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10 novembro 2023

ABAIXO DA SUPERFÍCIE

 

O piso.



Tudo bem

Pode chamar o próximo

Não precisa pensar em mim

Ou talvez

Talvez só hoje você possa fazer algo que nem sempre se permite

Levantar os olhos

Olhar a sua frente e me ver aqui

Este sou eu

Alguém pedindo sua atenção

Mas se não puder

Nem hoje

Nem agora

Olhar só um pouco abaixo da superfície

Tudo bem

Pode chamar o próximo

Não precisa pensar em mim


Ernande Valentim do Prado é Enfermeiro, 

doutorando em saúde pública e pai de Heloisa, Beatriz e Alice 

e escreve para o Rua Balsa das 10 às Sextas-feiras.


03 novembro 2023

NADA É INSUPORTÁVEL


 Imagem colhida na intenet.



Um amigo disse

numa tarde sem céu

 

O insuportável no ser humano

é que nada é insuportável

para o ser humano

 

Vive-se com o medo

Suporta-se a fome

Acostuma-se com o frio

 

Um dia após o outro

Continua vivendo

Nutrindo o que espera por vir

 

Com os olhos fechados

(mas com muita fé)

Até não nutrir mais nada

 

É capaz de comer o que tira de uma lixeira

Hospedada no mármore das portas do céu

(Eu pensei)

 

Nada é insuportável

Para o ser humano

nada

 

Abortado por outro ser humano

(Talvez não tão humano)

Talvez…

 

Que tem muito

Que tem sobrando

que “tem mais do que precisa ter”

 

Um ano depois

Fábio encharcou o pulmão

com monóxido de carbono

Na garagem de casa

 

Sem dizer nada

Sem se lamentar

Sem pedir licença

 

(só mais um)

Entre todos

 

Nada é insuportável

Para o ser humano

nada


Ernande Valentim do Prado é Enfermeiro, 
escreve para o Rua Balsa das 10 às sextas-feiras.

27 outubro 2023

A TORRE DA IGREJA

 

Igreja matriz de Catolé do Rocha



De todos os lugares

De onde se pode olhar

 

No sertão mais verde da Paraíba

Da terra pisada por Chico Cesar

 

Miro lá longe

Ouvindo forró de plástico

 

Lá está

Reluzindo ao sol

 

Com seus cacos de vidro

Misturados ao cimento

 

Se impondo à paisagem mundana

 

A sensação é tão forte

Que até esqueço

 

Que da caixa de som

Só forró de plástico se espalha

 

Entre um copo e outro

Eu penso

 

Será mesmo

Meu Deus

 

Que santo de casa

Não obra milagres?

22 outubro 2023

ÂNGELA

 

Angela Diniz, imagem colhida na internet.



O que acontece no final

todo mundo sabe

Então...

 

Preste atenção

enquanto a história acontece

Tente acompanhar os detalhes

 

No começo

“a vida até parece uma festa”

Bonita e divertida

um sonho

Como crianças numa luta de travesseiros em câmera lenta

 

Um paraíso

uma praia

Como a prenunciar o que está por vir

no final

 

Porque no final...

Ainda não é a hora

 

Antes...

Antes do fim

paga o preço

que se deve pagar

Antes, durante e até depois

 

Até depois...

Você sabe

até depois

 

Ela voo alto

até cair

Pagou o preço da loucura

 

Uma palavra forte

um tapa

um empurrão

 

Uma promessa

o perdão

uma vez

duas vezes

três vezes

Promessas que não se pode cumprir

 

E no final...

no final

a gente sabe o que acontece

 

O que vem depois

a defesa da honra

você sempre foi

aquela que não pode prover um lar estável para os filhos

aquela que quem conhece sabe

 

No final...

uma vez

duas vezes

três vezes

 

Se você não for minha

não vai ser de mais ninguém

 

No final...

Bem!

você sabe o que acontece

no final Ângela morre.


Ernande Valentim do Prado é Enfermeiro, 

escreveu esse texto a partir de uma discussão na fila do almoço 

e depois de assistir ao filme Angela. 


01 maio 2020

HOMENAGEM À SERGIO MORO

Gato de navio. Capturado através do Google, 2020.



Ernande Valentin do Prado

Quando o navio
começa
a afunda

Os ratos
são os primeiros
a perceber

e a saltar fora

Apesar do incrível
instinto de
sobrevivência

Ratos
são ratos

Não há nada
para se admirar
nos ratos

São pestilentos
espalham doenças
e pragas

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]



24 abril 2020

SOU UM SONHO

Tatuagem de parede, Recife, 2019.

Ernande Valentin do Prado
Quando acordou
lembrou-se 
do sonho

De novo
foi o mesmo

Na rua
viu brevemente
o suficiente
para
sentir
uma
pontada
no
coração

Durante o dia
Ficou relembrando
Cada detalhe

Incluiu
por conta própria
novos detalhes não sonhados

Para preencher lacunas
para dar sentido

Um olhar
um sorriso
um aceno

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

07 fevereiro 2020

E SE?

Brincadeira? Ernande (2020)

Ernande Valentin do Prado

E se
nos cursos de saúde
desde sempre
não se ensinasse
sobre doenças
mas sobre pessoas
ou melhor
se se ensinasse
sobre o efeito das doenças
nas pessoas
Não Seria lindo?

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

03 maio 2019

80 TIROS, POR ENGANO

Imagem captura pelo Google, 2019.



Ernande Valentin do Prado

Oitenta tiros
por engano

Não foi só por preconceito
nem só por crueldade
foi também
pura e simplesmente
por incompetência

Eu sei
já estive com um fuzil nas mãos

Contra minha vontade
mesmo assim
estive

Hum ano
Zero meses
e vinte sete dias

Assim
está escrito
em minha reservista

Sofri
diariamente
torturas
Físicas e psicológicas

Não funcionou
por pura e simplesmente
incompetência

Coitados
se não usassem armas
para impor suas ideias
teria até dó

Nunca me dobraram
Não porque eu fosse melhor
Não sou

Nunca fui
“o Soldado”
nem nunca quis ser

Tentaram humilhação
Tentaram perseguição
Tentaram dor

Não funcionou
O que funcionaria
não fizeram

porque
nunca se preocuparam em conhecer
o inimigo

por incompetência
pura e simples
como disparar 80 tiros
por engano

Se precisavam mesmo
me dobrar

Bastaria me obrigar a tomar sopa
otários.



[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

14 setembro 2018

EU ASSUMI O FILHO DELE


Histórias de motoristas de uber
Imagem capturada no Google, 2018.
Ernande Valentin do Prado


Josemir é corretor de imóveis, mas como as coisas estão difíceis e não dá para ficar reclamando, há cinco meses começou a dirigir Uber. Dirige ele e dirige o filho, rapaz de 25 anos, pai de um menino de 8 meses que não assumiu.
 Não dá para criticar demais, nem passar a mão na cabeça, mas criei filho pra ser homem.
Disse Josemir, sem desviar a olhar do trânsito, já virando a direção para direita, numa curva aberta, presta a entrar na avenida Epitácio Pessoa.
 ...ele não assumiu o filho, mas eu assumi. O menino nasceu dia 27 de dezembro, foi um presente de natal. Quando chego na casa dele, vem correndo me abraçar, já me reconhece. Agora ele fica perguntando: “Será que o menino é meu?” Se é seu ou não filho dela, agora não importa, agora é meu neto.
Afirma o homem com convicção, dizendo que a mãe da criança se ofereceu para fazer o DNA, mas que ele não tem dúvida de que a criança é seu neto e que o filho, mais cedo ou mais tarde, ainda irá reconhecer.
Uma filha de Josemir casou-se e está vivendo na Austrália. O filho mais velho está em Nova Jersey.
 A mãe chora todo dia...
Diz ele, acelerando para não atrapalhar o trânsito, mas sem parar de falar.
 ...era muito apegada, mas cada um tem seu caminho.
Continua a falar o home de fala fácil, contente em contar de sua família.
 Por mim estariam todos comigo, mas fazer o quê?
Há um ano ele teve um problema cardíaco, fez três pontes safena e duas mamárias. Oito horas de cirurgia, mas agora está bem, já pode dirigir seu carro, contar suas histórias, visitar o neto que ainda mora perto.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]



OUTROS TEXTOS DA MESMA SÉRIE

         Recomeça a vida
         Para sair de casa
         Euro
         Los Hermanos
         Vendeu a praça
         Gerente de padaria
         Eu assumi o filho dele

         Minha vida acabou

31 agosto 2018

GERENTE DE PADARIA


Histórias de motoristas de uber
Imagem capturada no Google, 2018.
Ernande Valentin do Prado


— Vou para o condomínio Bosque das Orquídeas...
Eu disse, após falar “bom dia”, sentar e colocar, quase automaticamente, o cinto de segurança.
Leonardo perguntou:
— Sabe ir até lá?
— Sei que vira aí, onde estão virando aqueles carros...
Melhor ligar o GPS, concluiu.
Leonardo, ao se aproximar, acendeu as duas setas ao mesmo tempo, sinal característico dos motoristas de Uber. Eu acenei. Estava no ponto de ônibus na Avenida Epitácio Pessoa, quase frente a CGU. Quase 40 minutos esperando um ônibus que parece que nem passa por ali, de tão demorado.
— Você não é daqui?
— Não. Tem só uma semana que estou em João Pessoa.
Disse o simpático motorista, sem desviar o olhar da pista.
— ...vim do Rio.
Quinze anos no Rio, morava na Rocinha e era gerente de Padaria, mas cansou de ver a esposa preocupada cada vez que ele saia para trabalhar, cada vez que ouvia um tiroteio, cada vez que sabia de um assalto. Resolveu ouvir a esposa e vieram para João Pessoa em busca de uma vida mais tranquila. Espalhou currículos pela cidade e está esperando, enquanto isso dirigi Uber. Já tem uma semana...
— Ao menos não tenho que por a mão no bolso...
...para o futuro espera conseguir um trabalho com carteira assinada. Também tem planos de converter o carro para gás, assim poderá ganhar mais, porque a gasolina está muito cara.
— ...semana passada consegui pagar todas as despesas e ainda comprar algumas besteiras que faltavam em casa.



[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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