Deveria ser, sua patroa vivia lhe dando as roupas que não queria mais. Vai ver era por isso que ela estava sempre tão bem vestida.
Fiquei observando aquela mulher miúda e cheia de curvas, que todos os dias, por volta das dezenove horas, passa pela portaria, quase sempre sem me notar atrás do balcão.
Hoje tá diferente, vem em minha direção, até levantei para melhorar a postura, para parecer mais alto, que mulher não gosta de baixinho. O que será que ela quer?
Está usando uns shorts jeans curtinho, uma camiseta branca, com letras prateadas bem grandes: coma! Que já vi, outras vezes, a patroa dela usando. Será isso, COMA, um sinal?
Quando maria abriu a boca, vermelha de batom, igual a patroa, ele achou que ela ia dizer outra coisa, mas só disse:
— Alex, se coisinha passar aqui, diz que eu já fui.

10 Maria só pensou

— Olha, Maria, só ajustar, vai ficar lindo em você, só usei uma vez, para ir em uma festa, tá novinho.
Eu não disse nada. Fiquei olhando a patroa segurando aquela monstruosidade prateado e pensando: que tipo de gente sem noção usa um vestido desses?
— Essa sandália, Maria, serve em você, pode levar também, combina com o vestido.
— Combina mesmo, é verdade.
Disse, olhando a sandália, que a patroa segurava na palma da mão. Salto enorme, tipo plataforma, acho que já vi em vídeos de discoteca, coisa horrível. Era isso que eu pensava, enquanto ela falava entusiasmada.
— ...pode levar, toma.
Peguei a sandália e o vestido, sem demonstrar má vontade, que minha mãe me ensinou que cavalo dado não se olha os dentes, além do mais é muito feio ser mal-agradecida. Quem sabe até posso usar esse vestido, e essa sandália, no baile dos ridículos.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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