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03 março 2017

O que o povo quer?

Marcilane Santos
Imagem capturada na internet, 2017.
O povo quer morar
O povo quer moradia
O povo quer um lar
Mas não um lar apenas
O povo quer água, luz
Saneamento básico 
O povo quer banda larga
Quer ver suas ruas calçadas 
Quer comida na mesa
O povo quer saúde 
Gratuita e de qualidade
Quer uma saúde de verdade
Quer que os "dotô" olhe tudinho nos seus olhos
E pergunte: "O que sente?"
De uma forma tão porreta 
Que a moça ou o moço sentada/o na cadeira
Perceba que o "dotô" realmente se importa
O povo quer ser cuidado
Não quer se sentir menor 
Não quer ser atendido com tom de deboche 
Nem sair da consulta com uma cara de poste
Sem entender muito bem o que tem
O povo quer educação 
Quer ver seus filhos tudo com diploma na mão 
Ganhando a vida pelo mundo afora 
Seja aqui ou "nos estrangeiro"
Esse meu povo brasileiro 
Quer mesmo é uma boa formação
O povo também quer entender o porquê 
de tanta palavra difícil 
Uns tal de Acessibilidade, 
Globalização, Sustentabilidade 
Se lá nas comunidades, não se vê nada disso
O povo quer transporte público de qualidade
Mas público de verdade
E não que levem a cada dia 
Um pouco mais de seus trocados 
Hoje o povo se sente assaltado 
Cada vez que põe a mão no bolso
O que eu sei é que povo vive esmorecido
Porque tudo é prometido
E pouco se vê cumprido 
Nesse Brasil brasileiro.

[Convidado publica na Rua Balsa das 10 aos sábados e domingos]

23 outubro 2016

Mini Sarau Rua Balsa das 10


Maria Amélia Medeiros Mano, Júlio Wong Un, Ernande Valentim do Prado, Eymard Mourão Vasconcelos, Mayara Floss Cuidar de pessoas exige saber e técnica. Tais elementos, sistematizados, organizados e apreendidos são registrados em prontuários, com linguagem aprendida e exigente. Esquecemos, muitas vezes, que cuidar também exige um encantamento por vezes borrado por essas mesmas exigências técnicas que fazem a história virar anamnese. Necessária e valiosa, sabemos que "coletar" uma boa anamnese é o essencial na arte de cuidar. Esquecemos, muitas vezes, que nas entrelinhas do dito, do não dito, há a possibilidade de outros registros, outras trocas e até, outras formas de descrever e devolver o mundo oferecido pelo usuário de um jeito menos doloroso. Tal processo nem sempre exige que se abandone a forma de escrever, mas que se dê colorido novo, muitas vezes compartilhado com o próprio usuário. Como se, juntos, pudéssemos recompor histórias e, com elas, entender melhor os processos e se não, ao menos, nos encantar mais com as vidas e dores. A objetivo da atividade é abordar as diversas formas de escrita e registro literário-poético a partir da experiência do blog Rua Balsa das 10 (www.balsa10.blogspot.com).

Neste espaço com uma apresentação em formato de Mini Sarau com o amigo e colaborador Arnildo Dutra de Miranda Júnior e autora do blog Mayara Floss. Talvez, um prontuário musicado, um cotidiano que virou poesia, uma balsa que navega e voa.

15 julho 2016

ALICE, CONTANDO ESTÓRIA

Ernande Valentin do Prado
Dias destes estava com Alice e Bene na orla de João Pessoa. Bene contou uma linda história sobre sua irmã, Luzia, que, segundo ele, desde crianças tinha solução para todo e qualquer problema. Para ilustrar, contou essa história, que depois gravei na interpretação de Alice.

Eu gostei muito, espero que gostem também.



[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

15 janeiro 2016

ESTRATÉGIA SAÚDE DO “VENHA SÓ SE ESTIVER COM DOR”

Tatuagem de parede - Tambau, João Pessoa. Ernande, 2016.
Ernande Valentin do Prado

Dia destes estive em um restaurante muito interessante em João Pessoa, bairro dos bancários, ao lado da praça da paz, mas ele poderia ser realmente bom, mas parece que se contentam em ser só interessante, em ser uma imagem do que poderia ser.
Era um sábado de clima agradável. A praça da paz estava cheia de gente. Eu, Larissa e Alice saímos do Circo Irmãos Power e caminhamos a procura de um lugar para comer e conversar sobre o espetáculo circense que havíamos visto. O restaurante, antes de entrarmos, parecia um ambiente agradável, limpo, arejado, bem decorado, poucas mesas, música ambiente na altura correta e coerente com a proposta do lugar (só forró pé de serra), o cardápio variado e diferenciado incluía iguarias nordestinas como carne de sol com macaxeira, tapiocas de diversos tipos, petiscos e sorvetes com sabores da região, doces, cachaças, sucos. As coisas, pensando apenas na estrutura, pareciam no lugar certo, no tamanho exato.  Mas vai vendo, como disse em outro texto:
O que me serviram, macaxeira com carne de bode, poderia estar delicioso, mas...
Quando entramos, o rapaz que atendia, bem uniformizado, utilizando-se de um tablet para organizar os pedidos, praticamente não nos notou, apenas lançou um olhar cansado, como quem diz: mais uma mesa para atender.
 Ficamos sentados, aguardando que alguém nos notasse, mas nada. Com o tempo de espera notamos que as bonitas mesas de madeira estavam meio sebosas. Não exatamente sujas, era mais uma coisa do tempo, uma gordura que vai se acumulando pelo descuido sistemático. O que era meio estranho, já que o lugar parecia bem novo ainda, assim como os atendentes. 
Depois de um tempo o rapaz do Tablet, ainda na mesa ao lado, olhou em nossa direção e sem mudar a expressão facial ou abrir a boca, jogou um cardápio na mesa. Estávamos em três, haviam cardápios à disposição, mas ele só nos “jogou” um. E, no seu rosto, tive a sensação de ver que ainda pensou estar nos fazendo um favor inestimável. Não acho que ele deveria deixar de atender a outra mesa para nos dar atenção, não é isso, mas o que custava dizer: “só um instante, já lhe atendo” ou então entregar os cardápios de um modo eficiente e humanizado? Se assim tivesse agido, poderíamos nos distrair até que ele pudesse nos dar sua atenção de verdade.
Não havia no restaurante, no momento que entramos, nem 15 pessoas. Eram mais ou menos umas cinco ou seis mesas ocupadas, ou seja, com três pessoas atendendo, menos de cinco pessoas por atendente. Não havia superlotação, o que poderia ser uma desculpa para não acolher de imediato os novos frequentadores.
Quando, depois de um tempo e de Alice chamar atenção, o rapaz resolveu nos atender, parecia que não escutava o que falávamos ou que não entendia (mas poderia ser apenas falta de interesse). Tive que repetir três vezes o meu pedido: carne de bode com macaxeira, e até apontar a figura no cardápio. O rapaz, com o tablet na mão parecia não estar acostumado com a tecnologia, que francamente, com aquele nível de movimento não parecia ajudar em nada. Imaginei que ele anotava o pedido e automaticamente a cozinha tinha acesso, mas o vi no balcão repassando os pedidos para uma moça que os anotou, isso depois que ele ainda passou em outras duas mesas, no caminho do balcão. Enfim, o tablet parecia como aqueles televisores que, como desculpa pelo potencial educativo, ficam ligadas na Ana Maria Braga ou em desenhos animados, nas repartições públicas.
Larissa fez suas escolhas, Alice as dela. Ele foi embora. Depois de um tempo voltou. Já estava achando que o serviço era rápido, mas ele só queria confirmar os pedidos, talvez achando que da primeira vez tinha sido pegadinha ou que havíamos mudado de ideia. Não tenho certeza sobre o que se passou na cabeça dele. Aproveitei para reafirmar que queria uma cerveja, mas o pedido não vinha nunca e eu vendo os três atendentes conversando no balcão.  Chamei, mas claro que ele não viu, estava de costas e tive que esperar até ele resolver olhar para o salão. Quando fez, chamei-o e perguntei:
- E as bebidas?
Assustado, como se servir bebidas não fosse uma coisa normal, ele disse:
- É para servir as bebidas?
Foi até um freezer vertical muito bonito, estampado com a marca da cerveja, com portas de vidro e trouxe duas cervejas quentes, bebi a minha enquanto esperava, Alice fez o mesmo com seu refrigerante e Larissa ficou bebericando. A cerveja quente acabou, e nada do prato chegar e nem o atendente voltar para saber se eu tinha interesse em beber mais uma cerveja quente (ou, quem sabe gelada desta vez). Também poderia ter nos oferecido uma porção de batatas ou de pastel de carne de sol, ou de queijo coalho com melaço de cana, mas não fez nada disso.
Será que fui atendido assim por que o rapaz não foi com a minha cara (não seria de se estranhar) mas como não ir com a cara de Larissa e Alice?
Depois de quase desistir de tanto esperar, chegou minha macaxeira com carne de bode. A macaxeira estava quente (queimando a boca) o bode gelado (talvez para compensar a cerveja quente). Pedi que esquentasse o bode, a moça levou (sem nada dizer, com cara de que eu estava sendo muito exigente), demorou um tempo mais do que aceitável e voltou com o bode quente e a macaxeira fria. Comi, para evitar fazer um barraco (sábado à noite não dá para fazer barraco), pedi a conta, que foi bem menor do que estava disposto a pagar e fui embora. Não me oferecem uma sobremesa de banana que eu questionei ao atendente como fazia, nem um café e nem disseram:
- Volte sempre, nossa razão de existir é lhe servir.
Mas veja bem: diferente da UBS, do meu Bairro, neste restaurante não sou obrigado a voltar nunca mais, não sou adstrito a área dele. Existem outras opções. Posso, por exemplo, ir ao quiosque que fica na praia de Tambaú e tem duas garçonetes tão eficientes que até parecem se teletransportar e a macaxeira frita é uma das melhores que já provei (até Alice, que não gosto de quase nada, adorou).
Sabe porque sei disso?
Porque ao sair do mar e aproximar-me do chuveiro (achando que só ligariam a água, como em outro quiosque no mesmo Tambau, depois que comprasse alguma coisa). Sem falar, sem perguntar, sem insinuar nada, a garçonete, mesmo com o restaurante lotado, viu e ligou a água. Fiquei tão surpreso (positivamente) que quando ela perguntou se queríamos uma mesa, disse que sim, mesmo já tendo planejado almoçar em outro lugar. Quando fui embora ela disse:
- Deseja mais alguma coisa... volte sempre.
Certamente voltarei, mesmo que não sinta dor.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

18 dezembro 2015

AUTORIDADE/AUTORITARISMO

Foto: Ernande, 2015, a partir de Artesanato de Larissa Mendonça Bernini.
Ernande Valentin do Prado


Pela janela
do coletivo que vai sentido bairro,
mas parado no bloqueio,

vejo, em exercícios,
alunos da academia de polícia militar.
Nada mais do que um bando de garotos:

fardados,
assustados,
armados.

Estão fazendo cara de mal.
Agora, só sinto pena.
Mas daqui a pouco, vão estar na rua:

formados,
fardados,
armados.

Vão reprimir professores em greve.
Vão dar tapa  na cara  de  bêbados.
Vão comer, beber “de graça” no bar.

Com o tempo,
vão perder a alma por migalhas,
quase sem perceber, cada dia um pouquinho.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

27 novembro 2015

ESPERANÇA

Foto: praça central em Campina Grande, PB. Ernande, 2015
Ernande Valentin do Prado
Caminhava
por um corredor de paredes muito altas, brancas,
deixando para trás duas mortes.

na frente, do outro lado, distante, te via
como quem vê a luz.

Mãos  
Tremiam sujas: sangue,
não era meu.

Sujas,
as mãos,
limpei nas paredes e nas roupas.

Não,
não senti remorso, nem nojo
só um vazio (mãos tremendo, pegajosas, vermelhas, sujas).

Precisava,
com urgência,
chegar em casa, te abraçar, espalhar seus cabelos louros por entre meus dedos

assim,
tornar-me
alguém melhor.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

13 novembro 2015

DESACORDO*

Rio Negro e Solimões - foto: Ernande, 2015

Ernande Valentin do Prado

- Você vai mesmo?

- Vou.

- Tudo bem.

- A gente já falou tanto sobre isso (...)

- Tudo bem.

- Não me olhe assim (...)

- Tudo bem.

- Você vai ficar legal? (...) quer que eu esquente a janta pra você? (...)

Meu Deus! (será que vou conseguir levar isso até o fim?) o que será de minha vida? O que será da vida de todos em minha volta? preciso pensar em outras coisas, outras, outras (...)

- Não precisa. Eu me viro, já dei muito trabalho.

- Eu não me incomodo...

Tinha uma escada enorme na casa de minha avó... Eu era pequena e me lembro que a gente (minha mãe, minhas tias, todas as mulheres da casa) sentava nos degraus pela manhã e ficava conversando e esquentando ao sol. Elas falavam da novela, da vida dos outros... eu quase não falava, era muito pequena, mas de vez em quando abria a boca e minha mãe gritava comigo.


- (...) eu nunca me incomodei. 

Eu não sei como alguém pode beber cachaça: meu pai bebia. Bêbado, ficava parado, olhos vidrados, fixo numa mesma coisa, olhava, mas era como se nada visse nada, nada, nada (Deus...), como se nem estivesse ali, como se a alma (meu Deus, eu não vou aguentar) o tivesse abandonado. Babava (...) falava um monte de besteiras para ninguém. No dia seguinte passava mal, ficava tremendo. Que nojo: era horrível!


- Não chora.

Logo que nos conhecemos, passamos a noite dançando? Na madruga caminhamos até sua casa. Saímos abraçados pela rua. Uma neblina fina ofuscava o brilho das luzes dos postes, um friozinho de outono incomodava. Caminhávamos: no primeiro quarteirão disse: meus pés estão me matando. No segundo quarteirão disse: não aguento mais esses sapatos. No terceiro quarteirão disse: vou tirar os sapatos. E a meia, questionei. Vou tirar também, Não olhe. Mas olhei. Estávamos em frente a uma construção abandonada, embaixo de uma luminária apagada. Vi quando levantou a sai (não se incomodou com meu olhar). Não vi suas pernas nem nada. De pés no chão, sorriu e disse: moro longe, tem certeza que quer me acompanhar? Não tem importância. Tinha medo da noite acabar e a gente nunca mais se ver.


- Eu não estou chorando.

- Você ainda me ama?

- Amo (...) muito, muito mesmo (...) como uma desesperada.

- Então fica.

Meu Deus, quando ele me olha assim (...) sinto que nada mais importa.


- Eu já vou (...) 

- Fica.

Sempre vivi em pânico: sempre com medo de alguma coisa, medo de crescer, medo de ter que fazer a barba pela primeira vez, medo do serviço militar, medo de não me acostumar a ser adulto, medo de não encontrar a mulher da minha vida. Medo de perde-la, acaso a encontrasse.


- Você promete? 

- Eu amo você!

Um dia no centro da cidade vi um garoto encolhido sobre os joelhos. Ele chorava baixinho. Parei diante dele com o coração apertado, sem saber o que fazer. Só queria voltar para casa, te abraçar, pedir para cuidar de mim, não me deixar só neste mundo.


- Não me segure mais (...) não te entendo. Acho que você pensa demais. Isso não é bom. Teve um tempo que fiquei assim. Passava o dia pensando. Ninguém me aguentava. Minha mãe gritava comigo o dia todo e meu pai dizia que eu estava louca. Eu não te entendo (...) não entendo (...) não consigo viver assim (...) eu tentei (...) Juro: eu tentei de todo jeito te entender, juro que tentei (...) 

Eu nunca amei ninguém, nem vou amar, a não ser está mulher parada aqui na minha frente, esperando ouvir alguma coisa que não posso dizer.


- Por que faz isso comigo?

Na primeira noite, levantei-me com cuidado, evitando fazer barulho, fui até o canto do quarto, onde estava jogada sua calcinha. Peguei a pequena peça embola e ajeitei. Olhei receoso para a cama onde dormia descoberta, deitada de lado com as mãos sob a cabeça, fazia um leve som com a boca cada vez que expirava...

- Por que não promete? Eu estou louca pra ficar (...) juro por Deus (...) mas também não posso viver assim (...) você tem que comprometer-se (...) ou não fico.

Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar por você (...)


- Eu não posso fazer nada.

Eu me lembro de uma cena que ficou perdida em minha infância: não me lembro quantos anos tinha, nem onde estava. Só lembro de um pedaço de quintal de terra vermelha, batida, na entrada de uma mata. Eu brincava com duas crianças, que deveriam ser minhas irmãs. Dentro da mata, junto à margem do rio estava minha mãe. Lembro de meu pai chegar com um galãozinho de plástico na mão e jogar na margem do carreador que dava no rio, onde estava minha mãe. Algum tempo depois, voltou com ela nos braços, como se carregasse uma princesa.


- Eu não posso fazer nada. Nunca pude, nunca vou poder.

- É incrível...

Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar por você... 


- Eu colocando minha vida em suas mãos e você (...) você não é capaz de um gesto (...) nada (...).

Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar... que iriamos morar juntos...


- (...) você é incapaz de pensar em alguma coisa além de você e suas convicções (...)

Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar por você. Que iriamos morar juntos, que iria sofrer.


- Tudo bem.

- Tudo bem o que?

- Você está certa.

- Estou certa em que?

Penteei meus longos cabelos negros, com muita paciência e cuidado, ainda nua em frente ao espelho. Meus olhos brilhavam, meus lábios vermelhos não disfarçavam o sorriso de contentamento com o desejo que lhe despertava, despertaria. Na gaveta de calcinhas escolhi a menor, a que me parecia mais sexy. Vesti, colocando primeiro o pé direito e depois o esquerdo. Puxei até a virilha, ajeitei as dobras na nádega. Por algum tempo fiquei me olhando no espero e pensando: será que ele vai gostar de mim, do meu corpo, da minha alma? Virei as costas, peguei uma blusa branca, quase transparente, vesti por cima do corpo arrepiado. Do cabide, peguei uma saia. Para os pés uma sandália que deixava meus dedos a mostra, em sua altura. Olhei novamente ao espelho, fiquei satisfeita com o que vi, saí para a primeira noite.


- Você está certa.

- (...)

- Não chora.

Eu sem você (...) você sem mim. É tão triste.


- Eu já vou.

- Você vai sem me dar um beijo?

- Desce aqui (...) você está tão alto.

* Essa história foi escrita originalmente em 1994. Fazia parte de uma publicação intitulada Histórias abortadas e abortivas, que acabou sendo abortada.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

30 outubro 2015

QUEM PENSA POR SI MESMO É LIVRE E SER LIVRE É COISA MUITO SÉRIA

Bandeira que vi em um encontro de estudantes de enfermagem na UFPB em 2015
Ernande Valentin do Prado*

Passei quatro anos sem voltar à Curitiba. Quando voltei, fui visitar os amigos. Fiquei chocado (estou re-escrevendo este texto mais ou menos dois anos depois, mas continuo chocado) em saber que alguns não se viam o mesmo tempo que não me viam, mesmo morando na mesma cidade. Será que é a cidade grande que afasta as pessoas ou tudo está condenado ao afastamento?
A imensa culpa que sentia por estar longe, foi diminuindo aos poucos: se ali estivesse, era provável que também não nos veríamos. Talvez o fato de estar tão longe (fisicamente) seja uma boa desculpa para juntar os velhos amigos, os velhos comparsas de tantas histórias, mesmo que de quatro em quatro anos.
Um desses amigos, com quem fui muito próximo (um pouco mais do que com os outros, apesar da grande diferença de gênio entre nós), falou-me de sua rotina no serviço pública de Curitiba, das dificuldades, das frustrações, do sentimento de estar afundando em areia movediça, apesar das promoções, do prestígio que encontrou em certos círculos. Confessou o quanto me admirava (e invejava) por ter cumprido tudo que havia prometido quando éramos estudantes: ir para o interior, trabalhar onde o enfermeiro fosse necessário, fazer o cuidado direto com as pessoas que realmente precisavam, mudar a forma como se fazia, fazer programa de rádio, escrever um livro. Admirou-se, com seu espirito aventureiro (ele faz trilha, enduro com esses veículos 4x4 na lama) de quantos estados eu já havia morado: Espirito Santos, Interior do Paraná, Mato Grosso do Sul, Bahia, Sergipe e agora Paraíba. Trabalhei em Pronto Socorro, Clínica Médica, ensino, pesquisa, extensão e principalmente na Estratégia Saúde da Família, que é onde me sinto muito à vontade.
Enquanto ele falava de minha vida, das minhas aventuras pelo Brasil, do que aprendi, vi e vivi, fiquei admirando a família que ele construiu, a casa confortável, os brinquedos das crianças (com cabelos de anjo – como ele) espalhados pelo chão, a bonita escada de madeira que dava acesso ao segundo piso, e pensava: seria essa minha vida, seria essa a casa que não tenho, caso não tivesse feito as escolhas que fiz? 
Sai de Curitiba logo após a formatura, vinte dias depois... já contei isso no texto, Os caminhos que me trouxe até aqui, não pretendo voltar a isso[1]. A reflexão que importa aqui é o preço que se paga por fazer o que se acredita, por ser quem se é. Deixei um concurso em uma instituição federal (UFPR), quando fui para o interior, depois deixei de assumir o concurso na Secretaria Estadual de Saúde do Paraná e na Prefeitura Municipal de Curitiba, por conta de promessas vagas que não se cumpriram. O que pretendia era fazer ESF, como acredito que se deve e, por um tempo foi muito simples (é fácil fazer), apesar de toda dificuldade. Porém, com seis meses o primeiro grande problema: o colega da equipe, descontente com a forma como era conduzido o trabalho, intimou (e intimidou) o secretário de saúde a me demitir. Ele não queria fazer ESF, mas apenas o trabalho ambulatorial que estava acostumado. Nada de envolver-se com a comunidade, de prevenção de doenças ou promoção de saúde. O esquema era atender, todos que formassem fila na madrugada, o mais rápido possível (vi, certa manhã, ele atender 54 pessoas em uma hora e meia, mais ou menos e antes das 10 horas ir embora).  
Esse não foi o único profissional com essa visão com quem trabalhei ao longo da vida, não foi o único nem nesse emprego. Também não foi o único a tentar (e conseguir) me prejudicar. Houve uma que tinha o hábito de (por via das dúvidas) prescrever dois tipos de antibiótico, dois de anti-inflamatório, dois xaropes para tosse, três tipos de pomadas diferentes para assadura, solicitar todos os exames laboratoriais disponíveis, isso para não correr riscos. Ela pediu, dois anos depois, e o prefeito me demitiu: era do mesmo partido dele e foi candidata a prefeita (recebeu parte do que merecia nas urnas).
Também tinha aqueles outros profissionais que, por parentesco com o prefeito, atual e anterior, caiam de paraquedas no serviço: um fisioterapeuta (sobrinho do prefeito) que detestava trabalho preventivo e certa vez me disse:
- melhor deixar agravar e depois trato no hospital.
Uma dentista que só agendava uma pessoa por dia e não esperava que chegasse, ia embora antes. Outra que agendava atendimento com hora marcada para as gestantes (por que mostrei a portaria que determinava que gestante não deveria esperar), mas, por inacreditável que pareça, a mulher, agendada para às 11 horas, tinha que chegar as sete e confirmar o atendimento (ainda tinha que esperando até a hora marcada) ou era substituída. E dizia (de boca cheia):
- Isso aqui é SUS, não é consultório particular.
Situações como essas não são novidade para ninguém, nem para quem finge que isso não acontece, que quer acreditar que melhores salários, melhores condições de trabalho são suficientes para ter um servidor público mais humano e comprometido. (Claro que tudo isso poderia ajudar, mas parece que o buraco é muito mais embaixo).
Brandão[2] diz que a educação (ao menos a padrão) é pensada para formar pessoas para a competição do mercado, para vencer o próximo e ser bem sucedido (ser bem sucedido é ter coisas – chiques, bonitas, novas, tecnológicas – que se possa ostentar). Quando essas pessoas bem educadas chegam ao SUS, parece que é isso que têm na cabeça (e talvez nem possa ser diferente):
- Preciso ter coisas, para isso tenho que trabalhar em dois (três, quatro, cinco) serviços ao mesmo tempo (mesmo que fraudando o horário e o sujeito que precisa de cuidado – essa parte ele só pensa).
Desde sempre se sabe e se diz que os profissionais de saúde não são e nunca foram preparados para o SUS (mas não parece ser só uma questão de mercado ou de ensino ou de mercado de ensino – no serviço privado também é comum encontrar profissionais prepotentes, arrogantes e tecnicamente lamentáveis). Dá para dizer que o SUS (ou melhor, parte dos trabalhadores no SUS) pensa o sistema de forma solidário, enxergando seres inteiros, merecedores de direitos, de consideração, mas outra parte pensa apenas no como podem extrair o maior benefício possível com o menor esforço. Parece uma questão de caráter, como fala Sennett[3].
O setor saúde não é uma ilha (apesar de algumas pessoas pensarem que seja e até agir como esquizofrênicos), espera-se que os profissionais sejam humanos, solidários, responsáveis, mas tudo a sua volta diz que isso está fora de moda, que a realidade é a competição brutal, salve-se quem puder, matar o leão e fazer uma self com a cabeça ensanguentada e postar no facebook. Profissional bem sucedido é aquele que tem casa grande, carro novo (importado, preferencialmente), tablet, iphone, leva os filhos para Disney nas férias. Se, para fazer tudo isso precisa burlar o cartão ponto, dar propina para o supervisor, apresentar atestados psiquiátricos, fazer plantões de 24 horas que duram menos de quatro, tirar de quem tem menos, tudo bem! Afinal de contas, se ele não roubar, outro roubará e pobres, ora vejam só! Pobres sempre existirão, está escrito até na bíblia.
Quem já viu o filme, o menino de pijama listrado[4] vai se lembrar: o oficial comandava, durante todo o dia, o extermínio de pessoas descartáveis para o regime, mulheres, crianças, idosos, homens doentes. No fim do expediente ia para casa, jantava com a família, falava do trabalho, contava história para o filho dormir, como se tudo que fez o dia todo fosse coisa normal, apenas mais um trabalho como outros tantos.
Assim me parece alguns profissionais: chegam em casa, jantam com a família, ficam indignados com a corrução e a ineficiência no governo, vendo o jornal nacional. Reclamam da alta do dólar, do governo, da Bolsa Família sustentar vagabundos, de não encontrar boas empregadas por menos de um salário mínimo, de não dar melhores condições de ensino as universidades públicas, de ter que pagar impostos tão altos.
Fazer isso é muito mais simples quando o profissional não se envolve com a comunidade, não conhece, não tem vínculo, sente e age como sendo superior, pertencente a outro mundo. Aquele profissional que por sua condição política, de presença no mundo, pela fé, conhece, desenvolve vínculo com a comunidade, paga o preço. Sofre as dores da carência da comunidade, das dificuldades, das histórias. Se isso já não fosse tortura demais, ainda são submetidos ao desprezo de colegas que se sentem incomodados com o fato da simples presença deles lhes jogar na cara todo dia que são, também, responsáveis pelo campo de extermínio.
Quem quer descobrir uma coisa dessas? Que sentimento ter em relação a quem lhe obriga a ver que não é apenas uma vítima passiva, mas que ajuda todo dia a aumentar a pilha de corpos?
Como conviver vendo isso e não ser conivente?
Um colega disse, dia desses, que a gente não deve perder a capacidade de se indignar. É verdade!
Eu continuo indignado com a conformidade geral.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]



Título emprestado da música L’aventura, da Legião Urbana.
[1] PRADO, E. V. D. Os caminhos que me trouxeram até aqui. In: MANO, M. A. M. e PRADO, E. V. D. (Ed.). Vivências de educação popular em atenção primária à saúde: a realidade e a utopia. São Carlos - SP: EDUFSCAR, v.1, 2010.  p.82-92. 
[2] BRANDÃO, C. R. A educação popular na escola cidadã.  Petrópolis: Vozes, 2002. 
[3] SENNETT, R. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2009. 
[4] Sobre O menino do pijama listrado. Disponível em: Acessado em: 21 out. 2015.

23 outubro 2015

A “VERDADE” IMAGINADA


Ernande Valentin do Prado

Para meu amigo Paulo,
com quem divido o gosto pela literatura.

          O primeiro livro que li foi Cem noites tapuias, da coleção vagalumes. A professora, na cidade de Arujá, São Paulo, onde cursei a quinta série, pediu que fizesse um resumo. Não foi coisa simples: primeiro, custava caro e meus pais não estava em uma situação financeira muito boa (aliás, acho que nunca tive na vida uma situação financeira boa, mas essa foi uma das piores), segundo porque não foi fácil encontrar, tive que percorrer várias livrarias. Terceiro, porque fazer resumo é muito chato.
      Depois descobri que existia uma biblioteca na cidade. Ficava longe, quase fora da cidade, no meio de uma mata ou bosque, não sei (em minha lembrança era uma mata, até um bicho preguiça eu vi no caminho). Lá descobri outros livros: menino de asas, o mistério do cinco estrelas, o escaravelho do diabo. Li todos, sem a professora pedir. Tomei gosto.
       Na adolescência, meu primeiro livro foi 2001 - Odisseia especial. Estava jogado em um canto da casa de minha avó materna. Ninguém sabia de quem era, peguei para mim. Foi muito interessante observar as diferenças entre a narrativa cinematográfica e a literatura. Por exemplo, no filme 2001, a famosa cena, de pouco segundos, em que o homem usando um osso como arma, conquista a natureza a sua volta, impondo-se sob os outros animais mais fortes, mais rápidos do que ele, e, em seguida o joga para alto e este gira até se transformar em uma espaçonave, é descrita em três páginas. Tomei gosto pela ficção científica desde então.
         O primeiro livro de literatura brasileira adulta foi Angústia, de Graciliano Ramos. Agora os autores começaram a ter importância, além das histórias. Foi com Angústia que descobri que uma história não precisava começar no começo e terminar no fim. Foi uma constatação que revolucionou meu modo de pensar.  Aliás, em literatura, as histórias não precisam necessariamente ter começo, meio e fim, não nesta ordem, mas esta é outra conversa. O engraçado é que o livro mais importante de minha vida, que é sem dúvida Angústia, não lembro onde, nem quando li pela primeira vez.
         No Pirapó, distrito de Apucarana, no Paraná, onde passei boa parte da adolescência, interessei-me por filosofia e tentei ler os clássicos, mas era muito difícil (não conseguia entender nada), então li um pouco de história e continuei na literatura, nos livros que haviam disponíveis na biblioteca da escola, depois descobri a biblioteca pública do bairro 28, em Apucarana – ia quando dava. Nesta época lia um livro de cada vez e de vez em quando.
      Depois de sair do quartel em 1989, (onde fui obrigado a ficar um ano, 28 dias e algumas horas), fui para Fazendo Rio Grande, Região Metropolitana de Curitiba. Lá fiz o segundo grau. Conheci o Paulo, o cara consumia leitura, sobretudo literatura, como consumia ar. Certa vez, olhando a capa do livro Grande Sertão Veredas, ele disse:
          - já leu?
         Não tinha lido, aliás, não tinha lido nada de Guimarães Rosa, ainda. Paulo disse: já li, é muito bom.
         Aliás, tem uma história ótima sobre livros de Guimarães Rosa:
        Chegou em minha mão o livro, Primeiras Histórias. Li, achei lindo, resolvi ficar com ele, ninguém sabia de fato quem era o dono. O livro ia sendo roubado por quem podia e achei que era hora dele achar um dono que o amaria para sempre. Certo dia, uma colega (Fátima), estava em casa, viu o livro, pegou, analisou e disse:
         - Esse livro é meu...
         - Como assim? Eu roubei do Marcelo?
         - Acho que o Marcelo Roubou de mim, disse ela, muito tranquila.
     Mas tudo bem, ladrões de livro, certamente vão para o céu.
         Outra história interessante:
       Estava na cada de um amigo, Adilson, professor de literatura. A parede do quarto tomada de livros, várias edições de um mesmo título de Machado de Assis (seu autor favorito). Segundo ele, edições diferentes tinha sua importância, nunca entendi qual, mas o Paulo também colecionada edições diferentes de uma mesma obra.
          Perguntei, como que fazendo sugestão:
        - Já ouviu falar daquele movimento de gente que abandona livro nas ruas, praças, para que outros achem?
           - Já! Disse ele, vivo procurando nas ruas, mas ainda não achei nenhum.
           Mas voltemos à nossa conversa.
         Em Curitiba havia (acho que ainda há), uma biblioteca estadual maravilhosa. Lá ia toda semana ou ao menos há cada 15 dias. Com o tempo íamos eu e Paulo. Nela vivi experiências profundas: passei 45 dias cavalgando pelo interior do Minas Gerais, com os jagunços de Grande Sertão Veredas, sempre à espreita de uma tocaia. Com Lívia, passei 15 dias morando à beira mar, esperando a inevitável tragédia com Guma. Ajudei nas buscas do corpo em alto mar, observando as águas cor de chumbo do Mar Morto de Amado Batista. No Rio Grande do Sul senti o calor me sufocar no interior da cabana de Ana Terra, pouco antes dela se entregar ao amor de sua vida e ter um filho ilegítimo que mudaria sua vida e de todo o povo gaúcho. Com Bebel, vaguei de bar em bar, de show em show, conheci artistas famosos, enchi a cara, cai na degradação em busca da fama perdida, até ser comida pela cidade de Inácio de Loyola Brandão. Com Domingos Pellegrini ajudei a desbravar as matas, as estradas lamacentas da Terra Vermelha do norte do Paraná e a fundar a cidade de Londrina.
           Paulo, certa vez disse:
           - Melhor não ler muito rápido. Literatura a gente tem que saborear aos poucos.
           Lia muito rápido porque passava tempo demais nos ônibus ou esperando os ônibus (não acredite quando dizem que em Curitiba o transporte é bom – pode ser melhor que de outros lugares, mas bom não é). Ia para metalúrgica lendo, voltava lendo. Se pegava a fila do banco (adorava) passava horas lendo. Daí lia com facilidade três livros a cada 14 dias, tempo máximo de empréstimo, número máximo de livro que se podia pegar de cada vez, naquela época. Lia um, terminava e começava outro. Mas Paulo disse:
           - Leia três de uma vez.
           - Mas não mistura as histórias? Quis saber.
           - Eu leio cinco de cada vez, disse ele.
          No início não foi muito fácil, mas com o tempo dominei a técnica de ler três livros ao mesmo tempo. Tomava o cuidado de escolher um de cada assunto: literatura, sociologia ou história, biografia, ou qualquer outra coisa.
          Nesta conta não entravam os livros obrigatórios da escola. Os que tinha que ler por obrigação. Aliás, eu e Paulo quase cursamos letras, mas a ideia de ser obrigados a ler José de Alencar nos apavorava. Juntos quase fizemos muitos outros cursos universitários, mas acabamos mesmo é trabalhando de pedreiros e fazendo o curso de Auxiliar de Enfermagem.
           Uma noite, na aula de literatura, descobrimos que a professora havia cursado letras e nunca tinha ouvido falar em Graciliano Ramos. Espantado e Indignado, com a fina ironia extremamente ácida, Paulo perguntou:
            - Em que faculdade a senhora se formou mesmo?
           Depois disso ela não conseguia mais dar aula, ao menos em nossa turma. Mas essa turma era mesmo difícil. Paulo, com frequência e sem nenhum esforço, sabia mais do que quase todos os professores, em qualquer assunto e disciplina e constantemente os auxiliava nas dificuldades (ser professora é muito difícil).
         Paulo falava de muitas coisas ao mesmo tempo, não se perdia em nenhum assunto, conseguia dar continuidade em todos, fechava todas as janelas que abria, não deixa pontas soltas. Sabia de literatura, inclusive da bíblia e debatia com as testemunhas de Jeová no domingo pela manhã. De minha casa, as vezes, observava as testemunhas entrando numa fria no portão da cada dele. No grupo de jovens, no sábado à noite, comovia todos com apresentações bem elaboradas.
          Um dia Paulo fez as contas:
         - Se eu ler x livros por semana, durante x anos, vou ler x livros durante a vida. É muito pouco, por isso, não posso perder tempo com Paulo Coelho.
      Durante a faculdade de Enfermagem, ao menos nos três primeiros anos, continuei lendo ao menos três livros de literatura por mês, e ainda dava conta de ler tudo que me pediam, antes dos prazos. Depois fui me concentrando nos livros de saúde coletiva. Faz tempo que não leio literatura.
        Estes dias foi tomado por um violento desejo de ler Androides sonham com ovelhas elétricas? (na biblioteca de Curitiba, esse livro nunca estava disponível). Gostei. Sempre tive muito preconceito com literatura norte americana (com exceções como Edgar Lawrence "E. L." Doctorow, de quem li várias vezes: Ragtime, Billy Bathgate e O Livro de Daniel). Aprendi com Paulo que Sidney Sheldon, para citar um autor da moda na época, e seus derivados, era uma literatura de segunda ou terceira linha, que a literatura de verdade, aquela de nível, estava na América Latina: Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez e no Brasil, é claro.
         Mas ler o livro de Philip K. Dick me deu imensa alegria, apesar da história ser angustiante e perturbadora. Ele morreu muito jovem e possivelmente com pouca grana. Nos anos oitenta ele recursou 400 mil para novelizar um filme de hollywood (baseado em sua própria obra) e relançou a obra original, ganhando apenas 12 mil. Para justificar disse, não exatamente com essas palavras:
             - Não estava precisando de dinheiro, já havia pago todas as prestações de meu aparelho de som.
           Depois deste livro, lembrei-me que tenho uma dívida com os Russos, por isso comecei a ler Guerra e Paz de Liev Tolstói. Lá pelas tantas, na página 37 da versão digital (que é péssima – não leiam), Pedro, um entre centenas de personagens, disse:
              [...] em conclusão, dizia de si para consigo: «Todas estas palavras de honra são coisas convencionais, sem qualquer fundamento sério, sobretudo quando uma pessoa pensa que amanhã pode estar morta ou em circunstâncias tais que as palavras de honra e desonra não tenham o mais pequeno significado.» Pedro costumava.
            Por causa disso, lembrei que a literatura ou a imaginação, antecipa-se à ciência, a tecnologia, a filosofia, a sociologia. Há diversos argumentos que tentam provam isso, e outros tantos estudos (que o povo da ciência não vai aceitar, mas não me importo com a verdade, como diz Maturana). Essa falta de perspectiva no amanhã, que Pedro, personagem de Tolsti, evoca, é justamente um dos argumentos centrais no livro, A corrosão do caráter, de Sennett e também é tratado no livro, A sociedade individualizada, de Bouman. Eles discutem a degeneração social, a degradação das relações sociais na era da globalização, a partir da noção de que não há amanhã, de que tudo é provisório, portanto, não se pode (ou não é viável) manter compromissos por muito tempo.
            Enfim, a literatura antecipou em pelo menos 100 anos essa percepção, e centenas de outras. Parece que o poder da imaginação (precedido ou sucedido de observação da realidade) não fica devendo nada as reflexões cientificas e/ou filosóficas.

 [Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

16 outubro 2015

INÉDITO (VIÁVEL?)

Ernande Valentin do Prado

Para PKD, pela inspiração!

- Você é o careca?
- Você veio resolver a parada?
- Vim...
- Tem que ser agora?
- (...) Tem alguma coisa pra fazer antes?
- Tá vendo o parque?
- Tô...
- Queria ir lá antes... pode ser?
- (...) Por que te chamam de careca, com um cabelão desses?
- Ironia.
- E você sabe o que é ironia?
- Eu estudei! Acha que só porque moro na rua, sou burro?
- (...) Como se meteu nessa merda?
- Porque é uma merda, essa vida! E você?
- (...) Vamos ao parque, então... mas você sabe, depois não vou aliviar seu lado.
- Sei.
- Você nunca foi a um parque?
- Claro que já! Sempre vô. Nunca fui pra brincar, só para trabalhar. Só queria experimentar o carrinho de bate-bate. Só uma vez.
-  Vâmbora...
- Você podia fingir que era meu pai?
- Pô.. tu é folgadaço... espera que vou pegar os ingressos... .
- Comprou quantos?
- bastante...
- Vou lavar a égua...
- (...) Você jantou?
- Quando?
- Hoje?
- Nada!
- Quer comer, depois que gastar todos os ingressos?
- Não é abusar da sorte?
- Também já tive sua idade... mas não vá me sacanear, falô? Já sabe qual o final disso...
- Posso chupar um sorvete?
- Pode.
- (...) Vamos indo... quer comer o que?
- Sei lá! Qualquer coisa.
- Pode escolher.
- Sempre tive vontade comer naquele restaurante, mas nunca me deixaram entrar.
- Então vamos lá, hoje.
- O garçom não vai me deixar entrar.
- Pô, tá me estranhando, não confia em mim, moleque?
- Nem acredito!
- Pode pedir o que quiser...
- Esse moleque é sangue ruim!
- Te perguntei alguma coisa? Serve o que ele pedir, esse é seu trabalho.
- Quero um pratão de arroz com bife e bata frita, bastante batata frita...
- (...) Não precisa comer assim, com tanta pressa... tá com muita fome?
- Huhum. Não quero abusar da sorte. Você tem até que horas?
- Pode comer com calma... Quer uma coca?
- Huhum.
- Como foi dar uma dessas?
- Não sabia que ela era filha do Gordo...
- E precisava furar a menina, não dava só pra levar o celular?
- Ela me bateu! Começaram a rir de mim. Fiquei com vergonha, com medo...
- Foda... e agora?
- Agora, fudeu! Faz o que tem que fazer. Eu tô mesmo cansado (...)
- Quantos anos você tem?
- 12.
- E já tá cansado?
- Na rua, cada ano vale por 10... já sou mais velho que você.
- E sua família...
- O que tem?
- (...) Alguém... (?)
- Pode me fazer um favor?
- Mais um?
- O último. Não deixa minha mãe ficar sabendo (...)
- (...) Se te deixasse ir, o que faria?
- Por que faria isso?
- Acho que não nasci pra essa vida. Tô com a mão tremendo (...)
- O caçador não deveria conversar com a caça (...)
- Você é foda, moleque... vai filosofar numa hora dessas.
- Se você me deixar ir (...) vai se fuder. E vou pra onde, fazer o que?
- você é foda (...)
- Hoje foi o melhor dia da minha vida! Melhor parar enquanto estou ganhando.
- Minha mão não para de tremer.
- A minha também não...

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10

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