Ana acordou antes das sete, como em todos os outros dias da semana.
Detesta levantar cedo, hoje preferia ficar na cama, curtir um pouco mais aquele
raro clima frio, mas fazer o que? Se acha uma criatura noturna e todas as
noites se obriga a dormir antes do que gostaria para não se sentir mal durante
o dia.
Mais do que acordar e levantar cedo, Ana detesta chegar atrasada, não
apenas ao trabalho, mas em tudo que faz. Calcula com exatidão o tempo
necessário para o deslocamento pela cidade, pelo trânsito cada dia mais
atravancado. Tem horror de se deixar esperar, assim como detesta esperar por
outros, porém, há muito tempo fizera a opção de esperar, uma vez que poucas
pessoas com quem convive consegue respeitar o relógio. Observa com horror que
algumas até se orgulham de nunca chegar na hora em nada do que fazem.
Outra coisa que Ana não suporta: chuva. Contando com hoje já são doze
dias sem ver o sol, fez a conta mentalmente, como fazia todas as manhãs, nos
últimos dias. Sente-se culpada por admitir que não gosta de chuva. Dias antes,
no centro da cidade, Ana viu uma senhora caminhando na calçada sem
guarda-chuva, enquanto ela recusava-se a atravessar a rua e ficou abrigada em
uma loja. A mulher parecia muito satisfeita, contente, cantava e exaltava a
água que caia de forma generosa. Com os braços levantados apontava o céu, como
que agradecendo.
Olhando aquela mulher, que ao passar lhe comprimento sorrindo, Ana
sentiu-se ainda mais culpada por não gosta de chuva. Havia se mudado do Sul,
onde vivia toda sua família, onde viveu quase toda sua vida, para fugir do
frio, da chuva, que em sua cabeça eram as mesmas coisas. Estava no Nordeste
tempo suficiente para entender o que significava chuva para maioria das
pessoas, por isso Ana procurava evitar admitir, mesmo que em pensamento, que
não gostava de chuva, de dias chuvosos.
Ao tocar os pés no gato, que dormia sobre seus chinelos, ouviu o
telefone, era a coordenadora do serviço onde trabalha.
— Tenho uma boa notícia.
Disse a mulher, mesmo antes de Ana dizer alô ou de saber quem era.
Ana trabalha no serviço público de saúde do município. Fizera concurso
há três anos, mais ou menos quando decidira mudar de vida, de cidade e viver no
Nordeste. Fora aprovada em primeiro lugar e deixou seu antigo trabalho, sua
antiga vida, seus antigos amigos, que já não a satisfaziam há muito tempo.
Queria recomeçar, sentir que fazia algo importante, não só para si mesma,
queria ser parte de alguma coisa que pudesse de fato lhe mostrar que o
juramento que fizera ao receber seu diploma não era uma simples formalidade.
Deixou o consultório privado, um casamento sem filhos, uma cidade onde ver céu
azul e sol eram momentos raros demais para ela.
— Qual a boa notícia?
Perguntou Ana, sem expectativas, nem curiosidade, sem fingir simpatia.
Tinha aprendido a não confiar naquela mulher. Lembrava com desgosto do dia que
fora chamada em sua sala para se explicar por cauda da reclamação das colegas
de trabalho. Havia assumido o cargo há seis meses e a coordenadora, sem
sair de trás da mesa, sem nem dizer: bom dia, foi logo dizendo: seus colegas
estão reclamando que a senhora é individualista, que não trabalha em grupo, não
tem espirito de corpo.
Alguns colegas da secretaria de saúde recusavam-se a atender a população
porque os consultórios estavam com mofo. Pediam que as paredes fossem pintadas,
que os aparelhos de ar condicionados fossem trocados, que construíssem, na
Unidade de Saúde, estacionamento coberto para seus carros. Enquanto nada disso
acontecia, simplesmente não estavam atendendo a população.
Ana recusava-se a agir da mesma maneira e continuava atendendo a
população normalmente, dizia que o mofo em sua parece quase não se percebia e
que apesar de concordar que mofo era uma coisa absurda, receber seus
vencimentos sem trabalhar, sem atender a população, era desonesto, era mais
absurdo do que entrar em uma sala com paredes sem tinta, além disso não gostava
de ar condicionado e não tinha carro para pôr em estacionamento, coberto ou sem
cobertura.
— Com as chuvas o teto da unidade caiu.
Ana não disse nada, esperou a mulher continuar, deveria chegar na boa
notícia em algum momento. No entanto era só isso, a boa notícia era que o teto
da Unidade de Saúde tinha caído, só isso mesmo. A mulher não parecia ter mais
nada que dizer, então ela perguntou:
— E qual é a boa notícia?
— A boa notícia é que você não precisa ir trabalhar, pode ficar em casa,
viajar, fazer o que quiser e ainda receber seu salário...