Bandeira que vi em um encontro de estudantes de enfermagem na UFPB em 2015 |
Passei quatro anos sem
voltar à Curitiba. Quando voltei, fui visitar os amigos. Fiquei chocado (estou
re-escrevendo este texto mais ou menos dois anos depois, mas continuo chocado) em
saber que alguns não se viam o mesmo tempo que não me viam, mesmo morando na
mesma cidade. Será que é a cidade grande que afasta as pessoas ou tudo está
condenado ao afastamento?
A imensa culpa que
sentia por estar longe, foi diminuindo aos poucos: se ali estivesse, era
provável que também não nos veríamos. Talvez o fato de estar tão longe
(fisicamente) seja uma boa desculpa para juntar os velhos amigos, os velhos
comparsas de tantas histórias, mesmo que de quatro em quatro anos.
Um desses amigos, com
quem fui muito próximo (um pouco mais do que com os outros, apesar da grande
diferença de gênio entre nós), falou-me de sua rotina no serviço pública de
Curitiba, das dificuldades, das frustrações, do sentimento de estar afundando
em areia movediça, apesar das promoções, do prestígio que encontrou em certos
círculos. Confessou o quanto me admirava (e invejava) por ter cumprido tudo que
havia prometido quando éramos estudantes: ir para o interior, trabalhar onde o
enfermeiro fosse necessário, fazer o cuidado direto com as pessoas que
realmente precisavam, mudar a forma como se fazia, fazer programa de rádio,
escrever um livro. Admirou-se, com seu espirito aventureiro (ele faz trilha,
enduro com esses veículos 4x4 na lama) de quantos estados eu já havia morado: Espirito
Santos, Interior do Paraná, Mato Grosso do Sul, Bahia, Sergipe e agora Paraíba.
Trabalhei em Pronto Socorro, Clínica Médica, ensino, pesquisa, extensão e
principalmente na Estratégia Saúde da Família, que é onde me sinto muito à
vontade.
Enquanto ele falava de
minha vida, das minhas aventuras pelo Brasil, do que aprendi, vi e vivi, fiquei
admirando a família que ele construiu, a casa confortável, os brinquedos das
crianças (com cabelos de anjo – como ele) espalhados pelo chão, a bonita escada
de madeira que dava acesso ao segundo piso, e pensava: seria essa minha vida,
seria essa a casa que não tenho, caso não tivesse feito as escolhas que fiz?
Sai de Curitiba logo
após a formatura, vinte dias depois... já contei isso no texto, Os caminhos que
me trouxe até aqui, não pretendo voltar a isso[1]. A reflexão que importa aqui é o preço que se paga por
fazer o que se acredita, por ser quem se é. Deixei um concurso em uma
instituição federal (UFPR), quando fui para o interior, depois deixei de
assumir o concurso na Secretaria Estadual de Saúde do Paraná e na Prefeitura
Municipal de Curitiba, por conta de promessas vagas que não se cumpriram. O que
pretendia era fazer ESF, como acredito que se deve e, por um tempo foi muito
simples (é fácil fazer), apesar de toda dificuldade. Porém, com seis meses o
primeiro grande problema: o colega da equipe, descontente com a forma como era conduzido
o trabalho, intimou (e intimidou) o secretário de saúde a me demitir. Ele não
queria fazer ESF, mas apenas o trabalho ambulatorial que estava acostumado.
Nada de envolver-se com a comunidade, de prevenção de doenças ou promoção de
saúde. O esquema era atender, todos que formassem fila na madrugada, o mais
rápido possível (vi, certa manhã, ele atender 54 pessoas em uma hora e meia,
mais ou menos e antes das 10 horas ir embora).
Esse não foi o único
profissional com essa visão com quem trabalhei ao longo da vida, não foi o único
nem nesse emprego. Também não foi o único a tentar (e conseguir) me prejudicar.
Houve uma que tinha o hábito de (por via das dúvidas) prescrever dois tipos de
antibiótico, dois de anti-inflamatório, dois xaropes para tosse, três tipos de
pomadas diferentes para assadura, solicitar todos os exames laboratoriais disponíveis,
isso para não correr riscos. Ela pediu, dois anos depois, e o prefeito me
demitiu: era do mesmo partido dele e foi candidata a prefeita (recebeu parte
do que merecia nas urnas).
Também tinha aqueles
outros profissionais que, por parentesco com o prefeito, atual e anterior,
caiam de paraquedas no serviço: um fisioterapeuta (sobrinho do prefeito) que
detestava trabalho preventivo e certa vez me disse:
- melhor deixar agravar
e depois trato no hospital.
Uma dentista que só
agendava uma pessoa por dia e não esperava que chegasse, ia embora antes. Outra
que agendava atendimento com hora marcada para as gestantes (por que mostrei a
portaria que determinava que gestante não deveria esperar), mas, por
inacreditável que pareça, a mulher, agendada para às 11 horas, tinha que chegar
as sete e confirmar o atendimento (ainda tinha que esperando até a hora
marcada) ou era substituída. E dizia (de boca cheia):
- Isso aqui é SUS, não
é consultório particular.
Situações como essas
não são novidade para ninguém, nem para quem finge que isso não acontece, que
quer acreditar que melhores salários, melhores condições de trabalho são
suficientes para ter um servidor público mais humano e comprometido. (Claro que
tudo isso poderia ajudar, mas parece que o buraco é muito mais embaixo).
Brandão[2] diz que a educação (ao
menos a padrão) é pensada para formar pessoas para a competição do mercado,
para vencer o próximo e ser bem sucedido (ser bem sucedido é ter coisas –
chiques, bonitas, novas, tecnológicas – que se possa ostentar). Quando essas
pessoas bem educadas chegam ao SUS, parece que é isso que têm na cabeça (e
talvez nem possa ser diferente):
- Preciso ter coisas,
para isso tenho que trabalhar em dois (três, quatro, cinco) serviços ao mesmo
tempo (mesmo que fraudando o horário e o sujeito que precisa de cuidado – essa
parte ele só pensa).
Desde sempre se sabe e
se diz que os profissionais de saúde não são e nunca foram preparados para o
SUS (mas não parece ser só uma questão de mercado ou de ensino ou de mercado de
ensino – no serviço privado também é comum encontrar profissionais prepotentes,
arrogantes e tecnicamente lamentáveis). Dá para dizer que o SUS (ou melhor,
parte dos trabalhadores no SUS) pensa o sistema de forma solidário, enxergando seres
inteiros, merecedores de direitos, de consideração, mas outra parte pensa
apenas no como podem extrair o maior benefício possível com o menor esforço. Parece
uma questão de caráter, como fala Sennett[3].
O setor saúde não é uma
ilha (apesar de algumas pessoas pensarem que seja e até agir como
esquizofrênicos), espera-se que os profissionais sejam humanos, solidários,
responsáveis, mas tudo a sua volta diz que isso está fora de moda, que a
realidade é a competição brutal, salve-se quem puder, matar o leão e fazer uma
self com a cabeça ensanguentada e postar no facebook. Profissional bem sucedido
é aquele que tem casa grande, carro novo (importado, preferencialmente),
tablet, iphone, leva os filhos para Disney nas férias. Se, para fazer tudo isso
precisa burlar o cartão ponto, dar propina para o supervisor, apresentar
atestados psiquiátricos, fazer plantões de 24 horas que duram menos de quatro, tirar
de quem tem menos, tudo bem! Afinal de contas, se ele não roubar, outro roubará
e pobres, ora vejam só! Pobres sempre existirão, está escrito até na bíblia.
Quem já viu o filme, o
menino de pijama listrado[4]
vai se lembrar: o oficial comandava, durante todo o dia, o extermínio de
pessoas descartáveis para o regime, mulheres, crianças, idosos, homens doentes.
No fim do expediente ia para casa, jantava com a família, falava do trabalho,
contava história para o filho dormir, como se tudo que fez o dia todo fosse
coisa normal, apenas mais um trabalho como outros tantos.
Assim me parece alguns profissionais:
chegam em casa, jantam com a família, ficam indignados com a corrução e a
ineficiência no governo, vendo o jornal nacional. Reclamam da alta do dólar, do
governo, da Bolsa Família sustentar vagabundos, de não encontrar boas empregadas por menos de um salário mínimo, de não dar melhores
condições de ensino as universidades públicas, de ter que pagar impostos tão
altos.
Fazer isso é muito mais
simples quando o profissional não se envolve com a comunidade, não conhece, não
tem vínculo, sente e age como sendo superior, pertencente a outro mundo.
Aquele profissional que por sua condição política, de presença no mundo, pela
fé, conhece, desenvolve vínculo com a comunidade, paga o preço. Sofre as dores
da carência da comunidade, das dificuldades, das histórias. Se isso já não
fosse tortura demais, ainda são submetidos ao desprezo de colegas que se sentem
incomodados com o fato da simples presença deles lhes jogar na cara todo dia que
são, também, responsáveis pelo campo de extermínio.
Quem quer descobrir uma
coisa dessas? Que sentimento ter em relação a quem lhe obriga a ver que não é
apenas uma vítima passiva, mas que ajuda todo dia a aumentar a pilha de corpos?
Como conviver vendo
isso e não ser conivente?
Um colega disse, dia
desses, que a gente não deve perder a capacidade de se indignar. É verdade!
Eu continuo indignado
com a conformidade geral.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10
às 6tas-feiras]
* Título
emprestado da música L’aventura, da Legião Urbana.
[1]
PRADO, E.
V. D. Os caminhos que me trouxeram até aqui. In: MANO, M. A. M. e PRADO, E. V.
D. (Ed.). Vivências de educação popular em atenção primária à saúde: a
realidade e a utopia. São Carlos - SP: EDUFSCAR, v.1, 2010. p.82-92.