Mostrando postagens com marcador SUS. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador SUS. Mostrar todas as postagens

08 fevereiro 2019

A CESAR O QUE É DE CESAR, A MORO O QUE É DE MORO


Ernande Valentin do Prado




Vamos ser justos, esse governo aí nunca prometeu acabar com a violência. Tá oquei? Nem ao menos diminuir a violência ele prometeu. Muito pelo contrário, durante toda campanha ele deixou claro que não sabia como lidar com essa questão.
Não acredita, acha que estou inventando fake News?
Então me explica o que é essa fixação em armar a população?
Para mim e até para um Tenente coronel da Polícia Militar, que ouvi no Rádio dia desses, a mensagem é óbvia: “não sabemos enfrentar o problema da violência e já que a polícia não é eficiente, então cada um que se vire como puder”.
Para quem sabe ler, um pingo é letra e o que esse governo fez até agora, não é apenas pingo e nem tão pouco apenas uma letra, é um discurso completo.
Um discurso que reafirma total incompetência do estado em lidar com a questão da violência. Até aí nada demais, parece que nenhum governo, até agora, soube ou teve disposição em encarar de fato os problemas gerados pela violência ou os problemas que estão nas causas da violência.
O feito extraordinário foi convencer 1/3 da população, mais ou menos o número de eleitores desta facção, a acreditar que não tem jeito, que a solução é cada um por si e que um candidato sem proposta era o menos pior.
Outro feito extraordinário foi convencer o eleitor, sobretudo o evangélico, que não existe contradição entre o discurso do candidato e as leis “divinas” da religião cristã. Veja, desde que Moises subiu ao Monti Sinai, está valendo os dez mandamentos e um deles é: “não matarás”.  Tenho a impressão que esse mandamento não pegou, mesmo na época em que foi editada, basta ver o número de matanças que são descritas na bíblia.
Ao que parece o mandamento é entendido assim: não matarás quem for do nosso time. E aí é fácil. Tirando os psicopatas e os muito desequilibrados, quase ninguém mata os seus.
Tanto é assim que o número de apoiadores desta e outra propostas bizarras deste governo, parecem ser maioria entre os evangélicos. Sempre vai ter quem diz que a arma é para proteção, não para matar.
Será?
Armas de fogo são para matar, bicicletas para pedalar, pão para comer, parece que é assim que é, o resto, por mais elaborado que seja são somente desculpas esfarrapadas.
Agora, e por um tempo, a coisa vai ser assim: cada um com sua arma tentando se proteger do outro, até que esse governo mude e entre outro que assuma a responsabilidade pela segurança pública. Uma proposta de governo, para área da segurança, passa por desarmar bandidos, impedir o tráfego de armas, distribuir melhor a renda produzida por todas e todos, entre outras coisas fundamentais. Outra coisa importante é punir os assassinos. Reportagem do Jornal O Globo de 2014, mostra que menos de 5% dos assassinatos no Brasil são descobertos. Talvez seja por isso que esse governo aí não acredita na eficiência da polícia.
Acha que essa conversa é mimimi?
Você não está sozinho, o presidente também acha. A diferença entre você e ele é que o presidente tem o poder de fazer sua fé se transformar em políticas públicas.
A Agência Brasil (2018) diz: “Tem uma estimativa de que o Estatuto do Desarmamento, apesar de nunca ter sido implementado na sua completude, ainda assim conseguiu ser responsável por uma espécie de freio, de contenção do crescimento dos homicídios”. Segundo o pesquisador, sem essa legislação, as taxas de homicídios seriam 12% superiores às atuais. Isso é o que dizem os números. O resto, apesar do discurso, parece ser fake News ou fé cega em bezerro de ouro.
Acha que essa pesquisa é mimimi?
O Moro também acha.

Referência:

MENEZES, César; LEUTZ, Menezes. Maioria dos crimes no Brasil não chega a ser solucionada pela polícia. Disponível em:< https://glo.bo/1yi1edy> Acessado em: 15 jan. 2019.

AGENCIA BRASIL. Armas de fogo são causa de morte em 71% dos homicídios no Brasil. Disponível em: Ac: 15 jan. 2019.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

11 janeiro 2019

A DONA DE CASA SABE, GOVERNOS E COMENTARISTAS POLÍTICOS NÃO

Panelas. Imagem capturada na internet, 2019.
Ernande Valentin do Prado
Você ouviu o Presidente dizer, em seu discurso de posse, que não vai gastar mais do que arrecada?
Sabe o que isso significa para o Usuário do SUS, ao ir a um Hospital, uma Unidade de Saúde ou quando precisar de uma medicação da Farmácia Popular, por exemplo?
A maioria dos comentaristas de política e de economia, da grande mídia tradicional, festejaram a fala do presidente e inclusive recorreram a uma imagem que qualquer pessoa pode entender e é tão óbvio que fica difícil discordar, sem parecer ser do contra.
Segundo eles, até uma Dona de casa sabe que não se deve gastar mais do que  se ganha. O que parece lógico e inquestionável, porém só quando a dona de casa faz. Porque a dona de casa tem uma sabedoria, uma racionalidade e um compromisso que o estado não tem, ou seja, ela sabe quais são as prioridades para a família. Sabe em que deve economizar, que gastos não podem deixar de fazer.
Tanto é assim que ao ir ao supermercado, a dona de casa corta logo o Iogurte, as bolachas e chocolates.
Será que o governo, este ou qualquer outro que já passou por Brasília tem a mesma lógica da dona de casa ao pensar os gastos que vai cortar e os que vai manter?
Até hoje nenhum governo parece ter tido o mesmo nível de sabedoria e racionalidade de uma dona de casa, por isso a fala do presidente é tão perigosa, embora nem todos percebam o perigo e o que isso significa para o trabalhador.
Será que o novo governo, será que o estado brasileiro irá cortar os gastos supérfluos ou os gastos com educação, saúde e infraestrutura?
Só para ilustrar o que estamos dizendo, vamos lembrar que no fim do ano o estado, através de seus poderes, concedeu a si mesmo aumentos abusivos de salários, aos empresários perdoou dívidas e renovou isenções fiscais no mínimo questionáveis. E já estão falando que o judiciário irá voltar com o auxílio moradia para juízes, este mesmo que nem deixou de existir. E nem estou mencionando os cargos com super salários para filhos, para esposas de ministros e outros possíveis apoiadores estratégicos.
Esse nível de irracionalidade e falta de compromisso com a população é uma regra quase imutável para os governantes, então como esperar algo diferente deste governo, que até agora não demonstrou ser diferente de nenhum outro quando se refere a beneficiar a si mesmos e aos seus aliados?
Uma coisa não dá para dizer que é mentira, mesmo vindo de uma governo que tem como modus operandi o fake News, não tem dinheiro para todos os gastos, os justificáveis e os que bancam mordomias imorais.
O que podemos e devemos perguntar é, vai cortar as viagens de jatinho da FAB para os ministros, vai cortar o décimo quarto e décimo quinto salário dos deputados, vai cortar a isenção fiscal para os planos de saúde, que são para poucos ou vai cortar os recursos do Sistema Único de Saúde, que são para todos?
Nós que defendemos o Sistema Único de Saúde com Universalidade e Integralidade, ficamos pessimistas quando ouvimos esse tipo de discurso dos governantes, ainda mais quando analistas políticos que vivem de costas para a população estão aplaudindo.
É provável que não serão os juízes, os ministros, deputados e senadores, que irão perceber o que significa não gastar mais do que se arrecada. Quem também não deverá perceber são os comentaristas políticos da grande mídia e nem os operadores de mídias alternativas, pagos com dinheiro público para falar bem de qualquer coisa e tentar fazer mentiras virar verdades ululantes.  

Já a Dona de Casa, exaltada na fala de jornalistas ignorantes e sem compromisso com a população, será a primeira a perceber que não gastar mais do que se arrecada significa precarizar ainda mais  os serviços públicos de saúde, de educação, limpeza pública e muitos outros. Só para começar.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

24 março 2017

CADA UM POR SI, DEUS CONTRA TODOS

Imagem capturada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Infelizmente essa história não é mera ficção.

No domingo Dona Sônia acordou um pouco mais tarde do que o hábito. Chegou um pouco atrasa para missa das sete e ouviu em pé o sermão do Padre João, que falou sobre as provações pelas quais passou Jô: ele nos ensina, disse o Padre, que o sofrimento faz parte da vida, mas também que Deus está no controle e que nos abençoará abundantemente no tempo dele.
Todos têm sua vez e sua hora, pensou Dona Sônia enquanto caminhava pela rua sem calçamento do bairro, junto com outras moradoras.
- O que aconteceu com seu olho?
Questionou Dona Margarete.
- Nada, por que?
Disse rindo Dona Sônia, mas instintivamente levou a mão ao olho.
- Não tá sentindo nada? Insistiu dona Margarete.
- Não!
Respondeu, já ficando preocupada com a forma como a vizinha lhe olhava.
Imediatamente Dona Sônia, talvez despertada pela pergunta da mulher que caminhava ao seu lado, começou a sentir uma leve coceira no olho. Quando chegou em casa correu ao espelho. Estava lá o derrame. Tinha tanto sangue que nem entendia como ainda estava enxergando. De imediato entendeu a insistência de Dona Margarete.
Assustada recorreu a um conhecido que trabalhava no hospital de traumas. Não gostava de pedir esse tipo de favor, mas era o jeito, não iria esperar até o dia seguinte para ir à Unidade de Saúde do bairro.
O conhecido conseguiu que ela fosse atendida como prioridade. Mesmo assim perdeu toda tarde de domingo no pronto socorro. Sabia, de ouvir, que muitas pessoas passavam dia e noite aguardando e não eram atendidas de jeito nenhum. No programa da tarde, da TV, viu o caso de um senhor que morreu sentado, enquanto aguardava ser atendido, e o pessoal do hospital só viu um dia depois. Felizmente, mesmo tendo perdido mais tempo do que esperava, conversou com um médico residente.
Tão novinho, será que sabe alguma coisa? Pensou Dona Sônia:
- Por que a senhora não procurou atendimento antes, no seu bairro?
Perguntou o menino apontando uma luzinha em seu olho.
- Começou isso hoje, doutor. De manhã, quando sai para ir à missa não tinha nada. Quando voltei, já tava assim. E hoje a Unidade de Saúde não abre, é domingo, o senhor sabe.
O médico, dizendo que não poderia fazer nada ali, encaminhou Dona Sônia para central de regulação do município, que só abria na segunda-feira pela manhã. Antes ele explicou detalhadamente: a hiposfagma, é caracterizado pelo rompimento de minúsculos vasos sanguíneos localizados na conjuntiva ocular, causando uma mancha vermelha de sangue, como essa no seu olho, Dona Sônia. A conjuntiva é uma fina película transparente que recobre a parte branca dos olhos, chamada de esclera. As causas do derrame ocular podem ter origem em processos irritativos, alérgicos, traumáticos ou infecciosos e até por picos de pressão arterial e alterações da coagulação sanguínea. Entendeu dona Sônia?
- Entendi.
Respondeu a mulher, imediatamente.
Dona Sônia, de toda explicação, entendeu que o derrame podia ser por causa da pressão alta. Mas estou tomando direitinho os remédios que a médica passou, pensou ela e instintivamente levou a mão à bolsa, onde guardava os medicamentos.
Na saída da emergência, por via das dúvidas, tomou mais um comprimido de captopril.
Se Deus quiser, vai melhorar. Pensou ela. 
Na segunda-feira Dona Sônia procurou a secretaria de saúde, que não dispunha de um oftalmologista em menos de 30 dias e a encaminhou para Unidade de Saúde da Família.
- Mas vá amanhã, que essa hora já não deve ter mais fichas.
Disse a moço da secretaria sem desviar o olhar da tela do computador. Nem viu o olho de Dona Sônia, que a essa altura parecia mais uma lua de sangue, do que um olho.
Na terça-feira Dona Sônia foi até a Unidade de saúde. No balcão a recepcionista, olhando a tela do computador, disse:
- Hoje só atendemos gestantes, nem adianta esperar.
Meus Deus, o que vai ser de meu olho? Pensou ela fazendo o sinal da cruz.
- Volte amanhã, quem sabe consegue.
Humildemente Dona Sônia foi embora.
- Tá bom, minha fia, eu volto amanhã.
Caminhando pensava: Jesus foi pregado na cruz, sangrou, foi humilhado, sofreu. Ter que esperar não é nada, perto do que ele passou. 
No dia seguinte, quarta-feira, voltou para ver a médica, mas nem chegou ao balcão, a auxiliar de limpeza, sem desviar atenção do chão que varria,  a dispensou do portão, dizendo que a médica só atenderia hipertensos e diabéticos.
- Vocês vêm aqui todo dia e não sabem dos programas? Precisam se organizar minha gente, não podem ficar vindo aqui no dia errado, atrapalha o fluxo de atendimento, que é bem organizadinho, sim senhora.
- Mas eu tenho pressão alta, disse Dona Sônia.
- Agendou?
- Não.
- Pois é. Se tem que pegar fila: reclama. Se é agendado: reclama.
Dona Sônia não estava reclamando, mas não disse nada. E nem a mulher queria ouvir, pois já foi logo virando as costas e continuou varrendo.
Dona Sônia não queria causar transtorno, por isso foi para casa. Voltou na quinta-feira bem cedo, mas era dia de “visita domiciliar” e só estava a recepcionista na unidade.
Engraçado, aqui não tem ninguém hoje, será que até o segurança e a faxineira vão para as visitas. Pensou Dona Sônia
Na saída encontrou uma conhecida, que ia passando.
- Que olho é esse, mulher?
- Tá assim desde domingo.
- E o médico já viu?
- Nunca que consigo acertar o dia certo de ser atendida aqui.
- Só Deus mesmo pra fazer essa gente trabalhar.
A conhecida pegou dona Sônia pela mão e voltou com ela para dentro da unidade. Quando entrou empurrando as cadeiras vazias, a recepcionista parou de olhar para tv e levantou-se assustada.
- Oh minha filha!
Disse a mulher batendo no balcão:
- Que raparigagem é essa aqui? Você viu o olho dessa mulher? Tem coragem de mandar pra casa uma mulher com o olho desse jeito?
Disse a conhecida, com os braços cruzados e batendo o pé no chão.
- Já expliquei para ela que a médica não tá hoje.
- E aonde tá a desgraça dessa mulher?
- Tá fazendo visita domiciliar...
- Então é só sentar e esperar, que deve estar por perto, que visita é na comunidade, não é filhinha?
- Mas ela vai embora de lá mesmo, nem passa aqui na quinta-feira.
- Ah é, então a gente vai pra secretaria de saúde, que desse jeito não vai ficar. Tem que ter um médico para ver esse olho. E agarrou a mão de Dona Sônia e foi puxando.
- Vem cá.
Disse a recepcionista, pegando o telefone.
- Ela não me disse que o olho tava assim. Espera um pouquinho, vou ligar pra médica, quem sabe ela tá por perto e vem.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]



04 novembro 2016

TOCA BOIADA

Imagem da internet.
Ernande Valentin do Prado

Todos os dias (ou quase), bem cedo, passo em frente à praça do Bairro Castela Branco (aliás, já perceberam o horror dos nomes dos bairros de João Pessoa? Castelo Branco, Médici, Costa e Silva, Geisel – tudo homenagem imposta à população por ditadores que tinham a sua disposição aparatos legais, tais como: metralhadoras, morteiros, granadas, espancamentos, sequestros, torturas), mas essa é outra conversa para outro dia.
Essa praça, neste bairro que não merece o nome que tem, está sempre limpinha. Vejo moradores usando a academia da cidade (política pública muito interessante), caminhando, passeando com as crianças, os animais e também varrendo, catando as folhas caídas das arvores, juntando, embelezando, consertando equipamentos.
Lembrei disso porque dia destes, andando por uma praça pública perto de casa com Alice, vi justamente o contrário. Fiquei pensando que parece fácil fazer um projeto para construção de uma praça pública, desde os detalhes arquitetônicos até o batismo do lugar por um político que quer deixar sua marca na história.
Uma praça é local privilegiado em que a população pode desfrutar de momentos de lazer, entretenimento, confraternizar-se, socializar-se com os cidadãos da cidade, desenvolver coisas juntos. Também pode ser um local para passear com os animais de estimação, fazer exercícios, ver as folhas das arvores cair.
A praça do lado de casa não é a melhor nem a pior que já vi. A grama está seca e esturricada, os brinquedos quebrados, a infraestrutura do balanço afundando, provavelmente pelo serviço mal feito (e talvez superfaturado da engenharia), como em outros pontos da cidade. A limpeza. Bem, a limpeza, melhor nem comentar, apesar de desconfiar que na planilha de custo alguém esteja recebendo para deixa-la limpa e, talvez até conste como limpa, nesta mesma planilha fictícia, mas bem real no recebimento dos custos financeiros.
Quando se observa o valor da construção e, sobretudo da reforma de uma praça, fica-se de boca aberta com o tanto de zeros uns atrás dos outros. Valores absurdos para o que realmente é feito. Mas isso já é tão corriqueiro que ninguém mais consegue prestar atenção. Outra coisa é que fazer uma praça pode ser fácil, mas dar manutenção parece ser algo que as administrações não conseguem fazer ou não querem (ao menos na prática).
Mas essa falta de planejamento (ou estratégia de gestão), não é exclusividade dos executivos municipais, que nem sempre têm uma pessoa capacitado para planejar. Um exemplo são os equipamentos de computadores nas universidades federais: compram, não conseguem dar manutenção e ficam parados, algumas vezes até sem nunca ter sido usados. Já repararam quantas impressoras têm em cada repartição? São duas, três por salas, todas paradas, porque compram as impressoras e depois não conseguem comprar as tintas para elas e vão comprando novas impressoras que logo estarão sem tinta também. Incompetência ou má fé?
Mas essa é outra história, não é mesmo ou talvez seja a mesma história. Sei lá.
As praças, assim como as impressoras, ficam ao leu, sem limpeza, sem manutenção e jogadas, como se joga lixo às margens da única fonte de água potável. A população não se apropria, porque em nossa cultura política as coisas do estado são dos administradores, dos gerentes, dos secretários, dos prefeitos, dos vereadores, que fazem e desfazem de tudo como se fossem mesmo os proprietários. Nada é realmente do povo, a não ser nos discursos, na hora de responsabilizar por algo que não deu certo, sobretudo. É assim que somos ensinados na conduta diária. Poderia ser diferente, mas não é, talvez porque é muito perigoso estimular, deixar o povo se apropriar das praças, delas tomar conta, limpar, manter, decidir os destinos, a começar pelos nomes, que são sempre tão alheiros a população real. Vai ver, na cabeça das autoridades, pensam que o povo começaria se responsabilizando pelas praças e acabariam se dando conta que precisam se apropriar, sentir-se dono dos destinos das escolas, das Unidades de Saúde e isso seria muito ruim para os donos do poder, que parecem se sentir como o boiadeiro que toca a boiada para onde deseja que ela vá.
Hoje o executivo, com suas regras e normas, taxas e licenças, força militar que nos obriga a fazer até o que não queremos e nos prejudica, os legislativos, municipais, estaduais e nacional, com suas leis justa ou absurdas, o judiciário, com suas polícias, com seus privilégios, a jurisprudência que beneficia a si mesmos e quem tem mais dinheiro no banco, definitivamente são um obstáculo as iniciativas de autonomia popular, de autogestão. Autonomia não é coisa dada, não se presenteia com autonomia, é um exercício cotidiano, um acertar, errar, voltar atrás, refletir, fazer de novo. Como exercitar a autonomia com um estado centralizador, que impede coíbe iniciativas coletivas e individuais, administrado como se fosse uma fazenda com proprietário, capataz e boiadeiros que tangem gente e gado como se fossem uma coisa só?
Assim como construir uma praça é fácil, construir uma Unidade de Saúde da Família (USF) também é. Junta-se meia dúzia de pessoas interessadas no assunto, que pensam saber o que é melhor para o povo (e para os aliados políticos da região); contrata-se uma empreiteira (com ou sem licitação, mas sempre de um aliado), que constrói o prédio, sempre fora do prazo, com o dobro do valor inicialmente planejado (e ninguém vai preso por isso). A secretaria de saúde, com o projeto na mão, compra os equipamentos (de empresas amigas), contrata os servidores (com ou sem concurso e, quase sempre sem concurso para aumentar os números de cabos eleitorais), abastece com os insumos (com ou sem licitação). Um dia abre as portas e começam a atender a população como dá (com ou sem capacitação). E o mato vai crescendo, o lixo vai se acumulando sem que ninguém queira olhar, limpar, as paredes aparecendo rachaduras, mofo, goteiras, equipamentos que nunca funcionaram vão se acumulando nas salas, os boiadeiros repetindo: “isso não é comigo”.
A população não consegue se apropriar de nada, nem do prédio nem do que se faz dentro dele. Incompetência popular ou muita competência do boiadeiro, do capataz e do dono da boiada? Há divergências, mas creio que o boiadeiro, com seu laço firme e braço forte, exerce com maestria seu oficio em nome do dono da boiada.
Deixa eu dar exemplo de unidade de saúde que já vi funcionando por aqui. Durante o dia trabalha-se das sete às 16 horas com uma equipe da Estratégia Saúde da Família. Atende a população da área adstrita, que recebe visitas domiciliares dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). A equipe faz vacinas, curativos, aplicas injeções, faz consultas de enfermagem, médicas, odontológicas, desenvolve os programas de pré-natal, de prevenção de câncer de colo de útero e mama, de hipertensão e diabetes. Às 16 horas fecha e, quem está no prédio é posto para fora, mesmo com chuva. Até às 17 horas acumula-se gente na porta. Quando o segurança abre a porta novamente, entra todo mundo de uma vez. Senta nas cadeiras e esperam até que chegue a primeira funcionária (que pode ser rápido ou não). Ao chegar ela distribuiu 10 fichas para atendimento médico e 10 para atendimento da dentista. Só isso. Não tem outros serviços. A sala de vacina não abre, a sala de curativo também não, os inevitáveis exames e encaminhamentos solicitados não podem ser agendados. Programas de prevenção não são feitos, a moça da recepção diz que não faz porquê das 17 às 20 horas, horário de funcionamento, não é ESF, mas Unidade Básica de Saúde (UBS) e em UBS não se faz essas coisas.
Para justificar a distribuição de apenas 10 fichas para o atendimento médico (bem ou mal feito), mas o único serviço disponibilizado, fora o odontológico, justifica-se pelo tempo: são apenas 3 horas de atendimento, só dá para atender 10 pessoas. Mas o fato é que o médico, que só atende 10 pessoas (e ainda diz que já tá fazendo mais do que o médico do dia), chega às 18 horas e sai às 19:15 (quase sempre), termina o atendimento e vai embora, deixando a USF ou a UBS, como diz a recepcionista, que também diz ser enfermeira, às moscas.
O povo, sem se apropriar do serviço, esperneia, reclama, briga, xinga, grita, mas tudo continua como está, porque quem manda no serviço são os profissionais que lá estão e só fazem isso.
Poderia ser diferente? Poderia, mas não é, porque nossa cultura política é essa, o que é público tem dono, no caso da USF/UBS, os donos decidiram que só vão fazer isso que estão fazendo, pelo pouco que estão ganhando e já acham muito, se comparam com outros e dizem que já fazem demais. E, por mais que a população esperneie, não conseguem fugir disso. Bem ou mal (e é muito mal, diga-se de passagem), quase sempre é o único recurso que ainda lhes sobra, poderia ser pior se não tivesse nem isso.
Os ditos conselhos de saúde, que deveriam agregar os usuários, os movimentos sociais para os exercícios do controle social, foram aparelhados durante tanto tempo pela direita e pela esquerda no exercício de seus mandatos, que se desmoralizaram completamente. A população, com razão, não consegue ver legitimidade neles. As poucas iniciativas para conseguir algo no SUS, hoje, são quase sempre individuais, como no caso da judicialização, que acaba beneficiando quem já tem privilégios, quase sempre.
Assim como no caso da praça, que fica abandonada, sem que o povo se aproprie e tome conta dela, está o SUS. Vez ou outra a gente vê praças limpas, aonde o povo se apropriou e tomou conta de fato, mas são tão poucas e as experiências são tão efêmeras que acabam sendo esquecidas, viram miragens, lendas.
Conheço algumas lendas, talvez eu fale delas em outro momento.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

08 julho 2016

HUMANIZAÇÃO E CLÍNICA AMPLIADA NAS PRÁTICAS EM SAÚDE

Vegetação do Planeta Roxo, segundo Alice. Ernande, 2015.
Ernande Valentin do Prado

Quando se fala em humanização, ao menos uma parte dos profissionais, da gestão e dos usuários, pensam que se está falando exclusivamente em oferecer melhores atendimentos nos serviços, em tratar as pessoas com jeito, com educação. É evidente que humanizar passa necessariamente por dar mais e melhores condições para que as pessoas se sintam acolhidas, bem tratadas e consideradas nos serviços, mas não é só isso e talvez nem principalmente. Pode-se ser barreira de acesso com muita educação, como diz uma amiga querida, e sem ofender ninguém, mas um serviço com barreiras, em que o sujeito não é acolhido, nunca será humanizado.
O tratamento educado, com consideração é o efeito imediato de arranjos que os propicie, que veja no outro a razão de ser dos serviços de saúde. Para conseguir isso é preciso mudanças no modelo de atenção praticado ainda hoje. Por isso, neste texto vamos discutir a humanização e a clínica ampliada nas práticas em saúde como uma mudança de postura, de modo de pensar a gestão e o modelo de atenção no Sistema Único de Saúde (SUS).
Falar em humanização nos serviços é ao mesmo tempo falar em integralidade nos cuidados e na assistência em saúde, que é um princípio do SUS, talvez o mais complexo, pois sinaliza uma imagem do que se espera que o SUS venha a ser, como afirma Mattos (2004). Um sistema de saúde que se guia pela integralidade é necessariamente humanizado. Ao falar de integralidade está-se falando em acolher as pessoas em sua inteireza, com as culturas, histórias, alegrias e tristezas, dores, integrado em sua família, em sua rua e comunidade e sobretudo com capacidades em se recuperar.
Talvez seja difícil imaginar que estamos caminhando para um serviço com essas características, mas a verdade é que, mesmo de forma lenta, o SUS avança na prestação de cuidados cada vez mais complexos e integrais. Isso parece acontecer em pequenos projetos periféricos, como fala Vasconcelos (2010), mas está acontecendo, basta observar a evolução dos serviços oferecidos para comunidade. Há poucos mais de 30 anos o serviço limitava-se a diagnóstico e tratamento de doenças biofisiológicas em hospitais, de forma totalmente centralizada. Esses serviços ainda eram oferecidos apenas para quem tinha carteira assinada, todos os demais tinham que arcar pessoalmente com as despesas ou contar com a boa vontade e/ou a caridade do estado e/ou das igrejas.
Apesar de insuficiente, hoje temos equipes da Estratégia Saúde da Família em praticamente todas as cidades do Brasil e saúde é vista como um direito de todos, não mais como caridade. Ainda não é um serviço integral e totalmente humanizado, mas existem milhares de pessoas, usuários e servidores, trabalhando diariamente para que um dia venha a ser. Outro exemplo destes avanços são as políticas públicas. Além da Própria PNH, que tem sua gênese nas discussões dos anos de 1990, é possível citar as políticas de Práticas Integrativas e complementares, que visa oferecer cuidados mais amplos, menos focados na doença; a de Promoção de Saúde, a de Educação Permanente e a de Educação Popular em saúde, que entre outros objetivos, tem a intencionalidade de promover a democratização dos serviços e pensar as práticas dos serviços de forma dialogada.
No campo das políticas públicas, humanização diz respeito à transformação dos modelos de atenção e de gestão nos serviços, diz Pereira e Barros, em texto publicado no site da Fiocruz. Ao mesmo tempo afirmam que transformar práticas de saúde exige mudanças no processo de construção dos sujeitos dessas práticas. Parece evidente que essa transformação passa necessariamente pelos trabalhadores da saúde e pelos usuários dos serviços, sobretudo ao melhorar e/ou tornar possível e efetivo processos de comunicação entre todas as partes envolvidas. Mas tem que ser uma comunicação que prime pelo diálogo horizontal e transversal e não como comunicado.  A PNH  afirma isso ao dizer que a humanização é um processo que compreende e valoriza os diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde. É importante destacar que uma das preocupações centrais da PNH é sua ênfase em transformar o modelo assistencial e incorporar, entre outras práticas, a clínica ampliada. Para isso é preciso não apenas investir na melhoria da estrutura e dos equipamentos, mas no potencial dos profissionais. É através das pessoas que se pode mudar o modelo assistencial e oferecer serviços realmente humanizados.
Essas mudanças passam pela melhor formação dos trabalhadores, mas principalmente por uma mudança de postura que leve em conta as condições de trabalho e vida dos envolvidos com o SUS. Pessoas tratadas com humanidade tendem a ser mais humanas, ou, como diria o poeta, Gentileza gera gentileza. 
A própria existência da clínica ampliada passa pelo reconhecimento das necessidades humanas de trabalhadores e usuários dos serviços, e pela discussão aprofundada sobre o que é ser um profissional de saúde e pertencer a uma corporação especifica, até para que isso seja ressignificado. Essa discussão, embora conflituosa, é fundamental e tem potencial para melhorar o serviço integralizado como um todo. A própria PNH prevê que trabalhar em equipe é falar em conflito e que este não é necessariamente ruim. Penso que para trabalhar na perspectiva da clínica ampliada e da humanização, é preciso ir além de pensar como equipe, é preciso pensar de forma interdisciplinar e transdisciplinar, vendo no seu colega não alguém hierarquicamente superior ou inferior, com mais ou menos saber do que o seu, mas um outro que sabe diferente e de forma complementar, que pode contribuir com o cuidado.
A construção da visão transdisciplinar é fundamental por diversos motivos, como por exemplo, para melhorar o saber/fazer das profissões da saúde, que se desenvolveram de forma fragmentada e, muitas vezes, sem condições de ver sujeitos em sua inteireza. Em alguns casos, os profissionais nem conseguem ver o problema com um todo, mas apenas partes deles. Neste sentido, pensar a equipe como um corpo e não como corporação, ajuda muito, principalmente porque a clínica ampliada vai além da tradicional. Exige que se pense o sujeito de forma biopsicossocial, tendo em mente o conceito de saúde do SUS, os determinantes sociais do processo saúde/doença/cuidado.
A prática da clínica ampliada parecer ser muito difícil e talvez seja, mas a dificuldade não diz respeito só a equipamentos e custo financeiros, porém a questões relacionais. Essa prática exige uma comunicação transversal, transdisciplinar e interinstitucional, o que é bastante difícil, porém não é impossível caminhar para esse tipo de prática. A PNH diz que, entre outras coisas, é preciso investir na criação de instrumentos de suporte aos profissionais de saúde para que eles possam lidar com as próprias dificuldades; também com a ideia de “neutralidade” e “não-envolvimento” que muitas ainda alimentam no serviço.
Não estamos falando daquela clínica limitada a queixa conduta centrada na doença, mas de uma visão ampla, que tente ao máximo ver o sujeito em suas múltiplas dimensões, não se limitando aos problemas, mas as potencialidades do sujeito.  A PNH diz que a “a Clínica ampliada convida a uma ampliação do objeto de trabalho para que pessoas se responsabilizem por pessoas”. Utópico? Talvez, mas é a utopia uma imagem objetivo, assim como o princípio da integralidade.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Referências

MATTOS, R. A. D. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cadernos de Saúde Pública, v. 20, p. 1411-1416, 2004.
VASCONCELOS, E. M. O significado da educação popular na realidade e na utopia da atenção primária à saúde brasileira. In: MANO, M. A. M. e PRADO, E. V. D. (Ed.). Vivências de educação popular na atenção primária à saúde: a realidade e a utopia. São Carlos-SP: EdUFSCar, 2010.  p.13-18. 
PEREIRA, Eduardo Henrique Passos; BARROS, Pereira Regina Duarte Benevides. Humanização. Disponível em: Acessado em: 09 jan. 2016.
BRASIL. Ministério da saúde. Secretaria de atenção à saúde. Política nacional de Humanização da atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada / Ministério da saúde, secretaria de atenção à saúde, Política nacional de Humanização da atenção e Gestão do SUS. – Brasília: Ministério da saúde, 2009.

06 maio 2016

A CONSTRUÇÃO DA INTEGRALIDADE DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: AVANÇOS E DESAFIOS

Uma árvore com muitos galhos - Ernande (2016)
Ernande Valentin do Prado

A integralidade é um princípio do Sistema Único de Saúde (SUS), assim como a universalidade, a equidade, a participação popular, e outros. Porém parece ser o princípio mais difícil de pôr em prática, de ser compreendido, talvez por ser o mais utópico, isso porque integralidade envolve, entre outras coisas, desejo, necessidade e vontade, como na música, comida[1], do Titãs.
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte...

A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer...
Talvez seja um princípio complexo demais para todos entender em sua plenitude, mas, por suas características, tem o potencial de nos mantem ciente de que o SUS ainda está em construção, que depende da evolução da sociedade, do que nós queremos e podemos construir enquanto nação. Integralidade é uma imagem-objetivo[2], um lugar onde chegar. Para dar uma ideia da importância disso, vou evocar a terra prometida de Moises, ou seja, uma utopia, uma imagem objetivo que foi capaz de manter um povo inteiro vivo caminhando pelo deserto em busca de uma promessa, apesar das imensas dificuldades.
Integralidade no SUS tem um significado polissêmico, multifacetado, dinâmico: alguns pensam que sabe do que está falando ao cita-la, outros têm certeza que está falando apenas de uma parte ou da parte que lhe interessa divulgar.
Embora a discussão seja complexa (e complicada), assim como é complexo falar de saúde no SUS, nos últimos anos houveram grandes avanços a esse respeito, embora algumas vezes pareça que a integralidade esteja mergulhada em sombras. Neste texto, a intenção é falar um pouco do sentido político e organizacional e das práticas intersubjetivas de saúde.

AFINAL

Quando falamos de universalidade no SUS: estamos falando de um sistema para todos, ricos e pobres, negros e branco, nordestinos e sulista; ao falar de equidade: estamos falando de solidariedade que promove igualdade, de oferecer o cuidado apropriado e necessário para cada um, tornando-os um pouco menos desiguais; evocar o controle social: é  debater a participação popular, o controle do SUS pelos cidadãos, dar voz e poder para que quem usa o SUS possa tomar decisões sobre como ele deve funcionar; mas ao falar de integralidade: estamos falando do quê?
Numa abordagem simplista, mas bastante difundida, poder-se-ia dizer que a integralidade no SUS é aquele princípio que diz que o cidadão tem direito a tudo, desde uma orientação sobre higiene bucal até o transplante de um órgão. O que não deixa de estar correto, mas é uma abordagem que esconde ou mostra demais, o que dá no mesmo. Será que é justo esperar do SUS todo tipo de cirurgia, até as estéticas? Há juízes que pensam assim e dão ganho de causa para algumas pessoas que entram na justiça com essa interpretação. Hoje há quem exija na justiça, com base nesta interpretação de integralidade, não apenas cirúrgicas estéticas, mas medicações como Botox, Viagra, recursos tecnológicos de última geração, e a preços exorbitantes, que não têm eficiência comprovada e/ou que têm similares tão eficaz quanto, a um custo menor. Se essa é a integralidade que interessa à sociedade, e não apenas aos que entram na justiça, no que se convencionou chamar de judicialização da saúde, ela precisa debater novas formas de financiar o SUS.
Existe outra abordagem de integralidade que é centrada no aspecto formal, na racionalidade de organização e oferta de serviços. Enfatiza-se as camadas assistenciais: atenção básica, atenção secundária e terciária, concebendo a atenção básica como porta de entrada ou, mais modernamente, como a porta de entrada preferencial ao sistema de saúde. Dão ênfase a racionalidade através dos encaminhamentos de um serviço para o outro, de uma cidade para outra e até entre estados. Não deixa de ser um aspecto válido e coerente com a abordagem cartesiana e flexineriana na saúde. O palco desta integralidade talvez sejam as câmaras de gestão, os pactos de governabilidade e responsabilização sanitária, com suas hierarquias, que no papel, funcionam maravilhosamente bem, mas que na prática fragmenta e despersonaliza o cuidado.   
Pessoas reais precisam de uma integralidade que vá além de aspectos formais, mas sem esquecer destes, pois a desorganização dos serviços o desestabiliza, porém sem parar nele ou exagerar em sua aplicação. A desorganização, tanto quanto a organização inflexível, normatizada exacerbadamente, incoerente, despersonalizada, sem bom senso, são incoerentes com a integralidade enquanto princípio do SUS.
 Existe ainda uma abordagem que é centrada na pessoa, o que representa uma grande evolução do pensar e do fazer em saúde. É a integralidade como uma forma de cuidado, de reconhecer o ser humano, suas dores e delícias, suas necessidades, desejos e vontades e não só as doenças. Essa abordagem exige que o sistema incorpore diversas visões do que se entende por saúde, a científica, a espiritual, os saberes populares e as tradições milenares.
Talvez a integralidade (realmente integral) esteja na junção destas abordagens: política, organizacional, práticas intersubjetivas de saúde, processo de trabalho, enfim, integralidade como forma de ver, entender, praticar e ser. A pessoa real, aquela que precisa de um sistema organizado, hierarquizado, humanizado, não pode ser apenas parte e sim a razão de ser de todo o sistema. Essa pessoa não pode ser limitada por uma integralidade organizativa, nem pela integralidade política e financeira, ela precisa de um sistema que a veja como um todo, como realmente é, submetida as condições reais de vida em família, em comunidade e em uma sociedade cada vez mais opressiva e fragmentada.
Mas será que o SUS está preparado para funcionar com esse nível de compreensão, seja nos aspectos organizacionais ou de preparo profissional? Uma abordagem integral do ser humano exige atendimentos diferenciados para cada pessoa, cada caso, cada comunidade. A maioria dos profissionais que trabalham em APS ainda continuam aprisionados ao modelo individual e fragmentado de atendimento[3], fruto do ensino pautado no relatório flexner, no modelo cartesiano. Essa visão é um problema que nasce na formação: com raras exceções, as escolas formadoras privilegiam em seus currículos aspectos biológicos em detrimento de uma visão integral do processo saúde/doença/cuidado[4]. Ainda hoje, a visão biologicista do processo saúde/doença/cuidado, é prevalente entre os trabalhadores da saúde, apesar do conhecimento sobre os determinantes sociais ser amplo entre a maioria dos profissionais. O SUS modificou os arranjos institucionais do setor, mas não as práticas de saúde[2]. Os conhecimentos parecem ser ignorados na clínica e o que prevalece é a visão de que ter saúde é não ter uma dor, uma ferida localizada inequivocamente em uma parte do corpo.
Há como continuar evoluindo no fazer em saúde no atual estágio do sistema, não há dúvida, mas há limites evidentes para isso dentro deste modelo limitado pela visão flexeneriana do fazer, pensar em saúde. “O trabalho em equipes multiprofissionais na saúde coletiva remete à complexidade e promove experiências que exigem o encontro com as fronteiras disciplinares, com as diferenças e com as vulnerabilidades dos agentes sociais. Essa fragmentação impossibilita ou no mínimo dificulta que a integralidade, enquanto princípio do SUS, seja alcançada. O trabalho em APS é necessariamente inter-e-transdisciplinar[5] e parece coerente que essa visão pautasse o ensino.
Pode até parecer que a integralidade é um sonho distante, mas na verdade há que reconhecer que, embora lentamente e aquém do necessário, há evolução. Se ela parece ser uma “prática” distante do dia a dia no SUS, já há certos consensos importantes, ao menos em nível teórico e político, o que sempre quer dizer alguma evolução na prática. Entre esses sinais de evolução, podem ser citados a própria APS e a ESF, a Promoção de Saúde, a Humanização, as Práticas integrativas, o pacto pela saúde, entre outros.
Consolidar um modelo integral de atenção à saúde da pessoa no SUS, passa necessariamente pela integração destas diferentes visões do que seja integralidade. Passa, também, pela superação das diversas fronteiras de conhecimentos disciplinares fragmentados, característico da APS[6], mas sobretudo pela construção compartilhada de saberes/fazeres, cada dia menos disciplinares e mais inter-e-transdisciplinares, porque o “sujeito não pode ser capturado por uma única disciplina”[4].

Referencias
[1] ANTUNES, Arnaldo; BRITO, Sérgio; FROMER, Marcelo. Comida. Disponível em: Acessado em: 03 abr. 2016
[2] MATTOS, R. A. D. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cadernos de Saúde Pública, v. 20, p. 1411-1416, 2004.
[3] Fonseca MLG, Guimarães MBL, Vasconcelos EM. Sofrimento difuso e transtornos mentais comuns: uma revisão bibliográfica. Rev. APS 2008; 11(3): 285-294.
[4] ABRAHÃO, A. L. Tecnologia: conceito e relações com o trabalho em saúde. In: FONSECA, A. F. (Org.). O processo histórico do trabalho em saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007.  p.117-137. 
[5] SEVERO, S. B.; SEMINOTTI, N. Integralidade e Transdisciplinaridade em equipes multiprofissionais na saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, p. 1685-1698, 2010.
[6] Paim JS, Almeida Filho N. A crise da saúde pública e a utopia da saúde coletiva. Salvador: Casa da Qualidade; 2000.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog