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Imagem da internet. |
Ernande Valentin do
Prado
Todos os dias (ou
quase), bem cedo, passo em frente à praça do Bairro Castela Branco (aliás, já
perceberam o horror dos nomes dos bairros de João Pessoa? Castelo Branco,
Médici, Costa e Silva, Geisel – tudo homenagem imposta à população por
ditadores que tinham a sua disposição aparatos legais, tais como:
metralhadoras, morteiros, granadas, espancamentos, sequestros, torturas), mas
essa é outra conversa para outro dia.
Essa praça, neste
bairro que não merece o nome que tem, está sempre limpinha. Vejo moradores
usando a academia da cidade (política pública muito interessante), caminhando,
passeando com as crianças, os animais e também varrendo, catando as folhas
caídas das arvores, juntando, embelezando, consertando equipamentos.
Lembrei disso porque
dia destes, andando por uma praça pública perto de casa com Alice, vi
justamente o contrário. Fiquei pensando que parece fácil fazer um projeto para
construção de uma praça pública, desde os detalhes arquitetônicos até o batismo
do lugar por um político que quer deixar sua marca na história.
Uma praça é local
privilegiado em que a população pode desfrutar de momentos de lazer,
entretenimento, confraternizar-se, socializar-se com os cidadãos da cidade,
desenvolver coisas juntos. Também pode ser um local para passear com os animais
de estimação, fazer exercícios, ver as folhas das arvores cair.
A praça do lado de casa
não é a melhor nem a pior que já vi. A grama está seca e esturricada, os
brinquedos quebrados, a infraestrutura do balanço afundando, provavelmente pelo
serviço mal feito (e talvez superfaturado da engenharia), como em outros pontos
da cidade. A limpeza. Bem, a limpeza, melhor nem comentar, apesar de desconfiar
que na planilha de custo alguém esteja recebendo para deixa-la limpa e, talvez
até conste como limpa, nesta mesma planilha fictícia, mas bem real no
recebimento dos custos financeiros.
Quando se observa o
valor da construção e, sobretudo da reforma de uma praça, fica-se de boca
aberta com o tanto de zeros uns atrás dos outros. Valores absurdos para o que
realmente é feito. Mas isso já é tão corriqueiro que ninguém mais consegue
prestar atenção. Outra coisa é que fazer uma praça pode ser fácil, mas dar
manutenção parece ser algo que as administrações não conseguem fazer ou não
querem (ao menos na prática).
Mas essa falta de
planejamento (ou estratégia de gestão), não é exclusividade dos executivos
municipais, que nem sempre têm uma pessoa capacitado para planejar. Um exemplo
são os equipamentos de computadores nas universidades federais: compram, não
conseguem dar manutenção e ficam parados, algumas vezes até sem nunca ter sido
usados. Já repararam quantas impressoras têm em cada repartição? São duas, três
por salas, todas paradas, porque compram as impressoras e depois não conseguem
comprar as tintas para elas e vão comprando novas impressoras que logo estarão
sem tinta também. Incompetência ou má fé?
Mas essa é outra
história, não é mesmo ou talvez seja a mesma história. Sei lá.
As praças, assim como
as impressoras, ficam ao leu, sem limpeza, sem manutenção e jogadas, como se
joga lixo às margens da única fonte de água potável. A população não se
apropria, porque em nossa cultura política as coisas do estado são dos
administradores, dos gerentes, dos secretários, dos prefeitos, dos vereadores,
que fazem e desfazem de tudo como se fossem mesmo os proprietários. Nada é
realmente do povo, a não ser nos discursos, na hora de responsabilizar por algo
que não deu certo, sobretudo. É assim que somos ensinados na conduta diária.
Poderia ser diferente, mas não é, talvez porque é muito perigoso estimular,
deixar o povo se apropriar das praças, delas tomar conta, limpar, manter,
decidir os destinos, a começar pelos nomes, que são sempre tão alheiros a
população real. Vai ver, na cabeça das autoridades, pensam que o povo começaria
se responsabilizando pelas praças e acabariam se dando conta que precisam se
apropriar, sentir-se dono dos destinos das escolas, das Unidades de Saúde e
isso seria muito ruim para os donos do poder, que parecem se sentir como o
boiadeiro que toca a boiada para onde deseja que ela vá.
Hoje o executivo, com
suas regras e normas, taxas e licenças, força militar que nos obriga a fazer
até o que não queremos e nos prejudica, os legislativos, municipais, estaduais
e nacional, com suas leis justa ou absurdas, o judiciário, com suas polícias,
com seus privilégios, a jurisprudência que beneficia a si mesmos e quem tem
mais dinheiro no banco, definitivamente são um obstáculo as iniciativas de
autonomia popular, de autogestão. Autonomia não é coisa dada, não se presenteia
com autonomia, é um exercício cotidiano, um acertar, errar, voltar atrás,
refletir, fazer de novo. Como exercitar a autonomia com um estado
centralizador, que impede coíbe iniciativas coletivas e individuais,
administrado como se fosse uma fazenda com proprietário, capataz e boiadeiros
que tangem gente e gado como se fossem uma coisa só?
Assim como construir
uma praça é fácil, construir uma Unidade de Saúde da Família (USF) também é.
Junta-se meia dúzia de pessoas interessadas no assunto, que pensam saber o que
é melhor para o povo (e para os aliados políticos da região); contrata-se uma
empreiteira (com ou sem licitação, mas sempre de um aliado), que constrói o
prédio, sempre fora do prazo, com o dobro do valor inicialmente planejado (e
ninguém vai preso por isso). A secretaria de saúde, com o projeto na mão,
compra os equipamentos (de empresas amigas), contrata os servidores (com ou sem
concurso e, quase sempre sem concurso para aumentar os números de cabos
eleitorais), abastece com os insumos (com ou sem licitação). Um dia abre as
portas e começam a atender a população como dá (com ou sem capacitação). E o
mato vai crescendo, o lixo vai se acumulando sem que ninguém queira olhar,
limpar, as paredes aparecendo rachaduras, mofo, goteiras, equipamentos que
nunca funcionaram vão se acumulando nas salas, os boiadeiros repetindo: “isso
não é comigo”.
A população não
consegue se apropriar de nada, nem do prédio nem do que se faz dentro dele.
Incompetência popular ou muita competência do boiadeiro, do capataz e do dono
da boiada? Há divergências, mas creio que o boiadeiro, com seu laço firme e
braço forte, exerce com maestria seu oficio em nome do dono da boiada.
Deixa eu dar exemplo de
unidade de saúde que já vi funcionando por aqui. Durante o dia trabalha-se das
sete às 16 horas com uma equipe da Estratégia Saúde da Família. Atende a
população da área adstrita, que recebe visitas domiciliares dos Agentes
Comunitários de Saúde (ACS). A equipe faz vacinas, curativos, aplicas injeções,
faz consultas de enfermagem, médicas, odontológicas, desenvolve os programas de
pré-natal, de prevenção de câncer de colo de útero e mama, de hipertensão e
diabetes. Às 16 horas fecha e, quem está no prédio é posto para fora, mesmo com
chuva. Até às 17 horas acumula-se gente na porta. Quando o segurança abre a
porta novamente, entra todo mundo de uma vez. Senta nas cadeiras e esperam até
que chegue a primeira funcionária (que pode ser rápido ou não). Ao chegar ela
distribuiu 10 fichas para atendimento médico e 10 para atendimento da dentista.
Só isso. Não tem outros serviços. A sala de vacina não abre, a sala de curativo
também não, os inevitáveis exames e encaminhamentos solicitados não podem ser
agendados. Programas de prevenção não são feitos, a moça da recepção diz que
não faz porquê das 17 às 20 horas, horário de funcionamento, não é ESF, mas
Unidade Básica de Saúde (UBS) e em UBS não se faz essas coisas.
Para justificar a
distribuição de apenas 10 fichas para o atendimento médico (bem ou mal feito),
mas o único serviço disponibilizado, fora o odontológico, justifica-se pelo
tempo: são apenas 3 horas de atendimento, só dá para atender 10 pessoas. Mas o
fato é que o médico, que só atende 10 pessoas (e ainda diz que já tá fazendo
mais do que o médico do dia), chega às 18 horas e sai às 19:15 (quase sempre),
termina o atendimento e vai embora, deixando a USF ou a UBS, como diz a
recepcionista, que também diz ser enfermeira, às moscas.
O povo, sem se
apropriar do serviço, esperneia, reclama, briga, xinga, grita, mas tudo
continua como está, porque quem manda no serviço são os profissionais que lá
estão e só fazem isso.
Poderia ser diferente?
Poderia, mas não é, porque nossa cultura política é essa, o que é público tem
dono, no caso da USF/UBS, os donos decidiram que só vão fazer isso que estão
fazendo, pelo pouco que estão ganhando e já acham muito, se comparam com outros
e dizem que já fazem demais. E, por mais que a população esperneie, não
conseguem fugir disso. Bem ou mal (e é muito mal, diga-se de passagem), quase sempre
é o único recurso que ainda lhes sobra, poderia ser pior se não tivesse nem
isso.
Os ditos conselhos de
saúde, que deveriam agregar os usuários, os movimentos sociais para os
exercícios do controle social, foram aparelhados durante tanto tempo pela direita
e pela esquerda no exercício de seus mandatos, que se desmoralizaram
completamente. A população, com razão, não consegue ver legitimidade neles. As
poucas iniciativas para conseguir algo no SUS, hoje, são quase sempre
individuais, como no caso da judicialização, que acaba beneficiando quem já tem
privilégios, quase sempre.
Assim como no caso da
praça, que fica abandonada, sem que o povo se aproprie e tome conta dela, está
o SUS. Vez ou outra a gente vê praças limpas, aonde o povo se apropriou e tomou
conta de fato, mas são tão poucas e as experiências são tão efêmeras que acabam
sendo esquecidas, viram miragens, lendas.
Conheço algumas lendas,
talvez eu fale delas em outro momento.
[Ernande Valentin do
Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]