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06 dezembro 2013

Sobre palcos e joelhos – a medicina fora dos corredores do hospital [Mayara Floss]





Este texto eu escrevi em 2011 para participar do concurso literário do 11º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade. Um verdadeiro divisor de  águas da minha formação. Sempre gosto de reler ele e lembrar do que vim construindo ao longo do tempo e também, de não perder minha essência. O texto foi escolhido para ser publicado no Cardápio Literário do 11° CBMFC organizado pela SBMFC naquela época, motivo de muita alegria para uma acadêmica do segundo ano de medicina.

Sobre palcos e joelhos – a medicina fora dos corredores do hospital

Recém-chegada na universidade, abrem-se as cortinas de novidades, jalecos, fisiologia, histologia, anatomia. Tudo tão maravilhoso, cheio de conceitos, experiências, pessoas novas, professores - porém bem distante do paciente. Aprendemos sobre o corpo, o funcionamento, as partes... Começamos a nos aproximar dos pacientes, apenas, na cadeira de “Relação médica”, toda sexta-feira pela manhã acompanhando as atividades das Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF). Como objetivo da matéria deveríamos (um grupo de quatro alunos), visitar várias famílias ao longo das aulas e acompanhar uma família específica da periferia para tentar entender alguns hábitos e formar um laço com a finalidade de tentar modificar algumas rotinas e hábitos considerados não saudáveis. O que é geralmente para a maioria, fazer caridade e escrever o relatório no final do semestre.

No cenário da cidade de Rio Grande, saindo do seu tão bem quisto centro com esgoto, água encanada e asfalto, e entrando em comunidades fora do centro, encontrarás a estrada de areia, casebres construídos com “lata-velha” de navios, valetas para correr o esgoto e a água da chuva, falta de coleta de lixo (o qual se amontoa na frente das casas por dias), casas de “chão batido”, às vezes com ou sem água encanada e com ou sem energia elétrica – porém, geralmente cheias de “luz”. Quase sempre éramos bem recebidos e inclusive esperados, por várias famílias que íamos passando, algumas pediam para voltarmos outros dia pois não podiam nos receber, para poderem organizar a casa para os “doutorezinhos”. Mal chegávamos éramos recebidos pelos cachorros, alguns mais calmos outros mais ariscos, mas em geral fazendo festa. A família sorria, abria a porta da casa e deixava nos entrarmos, mesmo que por falta de espaço alguns de nós ficavam do lado de fora, ouvindo a conversa.

A “nossa família” um pouco mais estruturada do que as da redondeza, possuía um pequeno “bolicho” conhecido assim no Rio Grande do Sul, um lugarzinho com uma mesa de sinuca, bebidas alcoólicas, algumas cadeiras, caixas de cerveja viradas para sentar, uma pequena bancada, refrigerantes, chão daqueles de cerâmica antigo e, claro, um pôster de uma mulher segurando uma cerveja qualquer. A entrada era uma pequena porta com algumas cadeiras na frente e bancos de “caixa de cerveja” numa pequena varanda improvisada.

A casa em si ficava atrás do bar, sendo que a parede fazia divisória com o “bolicho”, para o padrão era uma casa grande, meia de material-madeira, chão igual ao do bolicho, uma cozinha/sala um corredorzinho, quarto e banheiro. Simples. Tinha ainda um quintal nos fundos de “terra batida”, cachorros, galinhas, pássaros (engaiolados) e gatos. O quintal fazia caminho para uma outra casa que foi construída depois, esta tinha um quarto, cozinha/sala e um banheiro. Ainda no meio do quintal uma obra se encaminhava que seria a cozinha do bolicho, para fazer batatas-fritas, polentas e petiscos para os frequentadores.

Logo que chegávamos éramos recebidos por uma senhora baixinha, gordinha e sorridente, abrindo as portas do seu lar para nós, apenas alunos do primeiro ano. Antes de chegarmos lá, já tínhamos visto a “pasta da família” para sabermos quais as doenças acometidas na casa. Também sempre chegando um pouco mais tarde aparecia o esposo, depois de fazer as compras para o bolicho, viviam na casa atrás do bolicho apenas os dois. Na casa dos fundos vivia a filha, a neta, o neto e o genro. Quando chegávamos, a reunião era geral sentávamos em volta da mesa da família no meio da sala/cozinha (sempre arrumava-se cadeira para todos) e a Dona da casa nos oferecia um chimarrão. Chegávamos perto do almoço, pois antes poderíamos atrapalhar os hábitos matutinos da família.

Descendente de italianos, na cozinha sempre tinha um bom salame por perto, queijo, muita gordura e poucas frutas e verduras, como relataram para nós jantavam uma comida “forte” com ovos fritos, carne e arroz è noite, quando podiam assavam uma cabeça de porco com bastante batata e gordura. Como “boa aluna”, sentei e comecei a conversar sobre as mazelas da família, hipertensão, diabetes, má alimentação (até a neta de dez anos estava com problemas devido a má alimentação). No primeiro encontro, sentei conversar com o seu João (nome fictício), o pai da família, o centro onde as decisões giravam, claro que com o aval da Dona da casa, sua esposa.

Começamos logo falando da hipertensão e diabetes (doenças que não eram tratadas na casa) com seu João e ele logo respondeu: “mas tu sabe, que eu tenho um problema no joelho e fui para o hospital me consultar, e o médico pediu um raio-X da coluna! Nem fui fazer, a minha dor é no joelho!”, conversamos um pouco sobre o joelho e voltei a falar da hipertensão e diabetes... Logo ele começou “então eu tenho essa dor no joelho que me incomoda muito...” e começou a falar novamente do joelho.

No segundo encontro, estávamos conversando sobre os problemas crônico degenerativos e então... “Mas tu sabe, que eu tenho um problema no joelho e fui para o hospital me consultar, e o médico pediu um raio-X da coluna! Nem fui fazer, a minha dor é no joelho!”. A conversa toda parou no joelho novamente. E nosso blá-blá-blá sobre alimentação e tratamento parou na articulação.

Depois da dupla e inválida insistência, decidimos “mudar a estratégia”, compramos um atlas do corpo humano infantil, com desenhos simples do esqueleto, sistema cardiovascular, nervoso, digestivo. Dessa vez, começamos pelo joelho! Com o sistema esquelético em mãos mostramos que o ser humano tinha ossos durinhos, que sustentavam o corpo e que o joelho (pasmem!) estava interligado com os ossos da perna, bacia e coluna! E falamos mais, que eles nem estava tão distantes assim, os movimentos do joelho eram sustentados inclusive pela coluna! Seu João arregalou o olho e falou “Ah, então eu deveria ter feito o raio-X da coluna?” - quase em uníssono respondemos que sim e ele retrucou “ O que eu faço agora?”, orientamos ele a procurar o médico da UBSF e pedir para repetir o raio-X. E aproveitar para fazer um exame geral, afinal seu João só ia quando as coisas “apertavam” direto para o hospital.

Aproveitando o atlas, apresentamos o sistema cardiovascular e explicamos que o homem é cheio de “canudinhos” que levam sangue para o corpo para dar energia, e distribuir o oxigênio que respiramos. Explicamos que as comidas gordurosas “entupiam os canudinhos” e podiam levar a sérios problemas, porque o corpo ficava sem energia e aí poderia levar até ao infarto. Falamos também que era silencioso e só se notava verdadeiramente muitas vezes quando era tarde demais. Explicamos que a “pressão alta” sobrecarregava o coração que tinha sempre que trabalhar muito para sustentar o corpo, falamos sobre o “inchaço” (aproveitando que o seu João sempre tinha bastante edema nas pernas), falamos também aproveitando o “gancho” sobre o peso que, também, estava sobrecarregando o joelho e o coração.

Seguimos falando do pâncreas, da diabetes, a qual tivemos a seguinte reposta “ah, mas eu tenho diabetes, mas ela tá boa ainda, porque quando eu me corto cicatriza bem!”, conversamos então, sobre o “caminhão do organismo” (a insulina) que “carrega” o açúcar para dentro das células para produzir energia e sobre o pâncreas que cansava de “manter a sua frota” de insulina, e então começava a faltar “energia” para as células. Seguimos a manhã assim, depois da barreira do joelho, conseguimos conversar sobre as doenças da família. Falamos da importância da alimentação e no final presenteamos a família com o atlas, principalmente a neta que adorou as figuras coloridas e estava estudando o corpo humano no colégio. Ficou este nosso pequeno legado e os eternos olhos daquela família, maravilhados com o corpo deles.

Na visita seguinte, foi impossível esconder o sorriso quando adentrei a cozinha/sala e vi sobre a pia um pé de alface gigantesco. A Dona da casa havia emagrecido e estava na frente do fogão. Já de caso pensado, passei algumas semanas organizando um “Livro de receitas saudáveis” com a ajuda de uma tia que trabalha com a alimentação de pessoas no interior, procurando minimizar custos e maximizar qualidade dos alimentos. Ainda, digitei as receitas no computador e coloquei a letra maiúscula, legível e bem grande, para evitar dificuldades da pouca alfabetização e visão.

Logo que sentamos começaram as novidades, a adesão ao tratamento, a mudança na dieta e os quilos perdidos – falaram também que a vida estava melhor, se sentiam mais “leves”. Relataram, ainda, que não estavam mais jantando “forte” e haviam substituído a comida gordurosa por um café com pão. Seu João, não estava em casa, mas nos contaram que havia diminuído o inchaço nas pernas e explicamos que se ele continuasse perdendo peso ficaria mais fácil de os joelhos “trabalharem”, acredito que a mensagem foi repassada. A dona da casa ficou lisonjeada com o livro de receitas para ajudar ela a fazer o almoço em casa. Aproveitamos que estavam apenas as mulheres da casa e falamos sobre a importância do “preventivo”, a dificuldade do câncer de cólon de útero – inclusive, a Dona da casa não fazia o exame há anos. Assim, marcamos um horário com a agente de saúde e ficou combinado que iria começar o tratamento.

Sem saber, acabou esta sendo a minha última visita à família. Ainda quero voltar lá e conversar sobre como “andam as coisas”. Devo comentar que com o tempo, quando eles sabiam que iríamos visitar a casa deles, alguns vizinhos apareciam na casa querendo conhecer e aprender mais sobre o que ocorre no corpo, tirar dúvidas e conversar informalmente com os “doutorezinhos”.

Talvez muitos falarão que foi apenas uma família, algumas pessoas e que no contexto geral isso não faz diferença. Porém, acredito que o rufar das asas de uma borboleta, pode provocar um furacão, que as pequenas mudanças são o primeiro passo para uma grande mudança. Geralmente, os pacientes sabem lhe dizer todos os riscos, todas as formas de tratamento, e sintomas de várias doenças - embora não entendam o real funcionamento daquilo. Frequentemente, quando acompanhamos consultas, ao invés do médico explicar que aquele senhor tem uma cirrose em decorrência da bebida (explicando o que aconteceu com o corpo do paciente, o que o fígado faz, o que ele deixou de fazer e porque é importante tentar parar com o vício), escolhem o caminho mais “fácil”, apenas avisam que tem um “problema no fígado” e o que é pior, muitas vezes condenam os hábitos do paciente, mesmo de forma inconsciente. Mantendo exatamente aquela relação distante, em que o paciente é literalmente “passivo”, ignorando a cultura, as vivências, e os pensamentos daquela pessoa.

Vejo, infelizmente, muito “salto alto” na medicina, inúmeras vezes, centra-se mais a atenção no médico do que na pessoa que está sendo assistida. Importam-se mais com a rapidez do diagnóstico, com o quão bons são na hora de fazer uma cirurgia e o quanto são respeitados pela comunidade médica. Talvez, nesse contexto, seja importante tirar a “armadura” do jaleco branco e saber que os pacientes, não são simplesmente quadros que vamos colocando nossas impressões, fazendo nossos diagnósticos e impondo “nossos” tratamentos. E sim, o ator principal deste grande palco é o paciente e nós, estudantes ou médicos, somos apenas os coadjuvantes daqueles que possuem vida, pensamentos, cultura, tabus, crenças, verdades e joelhos... Apenas, coadjuvantes.
Voam abraços,
Mayara Floss

05 dezembro 2013

Competência comunicativa intercultural



                A primeira vez que eu tive contato com esse termo “Competência comunicativa intercultural” foi em 2011 no 11º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade. Estava muito feliz de poder estar em Brasília, mesmo com pouquíssimo dinheiro e ficando na casa de amigos dos amigos da família. O apartamento dos amigos na verdade deu muito certo porque fui parar em um lugar que não posso encontrar outra palavra para descrever se não “abençoado”, porque era um casal vegetariano (e eu liguei avisando antes de embarcar no avião preocupada que não comia carne) que já tinha vivido e rodado o mundo, com muita abertura para conversar e de manhã quando levantávamos já cansados para dar conta dos afazeres eles faziam yoga. Nem preciso dizer que estava em casa e a noite dormi facilmente em uma rede. No último dia, ainda me levaram passear para conhecer rapidamente Brasília.
                Eu estava no segundo ano da faculdade de medicina, o ano semiológico (estudos dos sinais e sintomas), que pode-se referir como a bruxa correndo solta da maioria dos estudantes. E o pior o evento era no final do semestre e eu mesmo assim decidi largar a minha educação bancária para ir para o congresso e levar dois pôsteres sobre a Liga de Educação em Saúde que tínhamos organizado. Evidentemente, que depois isso contribuiu no meu péssimo rendimento nas provas do final do semestre, voltei mais questionadora e insatisfeita com a forma e o que estávamos aprendendo.
                Participei de várias palestras, era algo muito dinâmico para uma acadêmica do segundo ano da faculdade de medicina. Salas simultâneas, temas clínicos, organizações, medicina alternativa. Fiz um cronograma para participar um pouquinho de cada coisa que acontecia ao meu redor. E também estava muito feliz por ter dois textos selecionados para o Cardápio literário do congresso. Tive dois textos selecionados porque pensei, bom vou inscrever dois com pseudônimos diferentes, vai ver um chega lá, e acabaram chegando os dois.

11º Congresso Sul Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade - Brasília (2011)
                Era muita coisa para absorver em pouquíssimo tempo. Bebi das várias fontes diferentes como se nunca fosse terminar a minha sede e ainda me lembro com muita alegria e frescor aqueles dias (talvez porque experimentei o tal do cupuaçu e gostei muito). Mas uma coisas que me pescou e carreguei definitivamente para a minha formação foi a palestra sobre Competência Comunicativa Intercultural. Primeiro um médico, que eu sinceramente não me lembro o nome, que trabalhava na Amazônia falou da sua experiência com os índios, das diferenças culturais, do porquê, por exemplo, de uma pessoa picada por uma cobra não poder passar perto de uma mulher grávida, que eles explicou que caso fosse um índio picado pela cobra ele poderia sofrer por sentir que estava amaldiçoando o bebê que iria nascer e se fosse uma índia grávida que visse isso poderia culturalmente influenciar negativamente no futuro da criança e que por isso seria fundamental um tratamento diferente nesses momentos.
                Depois o Igor Claber Siqueira de Minas Gerais fez uma palestra leve e divertida sobre as “folk illness” ou em uma tradução forçada “doenças populares” e eu devo confessar achei muito interessante (isso acabou me levando a coordenar uma pesquisa sobre isso no ano seguinte). Trocamos e-mails e ele me ajudou a coordenar tudo a distância. Com o tempo fui lendo muito sobre o assunto, comprando livros, buscando na internet. E, principalmente, me interessando profundamente sobre o que as pessoas queriam comunicar. O termo apesar de ser longo não foge muito do que pode-se inferir nele “Competência Comunicativa Intercultural” fala sobre a Competência que nós temos que ter para nos comunicar em culturas diferentes, como uma via de mão dupla de troca cultural.
                Quando alguém me dizia “doutora eu tenho tireoide!” eu não queria rir como vejo muitas vezes e queria compreender mais sobre o que a pessoa compreendia por “ter tireoide”, porque por mais que eu saiba onde a glândula se localiza eu não sabia o que era “ter tireoide”. Não foi só a tireoide, foi a “espinhela caída”, a “gastura”, a “boca amarga”. Eles vivenciavam a doença e eu tinha apenas um conhecimento biomédico que mesmo tentando descrever uma dor, não era como a dor que eu sentia. Foram conversas sinceras com benzedeiras e comunidade e o real interesse de compreender sobre o que elas estavam falando, sem deixar meu vocabulário médico esterilizado influenciar nisso (ou influenciar o menos possível). Afinal, mesmo que essas doenças populares possam se basear em premissas “erradas” do ponto de vista biomédico elas geralmente tem uma lógica e ajudam o paciente a enfrentar e conviver com a doença.
                Comecei a criar minhas próprias analogias para tentar dividir o que estava aprendendo, assim como no consultório (e na vida também) cada um leva a sua bagagem (como uma “mala” mesmo cheia de vivências e histórias) e que quando sentamos juntos para conversar sobre uma determinada doença não fazemos nada mais do que abrir as nossas malas em cima de mesa e começar a trocar, é quase como: eu falando “olha só essas meias que legais, quem sabe você não usa?” E ele respondendo, “não sei não combina muito comigo, talvez essa camiseta fique melhor!  Mas acho que você pode querer essas sandálias para te ajudar no teu caminho”. Temos a terrível mania de pensarmos que sabemos tudo, ou ainda que “sabemos mais”, quando na realidade apenas sabemos diferente.

Cada um trás uma "bagagem" em uma consulta e podemos vivenciar isso como uma verdadeira "troca".
                Certo dia na comunidade estavam discutindo sobre peixes, e eu não sabia absolutamente nada, se fosse grego talvez entendesse melhor e riram (educadamente) de mim quando fiz uma pergunta e explicaram prontamente. Em algum momento esquecemos como foi difícil entender o sistema da regulação da pressão arterial e achamos que ninguém além de pessoas com formação em saúde pode entendê-lo. Quem não teve que sentar e estudar muito um livro de fisiologia? Ou que ainda se atrapalha para ler um eletrocardiograma? Em que momento isso ficou tão inexplicável que conseguimos explicar para um aluno do primeiro ano a fisiologia e muitas vezes achamos que “não vale a pena” explicar para um paciente.
                Um slide do Igor que anotei no meu caderno ainda me marca muito estava escrito: “Qual foi o Congresso que você foi que tinha ‘ruindade no corpo’ como tema? ‘Cabeça ruim’ como comunicação oral? Você já leu as Diretrizes para a ‘Congestão’?  Guidelin da ‘espinhela caída’? Você já participou do Minicurso ‘o paciente febre interna’ ou do ‘paciente que chora’? E do Simpósio sobre ‘quebra de resguardo’? E o Consenso Brasileiro de ‘Esquisiteza por dentro’? E da Conferência sobre ‘cobreiro e tremura na carne’? E o Grupo de discussão sobre o ‘paciente que sente gosto de sangue na boca’? Vocês já leram o Capítulo do livro de medicina interna sobre ‘boca amarga’?”. Esse slide me marcou profundamente, eu nunca li, nunca tinha lido e nem me interessado pelo que os pacientes se referem, só no que eu consigo encaixar na biomedicina.
                Isso se torna ainda mais profundo e complexo porque não conseguimos aferir “Esquisiteza por dentro”, mas conseguimos aferir pressão arterial, logo, pressão arterial é melhor e mais precisa do que “Esquisiteza por dentro” e bem, eu tenho um protocolo para lidar com hipertensão. Mas talvez um anti-hipertensivo não resolva uma “esquisiteza por dentro”. Então, como lidar com “febre interna”, “esquizitesas”, “espinhela caída”?
                Talvez seja mais fácil começar com um “como não lidar” o mais importante, na minha opinião, é não negar e tentar enquadrar automaticamente no meu raciocínio clínico, afinal deve ser muito ruim ter uma “congestão”. No começo quando comecei a estudar eu queria descobrir como encaixar uma “boca amarga” na nossa visão biomédica, hoje, acredito que nem todas as doenças populares correspondem a entidades clínicas conhecidas e isso não denota sofrimento menor para o paciente, nem que ele está com problemas psicológicos. Aprendi, assim, a velha receita de que devemos ouvir e a melhor forma de “lidar” é uma escuta atenta.
                Muitas vezes eu ouvi “o paciente é difícil a anamnese ficou ruim”, mas nunca escutei “Eu fui incapaz de reconstruir uma conversa lógica da doença, a partir da conversa com este  paciente. Nós não nos comunicamos bem” – e quando percebi isso no segundo ano da faculdade de medicina, percebi que já no segundo ano queriam que fossemos perfeitos, com anamneses perfeitas, quase nunca erramos na faculdade. E “facilmente” começamos a etiquetar os pacientes: “o paciente que não fala direito”, “o paciente ruim” e definitivamente o pior adjetivo que já escutei na universidade “o paciente tigre”. E isso em parte é a nossa incompetência comunicativa intercultural que encontra uma forma de defesa nos adjetivos preconceituosos.
    Ai entramos também em algo que todos usam para justificar a sua competência (ou a falta dela) que é o tal do “bom senso”, assim podemos estudar muitos aspectos técnicos e aferíveis biomédicos e nos poupar de  estudar questões como comunicação clínica, afinal isso é intrínseco do ser humano e é uma questão de “bom senso”. Essa é uma das piores coisas que posso escutar no meu dia-a-dia pois posso perceber claramente que “bom senso” passa longe de muitos profissionais. Também podemos aprender com “a experiência”, mas eu não entendo se existem técnicas de comunicação e formas de estudar competência comunicativa intercultural porque aprendemos só a inspecionar, palpar, percutir e auscultar.  
                Ao longo desses anos, eu consegui manter minha mente inquieta em uma busca constante dessa competência comunicativa intercultural. Hoje, em geral, quando consigo atender sozinha e ficar mais tempo com os pacientes recebo abraços de gratidão pela atenção e até algumas expressões como: “essa foi a melhor consulta da minha vida”. Sinceramente, não acredito que isso se deva ao meu bom senso, muito menos a minha experiência (que ainda é pouca), mas sim em muitas horas de estudo de algo que não cai nas minhas provas técnicas. Foi ser humilde para estar disposta a aprender com um paciente analfabeto, por exemplo, que tem algo sempre a me ensinar. Poder aprender com os meus colegas e poder ser sincera nos meus erros, conseguir analisar meus acertos e falhas.
                Os aspectos da saúde e da doença vão além da superficialidade da medicina, precisamos mergulhar para chegarmos perto de descobrir, porque entender de fato jamais conseguiremos – porém temos caminhos, entre eles a antropologia, a linguagem corporal, os nossos ouvidos. Esses ensinamentos em geral não cabem na minha formação acadêmica e nem melhoraram minha nota em semiologia, por exemplo, mas me permitiram abrir minha bagagem em uma consulta para trocar e não empurrar tudo para o paciente e esperar que “sirva” na bagagem dele.  

Voam abraços,
Mayara Floss

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