23 maio 2013

Esta estranha raça de profissionais de saúde dedicados aos pobres, oprimidos e marginalizados

Eymard Vasconcelos





Minha mãe passou mal e foi assistida por um cardiologista de confiança de outro médico que já lhe acompanhava. A família gostou muito do seu atendimento, mas se assustou ao ser informada que sua consulta custava 300 dólares. E que sua agenda no consultório estava cheia, não sendo fácil a marcação de nova consulta. 



Comentei o fato a vizinhos e eles manifestaram uma grande admiração por médicos como ele. Começaram a citar nomes de outros médicos que deviam ganhar mais de 25.000 dólares mensais. E passaram a conversar sobre os melhores caminhos profissionais para se obter este sucesso na medicina. Percebi que esta é a situação admirada e invejada pela maioria das pessoas do meio social a que pertenço. Esta percepção mexeu comigo. Senti que eu também tenho lampejos de inveja desta situação. Passaram em mim sentimentos de vergonha de não ter conduzido minha profissão rumo a este ideal. 

De repente, fui tomado por uma reação. Não! Este modo de encarar a medicina não é o meu. E não é de muitos outros profissionais. Subitamente, no meio da conversa com os vizinhos, eu disse: mas há outros caminhos para ser médico. Eu mesmo sou um especialista em medicina de pobre. Eles se espantaram. Para tratar dos pobres é preciso de algum saber especial? Comecei a explicar as difíceis exigências do trabalho em saúde nas condições de pobreza e marginalidade. Mas eles não se interessaram muito e a conversa terminou. Talvez lhes tenha parecido que eu estava apenas racionalizando meu “pouco sucesso profissional”. 

Esta conversa provocou em mim muitos pensamentos que me ajudaram a entender, com mais clareza, o meu longo caminho profissional (sou formado há 37 anos) e o de muitos outros companheiros. Vi que, apesar de ter já empunhado muitas bandeiras de luta (a reforma do ensino médico da Universidade Federal de Minas Gerais (na época em que era estudante) a organização do movimento de médicos residentes de Minas Gerais, a mobilização social contra a ditadura militar, o fortalecimento do movimento popular de saúde, a construção do Sistema Único de Saúde, a consolidação da atenção primária à saúde no Brasil, a educação popular em saúde, a espiritualidade na saúde e a mudança da formação universitária na UFPB), havia um compromisso mais de fundo ligando tudo: a compaixão e indignação com a situação da pobreza, opressão social e marginalidade de grande parte da população. E o encantamento com as formas criativas e solidárias de ter saúde que costumam surgir com o estar junto como médico. 

Sim, a assistência à saúde aos grupos sociais subalternos tem exigências e desafios próprios. Exige saberes especiais. Tem gratificações próprias. E tem uma ampla legião de profissionais dedicados a ela. Mas pouco se conversa sobre isto. 

Há muitos estudos epidemiológicos sobre a situação de saúde destes grupos sociais e sobre as causas de seus problemas. Muitos eventos e debates têm sido realizados sobre o planejamento e o gerenciamento dos serviços públicos que atendem grande parte das pessoas destes grupos sociais. Há publicações bem sofisticadas teoricamente sobre os caminhos da humanização do atendimento público em saúde. 

Em meio a tantas discussões técnicas complexas sobre o sistema público de saúde, talvez estejamos nos afastando de algo fundamental: as raízes desta motivação profunda que mobiliza tantos profissionais para se comprometerem com os pobres, oprimidos e marginalizados, se submetendo a situações de trabalho extremamente difíceis. 

Há muitos profissionais que atendem estes grupos sociais porque não encontraram locais melhores de trabalho. Eles se conformam com este trabalho. Ou ali estão enquanto não conseguem algo mais próximo de seus sonhos. Desdenham seus pacientes e suas comunidades. Alguns, na juventude, até sonharam com uma medicina voltada para os que mais precisam, porém logo deixaram de lado isto, que passaram a chamar de romantismo ingênuo, e caíram na sedução do individualismo consumista e passaram a ridicularizar os que ainda persistem. 

Mas, há uma minoria que está aí por opção de vida. Sofrem com a pobreza dos serviços destinados aos pobres, mas não se afastam. Sabem que para superar esta situação com a participação e protagonismo dos pobres e marginalizados é preciso estar com eles, participando, animando e aprendendo com suas lutas e suas buscas. É uma gente animada que está nos serviços de atenção primária à saúde, hospitais, instituições especializadas, organizações não governamentais, igrejas, movimentos sociais, universidades, nas secretarias de saúde, etc. São tão diversos os caminhos deste engajamento... 

O que leva estes trabalhadores da saúde em direção tão oposta à valorização extrema do individualismo competitivo em busca da fama, da riqueza e dos prazeres imediatos? Por onde passa este estranho gosto que torna este difícil trabalho fonte de realização e entusiasmo? De onde vem a garra para tantos enfrentamentos políticos e profissionais exigidos por esta opção?

Este e outros textos estão sendo debatidos na Lista de Discussão "Dialogando". Se você quer participar destas conversas, entre nesta Lista, mandando um e-mail em branco para:  dialogando_-subscribe@yahoogrupos.com.br   

2 comentários:

  1. Querido Eymard, acabo de escrever um texto para nosso blog, deverá ser postado logo, mas enquanto sinto frio nas pernas, sem coragem de vestir uma calça, li seu texto (e que bom que chegou em nossa rua).
    Tem uma coisa que (acho), quase ninguém sabe a meu respeito: sou invejoso demais. E por isso, após ler seu texto, deu uma vontade danada de falar um pouco desse assunto também.
    Eu (já contei isso várias vezes) era Auxiliar de Enfermagem enquanto estudava Enfermagem na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Trabalhava na ala mais chique do Hospital Universitário desta instituição, onde internavam-se artistas, atletas, políticos e corruptos (vários). Mas, como a instituição era um pronto socorro escola (e todo mundo sabe que os profissionais de saúde aprendem é nos corpos dos pobres – infelizmente poucos aprendem com a vida deles, mas com os corpos acho que reconhecem), às vezes (muitas poucas vezes) internavam-se “pacientes” do SUS na Ala ou trabalhadores com convênio de empresas.
    Para meus colegas isso era sempre um problema, pois achavam que aquelas pessoas, por não estarem “pagando”, não mereciam o tratamento que ali se dava – e nem era tudo isso, era muito mais uma questão de aparencias.
    De minha parte, dizia, estas pessoas merecem um tratamento até melhor, pois já pagaram por tudo antecipadamente, além disso, têm uma vida muito sofrida, com muito mais dificuldades. Nunca convenci ninguém, mas era fácil oferecer-se para cuidar deles.
    Meu ideal profissional sempre foi trabalhar com essa população mais sofrida. Não que ele seja melhor, mas precisam de um pouco do que eu tenho para dar. Além disso, estudei na PUC com bolsa paga com isenção fiscal, então sempre tive claro que deveria devolver de algum modo à população o que dela havia recebido.
    Contei isso em um vídeo de apresentação que fiz para meus alunos

    Acho uma população riquíssima, Eymard, tenho aprendido muito convivendo com eles. Muita vezes não consegui trabalho onde EU queria, com as condições que queria, mas sempre trabalhei com a população que Eu quis e não trocaria isso por nada, nem por um salario que (acho que mereço) e nunca tive.
    Acredito que poucos profissionais na vida receberam, de presente, como agradecimento por uma atendimento (que achei mal mau sucedido), um peixe pescado por um pescador profissional. Ou a visita das “pacientes” para saber da saúde de sua mãe. Uma época minha mãe adoeceu e me senti muito acolhido e cuidado pela comunidade.
    Contei isso no texto – Os caminhos que me trouxeram até aqui.
    Ao ler seu texto, deu vontade contar isso.
    Obrigado.
    Ernande

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  2. Oi Ernande, um participante do Curso, em que estamos discutindo estes textos,disse: somos poucos, mas somos muitos. Apesar de ser uma minoria dos profissionais de saúde que dedicam seu trabalho prioritariamente a este público, é uma minoria que agita e irradia. Neste nosso Curso, apareceram muitas pessoas assim. Cada um com sua história (como você e eu temos as nossas) de chegada a esta perspectiva. Cada um realiza esta vocação de um jeito. Muitas vezes, estes profissionais se sentem isolados e esquisitos. Uma vantagem de nosso movimento da educação popular em saúde é criar esta articulação de sonhadores comprometidos que, muitas vezes, estão desgarrados. Sentir junto dá força.
    Um grande abraço Eymard

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