"É feia. Mas é uma flor. Furou o branco, o tédio, o nojo e o ódio." - Carlos Drummond de Andrade
Presa à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pelo corredor cinzento.
Melancolias, protocolos, histórias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio de punho:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o médico pobre
fundem-se no mesmo impasse
Em vão me tento explicar, os colegas são surdos.
Sob a pele das palavras há manejos e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar este tédio sobre a medicina.
Vinte e seis anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma prescrição seguida nem engolida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam o receituário
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Farmacêuticas da terra, como perdoá-las?
Tomei parte em muitos, outras escondi.
Alguns achei interessantes, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam (ou não) a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
As ferozes metforminas do mal.
As ferozes bombinhas do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
À menina de 2000 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor na medicina!
Passem de longe, professores, colegas, burocratas.
Uma flor ainda desbotada
ilude o corpo docente, rompe o branco.
Façam completo silêncio, paralisem a secretaria,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão do saguão da universidade às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado da atlética, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos na entrada, medicina em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o branco, o tédio, o nojo e o ódio.
Bloc de Educação Popular em Saúde com foco em crônicas, contos e poesias. Reflete o dia a dia de trabalhadores do Sistema Único de Saúde e Saúde Pública e Coletiva. (cotidiano, saúdes, vidas, poéticas, sensibilidades, ternuras, raivas, gritos)
Mostrando postagens com marcador Medicina. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Medicina. Mostrar todas as postagens
08 março 2017
01 fevereiro 2017
Janela
Serra Velha - Caruaru/PE |
A criança estava olhando fixamente para a janela, no alto dos seus dois anos, impressionada apontava para o vidro com o dedo.
Seu pai disse:
- Pode olhar bem mesmo, porque você nunca viu chuva não.
Ele para pensativo:
- Acho que nem nuvem ultimamente a gente está tendo.
30/01/2017 - Caruaru/PE
Mayara Floss
26 outubro 2016
Um ensaio sobre sonhar
Sonhos doces em caldas. |
Talvez um ensaio sobre sonhar poderia ser uma fase do sono, estritamente calculada com máquinas de leitura do simples ato de dormir. Mas o sonho que quero escrever aqui é o sonho que você lava o rosto pela manhã, "Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga." - como já escreveu Mia Couto.
O sonho queimando em atividade da Liga de Educação em Saúde, tudo de mais especial que você deseja: "carro, casa, saúde, ser médico, ver os filhos crescerem...". Escreva aqui, neste papel, juramentado que ninguém irá ler, tocar, o sonho é todo teu. Clarice iria frizar: "acredito em sonhos e não em utopias".
Guardamos tudo com carinho numa lata de pêssego em calda, sonhos doces, doçuras, conexões, amorosidades, bens materiais. Eu que tenho a tarefa de passar riscar o fósforo e deixar a lata, a lágrima, os sentidos e sentimentos queimarem. Toda a esperança pegando fogo. Reflexões com aquela chama viva da lata de pêssego.
Nos conectamos uns com os outros: "talvez nossos sonhos não se realizem" ou "talvez os sonhos daquela pessoa, sujeito, paciente queimaram, e por isso é difícil lidar com ele". Ecoa naquela lata Drummond: "Fácil é sonhar todas as noites. Difícil é lutar por um sonho".
Ontem escuto na família rural "Deus sabe melhor do que nós os nossos sonhos", então podemos "sonhar errado"? O sonho impossível de Drummond, penso nele, nos meus sonhos, no fogo queimador de sonhos e que faz nascer empatia, cuidado, reflexões. "Afinal, há é que ter paciência, dar tempo ao tempo, já devíamos ter aprendido,
e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte.", Guimarães diz ao meu ouvido.
Vejo a menina de 12 anos me perguntando: "mas tia, quantas abdominais eu preciso fazer para perder a barriga, meu sonho é perder a barriga". Conversamos sobre sonhos, mas ela é resoluta, quer perder a barriga e colocar a "gordura nas pernas". Fico um pouco sem saber o que fazer eu ajudando a realizar sonhos? Sonho de perder barriga?
Volto aos sonhos queimados, talvez queimando ainda.
"Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum." - Alvaro de Campos, Fernando Pessoa.
Sonhos cruzam a porta do consultório, notícias que se transformam em lágrimas em atestado de final de sonhos. Como costurar os sonhos perdidos, queimados, atrapalhados, mudados?
Eis que a Suzana e a Ledeni, artesãs da Barra que já tinham planejado fazer livros de tecido com os extensionistas mudam os planos e decidem que vão nos ensinar a fazer um "filtro dos sonhos". Vão costurar os nossos sonhos. E fazer um bem grandão para colocar todos os sonhos ali e pendurar na faculdade de medicina. Todos trabalham, coletamos cipó, a Leda tem um ponto diferente da Suzi, cada uma costura sonhos à sua maneira. Em Terra Sonâmbula de Mia Couto o "sonho é o olho da vida."
Desenhamos no cipó os sonhos costurados com as mãos carinhosas da Suzi e da Leda "voltando um ponto" ou "ajustando uma distância". Elas não descansam até que todos tenham sua teia de sonhos e dizem: "ninguém pode ficar sem".
Costuramos sonhos, recortamos, queimamos, renascemos, re-escrevemos, até resonhamos. Uma educação popular sonhada, costurada, emendada, de aproximação. E vivemos em terras mágicas de repensar o próximo, se aproximar do outro, aprendermos a cuidar, como diz Julio, de seres extraordinários.
Costurando sonhos |
Abraços que pousam,
Mayara Floss
22/10/16
05 outubro 2016
07 setembro 2016
Carta ao estudante de medicina
Texto-desabafo de uma discussão sobre a visão do especialista sobre o profissional na APS e a influência desta visão na escolha jovem médico (que por pressão dos colegas, professores e outros profissionais fica em dúvida em relação a escolha), acabei escrevendo a seguinte resposta (transformada em carta).
Para Marcela
Caro estudante de medicina/jovem médico,
Acho que dividir histórias ajudam a nos entendermos e entender
o próximo. Passei por um processo de aceitação quando no terceiro ano da
faculdade desconstrui muitas das visões romantizadas da medicina e bati o pé
que queria fazer medicina de família e comunidade, e hoje além de fazer
medicina de família e comunidade ainda bato o pé que quero ir trabalhar na zona
rural. Desde então foram desde professores que se negaram a dar uma explicação
porque eu escolhi ser médica de família, até escolherem os pacientes humildes para
eu tratar porque é "medicina de pobre". Penso que consegui aprender muito e fazer grandes trocas tentando
trabalhar a competência cultural e minha própria bagagem nas consultas.
Hoje e a cada dia o que eu mais tenho certeza é que não
quero fazer uma outra especialização. Fragmentar, dissecar e clinicar sem ver
os determinantes de saúde e sociais, medicar sem entender contexto, usar meias
e minhas verdades como generalizações e aprendo a enxergar essas diferenças com
a medicina de família diariamente, mesmo ainda sendo estudante (sim, entendo a
importância do especialista, mas não entendo porque ao escolher medicina de família e comunidade tenho que ouvir sermões sobre maus encaminhamentos, sobre médicos ruins no PSF, sobre minha escolha ser equivocada e que vou "ganhar pouco dinheiro"). Eu me questiono muito como muitas vezes o médico
que tanto crítica a especialidade (currículo oculto ou preconceito velado) não consegue despir-se das roupas velhas
(sim, precisamos todos rejuvenescer, já dizia Belchior).
Nunca a medicina foi tão capaz de resolver coisas e tão
incapaz de alcançar as pessoas. Nunca fomos tão criticados. E nunca fomos tão
incapazes de ouvir (em tempos de comentários e jocozidades sobre "febre
interna", "espinhela caida" e "peleumonia"). Essa
pragmatismo e contrastes encontram uma forma de aproximar as distâncias na
medicina de família, no método centrado na pessoa, na chance de emponderar um sujeito e coordenar o cuidado.
Em nosso mundo que cada vez fica maior, mas mais
interdependente o paradigma, hoje, de saúde-doença mudou, as doenças crônicas
superam as doenças infecciosas e a causas dessas doenças estão fora do
"setor saúde" e são profundamente moldadas pelos produtos e práticas
das indústrias de alimentos, bebidas, tabaco, álcool e marketing.
E na prática do médico generalista é possível encontrar uma
forma de resistência e não é uma resistência sozinha (médico para médico,
profissional para profissional) mas no sujeito que está a sua frente.
E não só na perspectiva brasileira, mas quando paramos para
pensar que a diferença de expectativa de vida dos países
"desenvolvidos" e em "desenvolvimento" é de 40 anos,
precisamos refletir sobre o papel da atenção primária nesses contextos, nessa
revolução - mesmo que muitas vezes discreta. E voltar-se para essa atenção
primária é também voltar-se para a direção de um cuidado mais integrado,
compreensivo e centrado na pessoa/comunidade.
O trabalho é árduo e demanda muito, em uma mesma sala de
espera você pode encontrar um pouco de tudo das mais "difíceis" e
raras doenças que um médico deve "estar preparado para lidar" com o
bônus de conhecer as pessoas, a comunidade, e no seu diagnóstico poder incluir
as causas e determinantes destes problemas de saúde. Do contrário do ambiente
hospitalar, a negociação e a conversa terão que ser muito mais aprofundadas,
muito mais desafiadas porque o paciente entrará pelo teu consultório "dono
de si" e perguntará, opinará e muitas vezes não irá "seguir o que
dizes" isso vem de encontro com novas habilidades e caminhos que temos que
desenvolver constantemente. Além disso, você "nunca verá", quando der certo o
papel de evitar que um infarto aconteça, que uma diabetes se desenvolva, o paciente que não chegará a emergência, de
poder segurar até o fim na mão do paciente são muito mais marcantes e intensos.
O especialista tem que existir e tem o seu papel (isto não é uma batalha/luta, é cuidado coordenado e temos que trabalhar juntos!), mas sempre devem ter os médicos que conhecem os seus pacientes bem o suficiente para gerenciar realmente a totalidade da saúde em todas as suas múltiplas dimensões, incluindo as necessidades mentais e espirituais.
O especialista tem que existir e tem o seu papel (isto não é uma batalha/luta, é cuidado coordenado e temos que trabalhar juntos!), mas sempre devem ter os médicos que conhecem os seus pacientes bem o suficiente para gerenciar realmente a totalidade da saúde em todas as suas múltiplas dimensões, incluindo as necessidades mentais e espirituais.
Acho que esses são alguns dos sonhos, utopias e realidades.
Espero que possamos ser colegas de residência.
Abraços que pousam,
Mayara Floss
20 julho 2016
Roupa suja
- Doutora, preciso da alta..
- Mas agora? Ainda estamos iniciando o seu tratamento...
- Mas eu preciso dar alta... Não posso ficar baixada...
(... silêncio...)
- Posso perguntar o que aconteceu?
- Meu marido doutora, meu marido disse que chega desse negócio de hospital, estou com medo que minha filha fique sem roupas para usar...
(um suspiro)
... preciso voltar ... para lavar a roupa.
Mayara Floss
15 junho 2016
Sabedorias
Uma mulher negra, mãe de santo levantou o dedo e explicou:
- existem dois tipos de doença: a do espírito e a do material. - suspirou e seguiu com veemência -
Qualquer
doença sempre começa no espírito e depois vira doença de médico no
material - e seguiu com força - daí vira câncer, dor de garganta ou o
que for, mas eu trato o espírito.
Voam abraços,
Mayara Floss
13 abril 2016
Noite Feliz
![]() |
The Starry Night - Vicent Van Gogh |
“Noite feliz! Noite feliz!
Oh, Senhor, Deus do amor
Pobrezinho nasceu em Belém
Eis na Lapa Jesus nosso bem
Dorme em paz, oh, Jesus
Dorme em paz, oh, Jesus (...)”
- Como a senhora está?
- Estou bem, só quero ir para casa, logo é natal e temos que ensaiar para o Natal.
- É mesmo D. L. ...
- Sim, eu canto no coral e ela também – apontando para a acompanhante.
- Quais músicas vocês cantam?
- Ah várias...
- Cantam noite feliz?
- Sim...
E começamos a cantar na enfermaria do hospital por volta das 21 horas um mês antes do Natal Noite Feliz. Ela estava sem levantar da cama há dias, com o oxigênio e começou a cantar em alto e bom som Noite Feliz.
Na enfermaria cheia, com os cinco pacientes em seus leitos, seus acompanhantes, todos cantaram Noite Feliz sorrindo, dona L. era a maestra da noite com sua voz rouca e afinada.
Quando terminamos eu estava com os olhos cheios d’água e ela bateu na minha bochecha com um sorriso e uma vibração contagiante, como quem diz: “ensaiei para o Natal”. A acompanhante dela saiu do quarto emocionada para me abraçar.
Quando fui visitá-la no dia seguinte ela estava em um sono tranquilo, seguiu assim pelos próximos três meses, até que se foi como um sopro e uma canção.
Abraços que pousam,
Mayara Floss
16 março 2016
Conversa em quadrinhos [Mayara]
Para Júlio
A evolução clínica foi sobre quadrinhos,. Mas nada de quadrinhos Marvel ou grandes quadrinhos de super
heróis. Foi Mickey, Tio Patinhas, Tex e Turma da Mônica. Entrei no quarto e vi
a revistinha do Mickey, prato cheio para conversa. No meio da anamnese que
parecia mais conversa de clube de gibi perguntava como ele estava.
O que você gosta mais de ler? - ele disse.
Eu gostava de Turma da Mônica, mas meu primo tinha Tex, também li
alguns.
Nossa eu adorava Tex! Bang bang tenho as edições antigas em
casa.
Tudo certo para engolir?
Tá bem melhor, depois dos caninhos tá bem melhor. Sabe que
eu acho as histórias antigas bem melhores? Esse último gibi que comprei tá bem
menos emocionante.
Depois de falar dos gibis acabamos completando uma página de
palavras cruzadas juntos.
Acho que aqui é “rinoceronte”.
E com está para ir aos pés?
Tá bem doutora agora
que estou comendo está melhor.
Deixa eu ver aqui acho que é “esverdeado”, isso!
Agora ficou difícil.
Posso examinar o senhor?
Claro. Você gosta mais de palavras cruzadas ou caça
palavras?
Palavras cruzadas.
Olha aqui (me apontando a revista) eu adoro também jogo dos
7 erros.
É muito bom. Respira
fundo e solta o ar pela boca.
Sempre vem pouco jogo dos 7 erros nas revistas, eu também
gosto.
Dormiu bem?
Sim, tudo tranquilo quero ir para casa, logo vai faltar
revista.
Entendo, eu te empresto mais se precisar.
Vai ser ótimo, mas me manda para casa.
Tudo bem, vou ver mas eu não mando nada.
Manda bem nas cruzadinhas doutora.
Voam abraços,
Mayara
28 janeiro 2016
Sina
O que significa?
Eu é que sei, pergunte para quem deu. Todas as mulheres terminam com ina e todos os homens com
ino. Minha mãe quis assim.
Tá bem. Nunca procurou o significado?
Não, nunca procurei, mas agora estou curiosa!
Vou procurar e amanhã te digo!
Certo, vou ficar esperando.
E não é que o google não achava nenhum significado, procurei
com “c” com “s” e no masculino, nem terminando em ino. O que iria dizer para ela? Descobri um parente distante do nome que significava:
“carneiro”.
Cheguei no dia seguinte.
“E então, encontrou meu nome?”
Encontrei um significado meio bobo só.
O que é?
Significa carneiro. Mas eu queria dar um significado meu.
Ela sorri, e diz “carneiro”, gostei.
Eu digo, que bom.
Mas qual é o significado que você quer?
“Aquela que ilumina meus dias”
Ah venha cá menina, você que sempre alegra meus dias.
Ah se eu conseguisse resolver as depressões com dicionários
de nomes.
* Fonte da foto clique aqui.
Voam abraços,
Mayara Floss
17 janeiro 2016
Da dor do amor
Ah, doutora, o cansaço melhorou sim. As vezes quando tomo banho e me abaixo pra vestir a cueca ainda canso. Mas quase nada. Tou é ficando bom. Já pode me mandar lá pra enfermaria que aqui eu conheço tudo. É sim, doutora, sou cliente fiel. Já me internei aqui 7 vezes. Lá no Procape foram 24. E no Agamenon mais 3. Meu coração tá fraco.
Minha esposa foi embora por causa disso. Ela perdeu o gosto de viver com medo de eu morrer antes dela. "Como é que eu vou viver sem tu, meu Nego?" Ela dizia.. Coisa mais linda que eu tinha na vida, doutora.
Faz 7 anos que ela me deixou. Ah, sim! Eu vivi muito tempo com ela. Foram 40 anos de casado e mais 10 de namoro. A gente começou a namorar novinho, na escola. Eu tinha 12 anos. No começo o pai dela não gostava não, mas ai ele viu que eu tinha era amor demais pela filha dele e deixou a gente se casar.
Não, filhos a gente não teve da barriga não. Só um adotado. Ela perdeu bebê três vezes. O médico disse que ela não podia ter filho não. Fazer o que né? Foi assim que a vida quis.
Vou dizer uma coisa pra senhora, ela foi a coisa mais bonita que Deus me deu. Eu amava a minha mãe. Era uma coisa linda eu e minha mãe. Eu deitava no colo dela, ela fazia carinho em mim. Mas com a minha nega, Ave Maria! Eu amava muito mais minha nega. E era um ciúme elas duas, viu?
A gente morava numa casinha aqui em Paulista. Um dia ela acordou de manhã, antes do Sol nascer. Disse que tava se sentindo mal e que não ia pro terraço hoje, como a gente fazia todo dia pra ver o dia clarear. Disse que eu fosse sozinho e ela ia ficar na cama mais um pouco. Olhe, doutora, meu coração ficou apertado de sentar ali no terraço sem ela.
Ai fui trabalhar na venda. Mas deu assim a hora do almoço e eu comecei a sentir um nervoso. O rapaz que trabalhava comigo perguntou se eu tava bem. Eu disse que não, que tava era muito mal. Disse a ele que desse um jeito nas coisas que eu ia ver Lau. Fui correndo pra casa. Quando cheguei lá, doutora, meu coração doeu demais. Ver minha nega deitada na cama sem um pingo de sangue no rosto. Corri com ela pro Osvaldo Cruz. Me alterei quando disseram que lá não tinha emergência. Eu falei que não era emergência, era urgência! Eles tinham que salvar minha nega. Ah, a senhora estuda lá? Então, como chama aquele lugar que cuida de câncer? Isso, CEON. Ela tinha câncer, sim, no pâncreas. Se tratava lá.
Ela ficou internada na UTI. Quando eu vi a médica vindo, com a blusinha e a bermudinha que ela tava vestindo e o anel dela eu pensei: pronto, perdi minha velha. Mas não, ela ainda tava viva. Peguei as coisas dela e vim em casa. Me deu uma aflição, doutora. Eu olhava pra prateleira com a foto da gente se abraçando, que a gente tirou no aniversário do irmão dela. Ela que quis tirar, foi. Ela me disse: Nego, vamos tirar uma foto aqui, se eu morrer antes, fica de lembrança pra você. Se você morrer antes, fica de lembrança pra mim.
Não, não tou com a foto dela aqui não, mas amanhã vou pedir pra alguém trazer pra senhora ver.
Eu sei que eu fui dormir e acordei no meio da noite. Abri uma fresta da porta. A irmã dela tava na sala chorando. Ai eu me desesperei. Nunca mais ia ver ela. Ela morreu três dias depois que saiu minha aposentadoria. Eu usei tudo pra ajeitar nossa casinha. Troquei as portas, as janelas. Cada coisa que trocava era lágrima que caia. Trabalhei tanto pra dar isso a ela e ela não aproveitou.
No outro dia já veio a funerária que a gente pagava. Levou o corpinho dela pra enterrar lá em Tabira. Eu sei que eu vi o caixão saindo do carro, depois não vi mais nada. Sei que já acordei no hospital. Infarto agudo, o médico disse. Olhe, doutora vou dizer uma coisa. Doeu demais meu coração nesse dia. Mas a dor que é viver essa vida sem ela do meu lado, ah, essa dor é muito maior!
Maria Olívia Mendonça
Escolhi Maria como convidada especial deste domingo e espero de outros. Ela é estudante de medicina na Universidade de Pernambuco, viajante (CSF Budapeste) e poeta. Incerta nas escolhas mas que se entrega nas palavras e na medicina, publica seus retalhos e experiências na sua página do Facebook. Obrigada Maria por aceitar participar! Voam abraços, Mayara.
09 dezembro 2015
Graça
Da série: Internato
- Qual é a sua graça? – o paciente pergunta com a máscara e toda a dificuldade,
não entendi. Ele disse de novo com mais força – Qual a sua graça? -.
Sempre fico meio sem graça quando perguntam isso, me lembra
de outro paciente que não entendi a pergunta da “graça”. Expressão antiga, acho
que não tenho graça. Digo, - Mayara -. Ele fecha os olhos e murmura – nome
bonito.
Na mesma manhã, várias perguntas e anamnese eu seguro a mão
dele e ele me diz – Minha filha tem o mesmo nome que você - . Olha para mim em
um suspiro e fala – Eu estou com medo Letícia, ele olha para mim, não você não
é Maria, você é a estudante - . Digo que sim, digo minha graça. Ele diz – Eu
estou com medo Mayara, minha filha vem me visitar antes do procedimento, ela
vem fazer uma oração, sou evangélico, Mayara... – silêncio e eu sorrio – Qual a
sua religião Mayara? – digo: - sou de todas um pouco – e ele: - eu poderia ser
seu pai Mayara -.
Na hora do almoço, quando todos estávamos com fome foi a
hora que os aparelhos para fazer o exame no paciente chegaram. Precisávamos
sedar. Pressa para entubar. Mas espera, a hora da visita estava por começar e o
paciente não iria ver a sua filha, não ia fazer a oração. Sai correndo pela
UTI, avisar o médico para deixar o paciente conversar com a sua filha. O
procedimento era de urgência, mas nada mais urgente do que orar. Corri até o
leito dele e disse que ia dar tempo de ver a filha, rápido, alguns minutos, e
vi do lado de fora ela chegar e abraçar o pai, beijar a testa dele, abrir a
bíblia e ler algumas frases segurando a mão dele.
Ele diz antes da sedação: - Muito obrigado Mayara e sorri.
Corre a sedação. Tubo, 5, prepara tudo.
No final, o procedimento foi bem. Paciente respirando com o
tubo em AIRE (sem ventilação mecânica).
Dormiu toda a tarde. E almocei mais tarde.
No dia seguinte. Ele me disse: - Dormi um sono bom Maria,
não vi nada - . Eu respondo: - que bom!
– Ele diz mas não é Maria, é Mayara, né? Digo que sim. Conversamos sobre Rio Grande, sobre como está o tempo lá fora, sobre a vontade de viver, e ele me diz: - Antes eu não valorizava um copo de água, Mayara, agora tudo que eu quero é tomar água, até o sabor é diferente – e levanta um copo de água que foi liberado para ele tomar. Antes de sair do quarto ele me diz: - temos que valorizar as coisas pequenas, Mayara, não esqueça.
– Ele diz mas não é Maria, é Mayara, né? Digo que sim. Conversamos sobre Rio Grande, sobre como está o tempo lá fora, sobre a vontade de viver, e ele me diz: - Antes eu não valorizava um copo de água, Mayara, agora tudo que eu quero é tomar água, até o sabor é diferente – e levanta um copo de água que foi liberado para ele tomar. Antes de sair do quarto ele me diz: - temos que valorizar as coisas pequenas, Mayara, não esqueça.
No meio da tarde precisamos fazer uma paracentese
diagnóstica. Explico para ele.
Ele diz: - É a primeira vez que você vai fazer?
Eu digo:
- Sim.
Ele:
- Vou ser sua cobaia, Mayara? -
Eu:
- Não, o médico vai estar do meu lado e vou tentar ser o mais gentil possível.
Ele:
- Mayara, eu entendo, pode aprender comigo.
Eu digo timidamente:
- Muito obrigada.
Ele:
- Eu estou com medo de novo, Mayara.
Eu:
- Mas dessa vez você vai ficar acordado.
Ele:
- Eu não gosto de agulhas.
Eu:
- Mas quem gosta? – e explico da forma mais simples que
consigo sobre o procedimento (uma paracentese).
Ele:
- Então você vai colocar uma torneira para tirar água da minha barriga?
Eu:
- Mais ou menos isso.
Voam abraços,
Mayara Floss
Assinar:
Postagens (Atom)
Postagem mais recente no blog
QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?
? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA? Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...
Postagens mais visitadas no blog
-
Texto-desabafo de uma discussão sobre a visão do especialista sobre o profissional na APS e a influência desta visão na escolha jov...
-
Maria Amélia Mano A Saina e Abou Manhã do segundo domingo de maio. Leio as notícias desse mundo espantado. Uma adolescente...
-
A minha família, do jeito que Seu José Conheceu. Ernande, 2009. Ernande Valentin do Prado Desde que sai do Paraná tenho andado por...
-
O céu é o limite. Ernande, 2016. Ernande Valentin do Prado 1 Às 13h30min. João, Agente Comunitário da Rua das Palmeiras, chegou à...
-
A borboleta no estádio O despertador acorda confuso às 4:30 da manhã. Levanto agitada, desligo o modo avião do celular, do meu lado já d...
-
Imagem capturada no Google. Ernande Valentin do Prado O sargento Mendonça era o terror dos recrutas do PELOPES e de toda a Primeir...
-
Maria Amélia Mano Ando sempre com um caderninho, nos caminhos, nas experiências e viagens. É coisa antiga, analóg...
-
https://www.facebook.com/perpetuotattoo Janeiro é mês inútil Ressacas, impostos, fervuras, dias asfixiantes e quentes, hemorragias ...
-
Saudação ao mar. Ernande, 2016. Ernande Valentin do Prado As seis horas entro no quarto e acordo Alice, como combinamos, vamos à p...