João trabalhou das oito às 17
horas na fabrica de Relógios em Manaus, onde tem carteira assinada como
inspetor de qualidade. Com uma lupa verificou centenas de mecanismos minúsculos
o dia todo. Quando ouviu o sinal de fim de expediente, correu tomar banho,
colocou seu próximo uniforme, camiseta e calça jeans. Calcou um tênis surrado.
Borrifou perfume no pescoço e nos pulsos. Pegou seu equipamento de trabalho e
colocou no estojo. Na hora do almoço tinha tirado para dar uma amostra grátis
para os colegas da seção.
A pé atravessou a avenida que
separava o local do emprego do local de seu segundo trabalho. João chegou por
volta das 18 horas, abriu com cuidado seu estojo, tirou o violão, plugou nos
equipamentos, passou os dedos pelas cordas e tirou os primeiros acordes. Começou
a cantar.
No palco minúsculo, no centro
da praça de alimentação do Shopping, João estava solitário. Ao seu redor
cadeiras, mesas, gente comento, olhando seus celulares, crianças correndo de um
lado para o outro, brincando, brigando, chorando, sorrindo, gritando. Sua alma
saindo pela boa: e nada parecia acontecer, ninguém pareci ouvir.
João contou uma, duas, três,
dez músicas.
Nada.
Sons de garfos e facas batendo
nos pratos, copos de vidro em choque com as mesas, sacolas plásticas sendo amassadas.
Nada, pensou João, mais uma
noite e amanhã começar tudo de novo na fabrica de relógio que conta seu tempo.
Quase no final de seu
“expediente” entram quatro pessoas e escolhem uma mesa próxima ao palco. Uma
moça com desenho lindos nos braços, uma gestante com sorriso (de gestante), um
gordinho com cara simpática e sorriso sincero e um sujeito mal encarado.
(Parece que já não estava gostando).
Nada. Só mais do mesmo.
João canta.
A gestante reconhece a música.
Sorri para João.
João retribui. No final da
música o mal encarado aplaude sozinho.
João se espanta (alguém ouviu!).
No inicio da próxima música
João troca olhares cumplices com a gestante. Ela acena com os olhos demonstrando
satisfação. João canta mais alto.
No final da música toda a mesa
aplaude. Agora João canta diferente. Todas as músicas são aplaudidas. João
canta, canta e continua cantando. Outras mesas começam a aplaudir também.
Alguém grita uhuuuuuu!
Outros respondem. Agora já tem
muita gente contagiada pelo show de João com seu violão. Ele parece feliz!
- Já chegou minha hora de
parar, mas na semana que vem, terça e quinta-feira, estou aqui de novo. Para
encerrar vou contar duas música antigas para essa mesa aqui, diz João apontando
para mesa em sua frente.
- Ele nos chamou de velhos,
pergunta o mal encarado para gestante!
Chamou, responde ela.
João se despede. Arruma o
violão no estojo e se vai.
- Viu o efeito irradiador,
pergunta a moça de braços coloridos?
- Isso é científico, questiona
o mal encarado?
- Acho que é física
quântica...
- Cantores precisam de
aplausos. De dinheiro também, mas cantam mesmo pelos aplausos.
- Acho que melhoramos a vida
de alguém hoje...
(E não custou nada, pensa o
mal encarado).
Ps. (Quase) tudo é verdade
nesta história, embora as lacunas tenham sido preenchidas com a imaginação.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]