Este texto eu escrevi em 2011 para participar do concurso literário do 11º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade. Um verdadeiro divisor de águas da minha formação. Sempre gosto de reler ele e lembrar do que vim construindo ao longo do tempo e também, de não perder minha essência. O texto foi escolhido para ser publicado no Cardápio Literário do 11° CBMFC organizado pela SBMFC naquela época, motivo de muita alegria para uma acadêmica do segundo ano de medicina.
Sobre palcos e joelhos – a medicina fora dos corredores do hospital
Recém-chegada
na universidade, abrem-se as cortinas de novidades, jalecos,
fisiologia, histologia, anatomia. Tudo tão maravilhoso, cheio de
conceitos, experiências, pessoas novas, professores - porém bem distante
do paciente. Aprendemos sobre o corpo, o funcionamento, as partes...
Começamos a nos aproximar dos pacientes, apenas, na cadeira de “Relação
médica”, toda sexta-feira pela manhã acompanhando as atividades das
Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF). Como objetivo da matéria
deveríamos (um grupo de quatro alunos), visitar várias famílias ao longo
das aulas e acompanhar uma família específica da periferia para tentar
entender alguns hábitos e formar um laço com a finalidade de tentar
modificar algumas rotinas e hábitos considerados não saudáveis. O que é
geralmente para a maioria, fazer caridade e escrever o relatório no
final do semestre.
No cenário da cidade de Rio Grande,
saindo do seu tão bem quisto centro com esgoto, água encanada e
asfalto, e entrando em comunidades fora do centro, encontrarás a estrada
de areia, casebres construídos com “lata-velha” de navios, valetas para
correr o esgoto e a água da chuva, falta de coleta de lixo (o qual se
amontoa na frente das casas por dias), casas de “chão batido”, às vezes
com ou sem água encanada e com ou sem energia elétrica – porém,
geralmente cheias de “luz”. Quase sempre éramos bem recebidos e
inclusive esperados, por várias famílias que íamos passando, algumas
pediam para voltarmos outros dia pois não podiam nos receber, para
poderem organizar a casa para os “doutorezinhos”. Mal chegávamos éramos
recebidos pelos cachorros, alguns mais calmos outros mais ariscos, mas
em geral fazendo festa. A família sorria, abria a porta da casa e
deixava nos entrarmos, mesmo que por falta de espaço alguns de nós
ficavam do lado de fora, ouvindo a conversa.
A “nossa
família” um pouco mais estruturada do que as da redondeza, possuía um
pequeno “bolicho” conhecido assim no Rio Grande do Sul, um lugarzinho
com uma mesa de sinuca, bebidas alcoólicas, algumas cadeiras, caixas de
cerveja viradas para sentar, uma pequena bancada, refrigerantes, chão
daqueles de cerâmica antigo e, claro, um pôster de uma mulher segurando
uma cerveja qualquer. A entrada era uma pequena porta com algumas
cadeiras na frente e bancos de “caixa de cerveja” numa pequena varanda
improvisada.
A casa em si ficava atrás do bar, sendo
que a parede fazia divisória com o “bolicho”, para o padrão era uma casa
grande, meia de material-madeira, chão igual ao do bolicho, uma
cozinha/sala um corredorzinho, quarto e banheiro. Simples. Tinha ainda
um quintal nos fundos de “terra batida”, cachorros, galinhas, pássaros
(engaiolados) e gatos. O quintal fazia caminho para uma outra casa que
foi construída depois, esta tinha um quarto, cozinha/sala e um banheiro.
Ainda no meio do quintal uma obra se encaminhava que seria a cozinha do
bolicho, para fazer batatas-fritas, polentas e petiscos para os
frequentadores.
Logo que chegávamos éramos recebidos
por uma senhora baixinha, gordinha e sorridente, abrindo as portas do
seu lar para nós, apenas alunos do primeiro ano. Antes de chegarmos lá,
já tínhamos visto a “pasta da família” para sabermos quais as doenças
acometidas na casa. Também sempre chegando um pouco mais tarde aparecia o
esposo, depois de fazer as compras para o bolicho, viviam na casa atrás
do bolicho apenas os dois. Na casa dos fundos vivia a filha, a neta, o
neto e o genro. Quando chegávamos, a reunião era geral sentávamos em
volta da mesa da família no meio da sala/cozinha (sempre arrumava-se
cadeira para todos) e a Dona da casa nos oferecia um chimarrão.
Chegávamos perto do almoço, pois antes poderíamos atrapalhar os hábitos
matutinos da família.
Descendente de italianos, na
cozinha sempre tinha um bom salame por perto, queijo, muita gordura e
poucas frutas e verduras, como relataram para nós jantavam uma comida
“forte” com ovos fritos, carne e arroz è noite, quando podiam assavam
uma cabeça de porco com bastante batata e gordura. Como “boa aluna”,
sentei e comecei a conversar sobre as mazelas da família, hipertensão,
diabetes, má alimentação (até a neta de dez anos estava com problemas
devido a má alimentação). No primeiro encontro, sentei conversar com o
seu João (nome fictício), o pai da família, o centro onde as decisões
giravam, claro que com o aval da Dona da casa, sua esposa.
Começamos logo falando da hipertensão e diabetes (doenças que não
eram tratadas na casa) com seu João e ele logo respondeu: “mas tu sabe,
que eu tenho um problema no joelho e fui para o hospital me consultar, e
o médico pediu um raio-X da coluna! Nem fui fazer, a minha dor é no
joelho!”, conversamos um pouco sobre o joelho e voltei a falar da
hipertensão e diabetes... Logo ele começou “então eu tenho essa dor no
joelho que me incomoda muito...” e começou a falar novamente do joelho.
No segundo encontro, estávamos conversando sobre os problemas
crônico degenerativos e então... “Mas tu sabe, que eu tenho um problema
no joelho e fui para o hospital me consultar, e o médico pediu um raio-X
da coluna! Nem fui fazer, a minha dor é no joelho!”. A conversa toda
parou no joelho novamente. E nosso blá-blá-blá sobre alimentação e
tratamento parou na articulação.
Depois da dupla e
inválida insistência, decidimos “mudar a estratégia”, compramos um atlas
do corpo humano infantil, com desenhos simples do esqueleto, sistema
cardiovascular, nervoso, digestivo. Dessa vez, começamos pelo joelho!
Com o sistema esquelético em mãos mostramos que o ser humano tinha ossos
durinhos, que sustentavam o corpo e que o joelho (pasmem!) estava
interligado com os ossos da perna, bacia e coluna! E falamos mais, que
eles nem estava tão distantes assim, os movimentos do joelho eram
sustentados inclusive pela coluna! Seu João arregalou o olho e falou
“Ah, então eu deveria ter feito o raio-X da coluna?” - quase em
uníssono respondemos que sim e ele retrucou “ O que eu faço agora?”,
orientamos ele a procurar o médico da UBSF e pedir para repetir o
raio-X. E aproveitar para fazer um exame geral, afinal seu João só ia
quando as coisas “apertavam” direto para o hospital.
Aproveitando o atlas, apresentamos o sistema cardiovascular e explicamos
que o homem é cheio de “canudinhos” que levam sangue para o corpo para
dar energia, e distribuir o oxigênio que respiramos. Explicamos que as
comidas gordurosas “entupiam os canudinhos” e podiam levar a sérios
problemas, porque o corpo ficava sem energia e aí poderia levar até ao
infarto. Falamos também que era silencioso e só se notava
verdadeiramente muitas vezes quando era tarde demais. Explicamos que a
“pressão alta” sobrecarregava o coração que tinha sempre que trabalhar
muito para sustentar o corpo, falamos sobre o “inchaço” (aproveitando
que o seu João sempre tinha bastante edema nas pernas), falamos também
aproveitando o “gancho” sobre o peso que, também, estava sobrecarregando
o joelho e o coração.
Seguimos falando do pâncreas,
da diabetes, a qual tivemos a seguinte reposta “ah, mas eu tenho
diabetes, mas ela tá boa ainda, porque quando eu me corto cicatriza
bem!”, conversamos então, sobre o “caminhão do organismo” (a insulina)
que “carrega” o açúcar para dentro das células para produzir energia e
sobre o pâncreas que cansava de “manter a sua frota” de insulina, e
então começava a faltar “energia” para as células. Seguimos a manhã
assim, depois da barreira do joelho, conseguimos conversar sobre as
doenças da família. Falamos da importância da alimentação e no final
presenteamos a família com o atlas, principalmente a neta que adorou as
figuras coloridas e estava estudando o corpo humano no colégio. Ficou
este nosso pequeno legado e os eternos olhos daquela família,
maravilhados com o corpo deles.
Na visita seguinte,
foi impossível esconder o sorriso quando adentrei a cozinha/sala e vi
sobre a pia um pé de alface gigantesco. A Dona da casa havia emagrecido e
estava na frente do fogão. Já de caso pensado, passei algumas semanas
organizando um “Livro de receitas saudáveis” com a ajuda de uma tia que
trabalha com a alimentação de pessoas no interior, procurando minimizar
custos e maximizar qualidade dos alimentos. Ainda, digitei as receitas
no computador e coloquei a letra maiúscula, legível e bem grande, para
evitar dificuldades da pouca alfabetização e visão.
Logo que sentamos começaram as novidades, a adesão ao tratamento, a
mudança na dieta e os quilos perdidos – falaram também que a vida estava
melhor, se sentiam mais “leves”. Relataram, ainda, que não estavam
mais jantando “forte” e haviam substituído a comida gordurosa por um
café com pão. Seu João, não estava em casa, mas nos contaram que havia
diminuído o inchaço nas pernas e explicamos que se ele continuasse
perdendo peso ficaria mais fácil de os joelhos “trabalharem”, acredito
que a mensagem foi repassada. A dona da casa ficou lisonjeada com o
livro de receitas para ajudar ela a fazer o almoço em casa. Aproveitamos
que estavam apenas as mulheres da casa e falamos sobre a importância do
“preventivo”, a dificuldade do câncer de cólon de útero – inclusive, a
Dona da casa não fazia o exame há anos. Assim, marcamos um horário com a
agente de saúde e ficou combinado que iria começar o tratamento.
Sem saber, acabou esta sendo a minha última visita à família.
Ainda quero voltar lá e conversar sobre como “andam as coisas”. Devo
comentar que com o tempo, quando eles sabiam que iríamos visitar a casa
deles, alguns vizinhos apareciam na casa querendo conhecer e aprender
mais sobre o que ocorre no corpo, tirar dúvidas e conversar
informalmente com os “doutorezinhos”.
Talvez muitos
falarão que foi apenas uma família, algumas pessoas e que no contexto
geral isso não faz diferença. Porém, acredito que o rufar das asas de
uma borboleta, pode provocar um furacão, que as pequenas mudanças são o
primeiro passo para uma grande mudança. Geralmente, os pacientes sabem
lhe dizer todos os riscos, todas as formas de tratamento, e sintomas de
várias doenças - embora não entendam o real funcionamento daquilo.
Frequentemente, quando acompanhamos consultas, ao invés do médico
explicar que aquele senhor tem uma cirrose em decorrência da bebida
(explicando o que aconteceu com o corpo do paciente, o que o fígado faz,
o que ele deixou de fazer e porque é importante tentar parar com o
vício), escolhem o caminho mais “fácil”, apenas avisam que tem um
“problema no fígado” e o que é pior, muitas vezes condenam os hábitos do
paciente, mesmo de forma inconsciente. Mantendo exatamente aquela
relação distante, em que o paciente é literalmente “passivo”, ignorando a
cultura, as vivências, e os pensamentos daquela pessoa.
Vejo, infelizmente, muito “salto alto” na medicina, inúmeras vezes,
centra-se mais a atenção no médico do que na pessoa que está sendo
assistida. Importam-se mais com a rapidez do diagnóstico, com o quão
bons são na hora de fazer uma cirurgia e o quanto são respeitados pela
comunidade médica. Talvez, nesse contexto, seja importante tirar a
“armadura” do jaleco branco e saber que os pacientes, não são
simplesmente quadros que vamos colocando nossas impressões, fazendo
nossos diagnósticos e impondo “nossos” tratamentos. E sim, o ator
principal deste grande palco é o paciente e nós, estudantes ou médicos,
somos apenas os coadjuvantes daqueles que possuem vida, pensamentos,
cultura, tabus, crenças, verdades e joelhos... Apenas, coadjuvantes.
Voam abraços,
Mayara Floss