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24 outubro 2018

O tecido da Educação Popular

Foto: @suldemins


Não é a primeira vez que alguns alunos vem conversar comigo que não entendem como “por em prática a educação popular”, principalmente no “espaço das consultas” não encontram o “espaço da educação popular”. Ainda, dizem que não se encontram, que há uma dificuldade de sair do texto referência e trazer isso para a consulta da pessoa.

Costumo ouvir e perguntar se teve alguma experiência em que isso ficou mais evidente, se tem algo incomodando. Geralmente o incômodo é a própria consulta clínica. O incômodo de estar vendo só uma partezinha da história, estar “engessado” pela anamnese puramente biomédica. Essa “incomodação” é Educação Popular. 

Nos subterrâneo da consulta “estritamente biomédica” e da mesa separando futuro profissional da saúde incomodado e o sujeito está o tecido da Educação Popular. O desconforto do jaleco branco que quando oportunamente em dinâmica da Liga de Educação em Saúde usado pela comunidade faz as mulheres-mães da comunidade serem médicas melhores por olharem nos olhos, examinarem com cuidado e conversarem com calma - coloca muitos acadêmicos em cheque. Tudo teatro da dinâmica mas com verdade, como seria se meu “paciente” usa-se meu jaleco? 

Essa mistura de saberes que não é tão tangível, mas que faz parte do tecido das experiências de estar “desconfortável” e que leva em consideração a pessoa além do seu sinal e sintoma. A experiência inquieta de quem está “traduzindo” essa história para o raciocínio clínico como futuro profissional de saúde de sentimentos mistos é parte do processo pedagógico da educação popular entrelaçando o saber anterior do educando e sujeito como ponto de partida. 

Enxergar e querer fazer uma consulta diferente por estar insatisfeito é o começo da inversão do micropoder do profissional da saúde, a revolução está na “incomodação” que envolve diversos atores – futuros profissionais da saúde, acadêmicos e professores – na construção compartilhada do cuidado. 

A “incomodação” é o ponto de partida. Imaginava-se talvez na ficção distópica de Orwell no livro 1984 que: “No início do século XX, a visão de uma sociedade futura inacreditavelmente rica, ociosa, organizada e eficiente - um mundo antisséptico, cintilantes, de vidro e aço e concreto branquíssimo - fazia parte da consciência de praticamente toda pessoa culta”. Essa sociedade que não aconteceu e que ainda não descambou para o controle totalitário e sádico do livro 1984 também não é o objetivo da educação popular, como disse Brandão (1982): “a Educação Popular não visa a criar sujeitos subalternos educados: sujeitos limpos, polidos, alfabetizados, bebendo água fervida, comendo farinha de soja e utilizando fossas sépticas”. A construção do próximo e a “incomodação” faz parte do pano da Educação Popular. 

Costumo desafiar os profissionais de saúde com a ideia de que clinicamente podemos saber muito sobre a Hipertensão Arterial, por exemplo, fisiopatologia, débito cardíaco, exames, medicações formas de prescrever e as famosas “mudanças do hábito de vida”. Porém, sabemos o que é ter “Pressão Alta”? O que é e como é diariamente tomar a medicação prescrita? O mesmo vale para todas as doenças, sabemos muito sobre elas, mas como é viver com diabetes, por exemplo? Esta é a mágica da comunicação e da beleza da aproximação dos diferentes mundos. Mais profundo do que as doenças em si, são as pessoas. 

A fisiopatologia, a clínica e o cuidado são geralmente muito parecidos, basta um bom livro ou uma boa referência para aprender o melhor manejo e diagnóstico. Porém o que é realmente diferente são as pessoas, a experiência de cada “paciente”. E cada paciente é um universo, percepção, espiritualidade, vivências e amorosidade cruzam essa pessoa. Este é o toque humano que nenhum protocolo pode fazer, reservado apenas a outros seres humanos. 

A Educação Popular permite a identificação do humano em comum a partir dos olhos e permite também a compreensão e amorosidade, reconhecendo os diferentes caminhos que cada um traçou. A partir deste tecido, podemos costurar juntos a construção conjunta do conhecimento. A reorientação do cuidado no serviço de saúde não vem apenas da “incomodação” dos acadêmicos, mas também do “incômodo” das pessoas que o utilizam, dos seus gestores e profissionais da saúde. Essa construção do cuidado por vários atores e mãos é central para “prática da educação popular”. Assim, espero sempre mais “incomodados” e eternos em construção. 

Abraços que pousam,

Mayara Floss

24 novembro 2017

TODOS SURDOS

Macacos. Imagem capturada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Certa vez, numa terra não muito distante, presenciei ação (supostamente) educativa. De tudo que aconteceu, mais fortemente duas coisas ficaram martelando em minha cabeça: 
A enfermeira, vendo que apenas duas mulheres estavam presentes, disse:
- Veja só, duas mulheres, como o povo é interessado.
Uma, das duas mulheres, depois que todos falaram o que queriam falar (meio que sem notar elas por ali), disse:
- Sempre me disseram que não podia dar água para o bebe, até os seis meses, mas eu dava.
Todos os profissionais presentes, inclusive o pessoal do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) e da gestão, os estudantes de enfermagem, de fisioterapia, somando ao menos uns trinta, caíram na risada, como se o que a mulher falou fosse uma piada.
Todos falaram sobre o aleitamento materno e pensaram estar ensinando verdades científicas inquestionáveis e que estas estavam sendo absolvidas, como água por uma esponja. Cada grupo utilizando, com maestria e desenvoltura, suas terminologias e vocábulos próprios.

No mesmo dia, em outra Unidade de Saúde, constatei que os banheiros dos usuários não eram limpados há pelo menos duas semanas, apesar de ter material de limpeza, água e três pessoas contratadas e pagas em dia para fazer isso. Somando a gerente da unidade, eram quatro as pessoas que não deveriam deixar essa situação acontecer.
Uma usuária indignada, neste dia, questionou a gerencia sobre o porquê daquela imundice e ela, abrindo os braços em gesto de: “o que eu posso fazer?”, simplesmente disse, parecendo já saber que os banheiros estavam daquele jeito: “é o povo, minha filha”.
Duas Unidades de saúde distintas, dois procedimentos idênticos: desresponsabilização das obrigações profissionais e culpabilização dos usuários.

No primeiro caso, da reunião em que participaram duas pessoas da comunidade, acompanhei parte do planejamento e estranhei que deliberadamente as mulheres da comunidade não foram convidadas, não ao menos de uma forma mobilizadora. Optaram por restringir o acesso de quem não eram da área, de homens, de mulheres que não fossem gestantes ou que não estivessem amamentando.
Pelo levantamento chegaram ao número de mais ou menos doze pessoas, mesmo assim, durante o período de mobilização optaram por não convidar algumas mulheres (a explicação foi no mínimo estranhíssima). Várias tentativas de mobilização foram boicotadas, como o folder feito pelas estudantes e impedidos de ser distribuídos na comunidade, a indisposição em ir às casas das mulheres, entre outras.
Aconteceu o que se esperava: as mulheres não vieram ou não vieram na quantidade que os profissionais julgavam adequado. Explicações para isso tem várias: choveu na hora do evento, eram poucas mulheres convidadas e poucas sabiam do encontro, nem todas puderam sair de casa na hora que os profissionais desejavam, entre outras hipóteses. Porém a constatação foi única e objetiva, certeira e sem possibilidade de questionamento: o povo não tem interesse na própria saúde.

O encontro em si foi conduzido do emissor para o receptor, de quem sabe para quem não sabe, do profissional para o usuário, sem possibilidade de diálogo. Cada profissional ou grupo de profissionais ocupou seu espaço e falou. No encontro estava uma pesquisadora em Educação em Saúde e outra responsável pelas ações de educação em saúde do distrito sanitário, mesmo com todos esses conhecimentos multiprofissionais: falaram praticamente sozinhas e para si mesmas. Um grupo parecia competir com o outro para ver qual tinha o vocabulário mais incompreensível: lactação, prolactina, alvéolo, ducto lactíferos, glândulas mamárias, progesterona, retenção venosa, diafragma, lordose, escoliose, edema, comer coisas com potássio, sucção, ocitocina, hipófise, entre outras coisas mais cabeludas.
A única coisa realmente interessante dita na reunião foi totalmente ignorada, tratada como piada, ou seja, a fala da mulher da comunidade: “sempre me disseram que não podia dar água para o bebê, até os seis meses, mas eu dava”.
Por que ninguém quis ouvir o que a mulher disse, porque não se problematizou tal afirmação, não discutiu, não procurou entender o que a mulher quis dizer?
A reação dos presentes foi rir, como se aquilo fosse uma piada. Porém, passado o susto inicial, dá para dizer que era sobre isso que Victor Valla falava nos anos de 1990: nós não conseguimos compreender o que a população fala. Arrisco ir mais além: não ouvimos o que o povo fala porque o consideramos inferiores e não é possível dialogar com inferiores. Inferiores devem receber informações, ordem, prescrições. Só se dialoga com iguais, diz Eymard Vasconcelos em um de seus livros.
Essa parece ser uma possível explicação do por que não conversamos com as pessoas, mesmo quando dizemos que vamos fazer uma roda de conversa. O que fazemos é monologar e talvez, se o humor e o tempo permitir, deixar que façam perguntas para gente rir.

Eymard Vasconcelos diz que existe um fosso entre o que a população sabe e o que os profissionais sabem e que esses dois conhecimentos não dialogam. Profissionais de saúde entendem que só o seu saber é verdadeiro e que o saber popular não tem importância, é coisa para ser corrigida, é no máximo piada.
Talvez por isso riram, não ouviram, não se importaram
talvez por isso não se esforçaram, não compreenderam, não problematizaram
talvez por isso nem se lembrem do que a mulher falou.

E a culpabilização?
Não será só para tentar aliviar a consciência, desresponsabilizar-se por suas responsabilidades não cumpridas e talvez dormir tranquilos?

Parece que na cabeça dos profissionais o povo é sempre culpado pelo que lhe acontece: se o banheiro está sujo é porque ele sujou, portanto não precisa limpar, que conviva com banheiro sujo.
O mesmo raciocínio se aplica as eleições: cada povo tem o governo que merece, não é assim que pensa quem acha que votou direito e é obrigado a conviver com as consequências das escolhas erradas, que são sempre do povo?
O fato de ter três profissionais contratados para fazer a limpeza, a gerencia da UBS não se importar com o descaso dos faxineiros, os profissionais não se preocuparem em mobilizar a população, significa que merecem os salários que recebem?
O fato dos profissionais, estudantes, falarem uma língua que só eles compreendem, falarem muito e ouvirem pouco, significa que acham que sabem mais do que os outros?
O fato do povo não estar, aparentemente, interessado nos monólogos dos profissionais sabidos, significa falta de interesse na própria saúde ou falta de interesse no que os profissionais pensam que falam?
Será que na raiz de tudo isso: não convidar, não ouvir, não limpar e culpabilizar, não está o descaso com o outro, já que ele não é igual a mim, portanto menos merecedor?


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

29 julho 2015

Entre chaves e a educação popular



Waterfall of keys (Cascata de chaves) de Peter Whitehead. Fonte: http://www.artbusiness.com/1open/032312.html


 “ (...) Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave? (...)” – Carlos Drummond de Andrade

Acredito que sempre desdobro uma nova parte da Educação Popular, novas respostas trazem novas perguntas, que trazem novas respostas e perguntas - um ciclo de reflexão inesgotável. Quando meia utopia, meio busca criamos a Liga de Educação em Saúde em 2010 estávamos descontentes com a nossa educação médica, com a “ajuda” verticalizada vivenciada nas matérias práticas do curso de medicina. Não consigo deixar de me remeter ao texto Gronnemeyer (1999) quando falo da “ajuda verticalizada”: “A ajuda sobreviveu inocente como sempre, mesmo que há muito tempo tenha mudado suas cores a tenha se transformado em um instrumento perfeito – e elegante – de exercício do poder”. Quando ajudar se tornou imposição e não emponderamento. A autora segue discutindo sobre ideia da ajuda que é incondicional, dada sem olhar para a pessoa que precisa de ajuda, a situação, a probabilidade de sucesso, ou a possibilidade de causar mais danos pela pessoa que oferece a ajuda.  

Descubro (em meio a redescobertas) que o paciente folha em branco (Eymard, 2009) para prescrever meus ensinamentos biológicos (e ser “ajudado”) da universidade não existe, e quero deixar escrito na minha prescrição (ou falado, expressado, cantado, sonhado): “Não tome nenhum medicamento até questionar tudo”. E cruzo novamente pela “Parábola do rio” de (Manchada, 2013) que conta:

Certo dia existia uma pequena vila na beira de um rio. Nesta vila as pessoas eram boas e a vida na vila era boa. Um dia um morador da vila viu uma criança no rio. Ele pulou na água e foi até a criança para salvá-la. Nos próximos dias mais e mais crianças apareceram descendo correnteza abaixo. Com o tempo a vila organizou equipes de resgate para descer o rio e salvar as crianças, lugares para aquecê-las e alimentá-las. Mas parecia que só piorava e tinha muitas crianças descendo rio abaixo e a vila passou a se contentar só com os que eles salvavam e o seu esquema de ajuda. E a vida da vila seguiu assim. Até que um morador ao invés de pular no rio para salvar decidiu subir o rio para descobrir quem (ou o que) que jogava as crianças rio abaixo. Quando outro morador viu ele subindo o rio ele esbravejou: “Onde você vai? Precisamos de todos aqui envolvidos para salvar essas crianças” e o homem respondeu “Vou descobrir o que está jogando elas no rio”. Alguns moradores da vila não gostaram da ideia, falaram que “era muito arriscado”, e eles falaram “com o número de crianças descendo rio abaixo precisamos de mais apoio aqui”.

Esta parábola me faz refletir sobre a medicina, sobre tirar as crianças do rio, ao invés de descobrir o que às coloca no rio. Ainda lembro, que uma das minhas primeiras reflexões ao ver um atendimento na Unidade Básica de Saúde em que o médico discutiu com o paciente sobre os medicamentos “da pressão” que o paciente não estava tomando, a dieta sem sal, a falta de atividade física e concluiu a conversa com “você deve começar a caminhar” – vi o paciente entristecido e um médico preocupado e frustrado. Nos próximos capítulos eu visitei o paciente em sua casa, continuava sem tomar os remédios, sem fazer a dieta e sem praticar o exercício físico. Eu não entendia nada, não compreendia qual era o caminho que estava faltando na comunicação, comecei a ver uma parede quase intransponível entre a medicina e o paciente. E comecei a refletir que não queria uma medicina que não mudava nada ou quase nada, que no final do dia a soma dava zero. Que salvava as crianças do rio mas não descobria a origem. A tendência neste momento da educação médica e da vida de um estudante é se encantar pela tecnicidade, pelas tecnologias duras e se afastar de uma medicina que “não funciona” para a medicina que “funciona” (que sutura, faz cirurgias, enfaixa, e que “cura”). Ou alguns estudantes do primeiro ano do curso de medicina decidem criar uma Liga de Educação em Saúde para ouvir e discutir saúde com os pacientes.

E como volto para a Educação Popular, volto para a minha educação médica pouco reflexiva e meus “refúgios” reflexivos. Navego pela reflexão crítica de Freire (1974) que se traduz bem nas palavras de Brandão (1982): “a Educação Popular não visa a criar sujeitos subalternos educados: sujeitos limpos, polidos, alfabetizados, bebendo água fervida, comendo farinha de soja e utilizando fossas sépticas” (ainda emendaria tomando seu anti-hipertensivo, comento pouco sal, fazendo uma dieta com pouco açúcar e praticando exercícios físicos). Também vejo (em algumas brechas) uma educação em saúde que não quer formar profissionais subalternos educados: sujeitos técnicos, científicos e humanizados. Mas encontro um diálogo entre a educação popular e a educação médica para a conquista de direitos, emponderamento e autonomia - não só das comunidades, mas também dos estudantes e profissionais. A mesma crítica reflexiva e elemento resistência que fez parte da minha educação médica (fora do currículo), é diálogo para empoderamento das comunidades. Mesmo elemento que ajuda a construir um sistema crítico que faz bom uso do controle social. 

Vejo uma discussão que ronda um profissional mais humanizado, que quer um profissional e uma sociedade crítica no caminho de uma maior autonomia, mas encosto novamente nesta parede entre o paciente e o profissional de saúde (paciente, comunidade, profissionais, gestores – a mesma parede). Essa dissonância entre um sistema que quer ser humanizado, crítico, reflexivo e construtivo profissional que quer ser humanizado ter os mesmos valores e  uma comunidade e pacientes que querem viver saúde de uma forma diferente demonstram uma das grandes fendas da educação médica e medicina hoje (Almeida-Filho, 2011): “o maior determinante da baixa qualidade dos serviços oferecidos pelos profissionais do SUS são recursos humanos limitados; porém, essa limitação é qualitativa e não quantitativa”. 

Descubro neste caminho entre várias confusões, teorias e distrações uma porta na a parede. Descobrir a porta, não significa abri-la. Viro o molho de chaves, giro, testo Foucalt, vou para a filosofia, vivo, leio, experiencio. Cedo ou tarde, descubro na Educação Popular uma chave qualitativa que destranca esses dois lados da porta, que abre uma parede de conhecimentos diferentes entre profissionais e comunidade, gestores, cidadãos. Que dá a chance para subir o rio, emponderar, resistir, mudar... dialogar. E como Drummond perguntou, reflito: “Trouxeste a chave?”.

 Voam abraços,
Mayara Floss

Bibliografia

Almeida-Filho N. Higher education and health care in Brazil. Lancet. 2011;377:1898-900.
Brandão CR. Lutar com a palavra: escritos sobre o trabalho do educador. Rio de Janeiro; 1982.
Freire P. Education for critical consciousness. London: Continuum; 1974.
Gronemeyer M. Helping. In: Sachs W, editor. The Development Dictionary: A Guide to Knowledge as Power. 2 ed. New York: Zed Books; 1992. p. 55-73.
Manchada R. The Upstream Doctors: Medical Innovators Track Sickness to Its Source. 38 ed.: TED Conferences; 2013.
Vasconcelos EM. A construção conjunta do Tratamento Necessário. Caderno de Textos - Grupo de Estudos em Educação Popular e Saúde 2009(1):80.

23 janeiro 2015

HISTÓRIAS OUVIDAS (ACONTECIDAS) NOS ÔNIBUS

PARTE IV: DESTERRO
Ernande Valentin do Prado



2013 – novembro.
Linha Dias D’Ávila - Salvador.

Não lembro porque havia ido à Salvador. Na volta entrou uma mulher e o filho adolescente. A mãe sentou-se ao lado de uma conhecida, no banco à minha frente. O menino no banco ao meu lado.
- Nossa, quanto tempo não te vejo, disse a amiga.
- Eu me mudei para minha casa minha vida.
- E tá gostando de lá?
- Eu não tô gostando não. A casa é melhor, tem mais espaço. Tenho banheiro dentro de casa, mas gostava mais daqui.
A mulher fazia referencia ao lugar onde ela entrou no ônibus. Um “bairro” irregular com casas precárias em um encosta.
- Achei que lá fosse bom. O Gustavo tá gostando? Disse a mulher olhando para o menino.
- Tá nada, ele pede para voltar todo dia.
- Eu não tenho mais amigos. Na escola não conheço ninguém, disse o menino.
- A gente não tem um conhecido, não tem um vizinho lá. É um monte de gente que a gente não conhece. Uns escutam som alto e se a gente vai falar, já viu né.
- Aqui eu já tinha meus amigos, já conhecia os professores. Lá não tô gostando. Acrescentou o filho.
- Mas tem pouco tempo que estão lá, logo vão se acostumar.
- Acho que não vou não. Já tem seis meses que a gente se mudou. Dá vontade vender a casa e voltar prá cá.
- Mas não pode vender né?
- Dizem que toma a cada da gente....
As duas mulheres continuara a conversar. Chegou minha vez de descer e não pude continuar ouvindo a conversa. Na semana seguinte fui convidado para uma reunião na Prefeitura para debater a situação das famílias do “Minha casa minha vida”. A pessoa responsável pela ambientação das famílias expos tudo que foi feito, o que ainda seria feito e qual o orçamento. Em resumo, ela tentou convencer os presentes que as famílias do “minha casa, minha vida” estavam muito satisfeitas com suas novas casas, seu novo bairro. Contei à conversa que ouvi no ônibus e aproveitei para falar da minha experiência com os “Condomínios”, mas ante de concluir a fala, fui convidado a me retirar, pois estava atrapalhando o propósito da reunião.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

19 dezembro 2014

HISTÓRIAS OUVIDAS (ACONTECIDAS) NOS ONIBUS





PARTE III: COMPRA UM CAVALO PARA GENTE

Ernande Valentin do Prado


2014 – junho
João Pessoa – PB. Linha 5605 – Mangabeira - Shopping.

Por volta das 18 horas voltava para casa. No trajeto dois meninos entraram pela porta dos fundos. Eu estava sentado próximo (sempre fico na parte traseira do ônibus, pois em João Pessoa os ônibus só abrem uma porta para gente descer). Do meu lado tinha uma mocinha com cara de criança, uns 13 anos talvez, apesar de já ser maior de idade. Muita branca. Sardas no rosto.
Os meninos sentaram ao lado da mocinha e estavam agitados, falando sem parar, contando por onde haviam passado (A linha 5605 é muito longa).
- A mãe de vocês não se importa de vocês andarem a cidade toda não, perguntou a mocinha?
- Nada, ela nem liga, disse um deles.
O outro se apressou em dizer que sua mãe não sabia, como que a defendendo de ser julgada relapsa. O outro garoto percebeu e também disse que sua mãe também não sabia.
- E vocês não vão para escola, não?
- A gente estuda pela manhã.
- Depois saem andando por aí?
- É.
- Vocês não são muito novos para andar sozinho de ônibus?
- Nada, eu já tenho 12 anos.
- Eu tenho 16, disso o outro com cara de zombeteiro.
- Mentiroso, disse a menina.
- Tenho dez e meio, já vou fazer onze.
- E de onde vocês estão vindo?
- A gente foi no centro de Zoonoses.
- Aquele ali perto do supermercado, disse a moça?
- É.
- A gente quer um cavalo...
- E lá tem cavalo?
- Tem. Eles prendem os cavalos soltos e doam para quem quiser.
- É, mas eles não quiseram dar um cavalo pra gente. O homem disse que tem que ser “de maior”.
- E para que vocês querem um cavalo?
Os meninos fizeram cara de: “que tonta”.
- Não sabe para que serve um cavalo?
E antes da moça responder o outro menino responde:
- A gente junta papelão, ferro velho, garrafas de plástico para vender.
- Com um cavalo a gente pode ir mais longe, juntar mais coisas.
- Uma vez a gente quase comprou um cavalo, mas o João queria R$ 300,00 reais e a gente só tinha R$ 220,00.
- E vocês já têm a carroça?
- Já. Só falta o cavalo. Você bem que podia comprar um cavalo pra gente. Disse fazendo cara de pidão o menino mais velho (12 anos).
- Eu! Não tenho dinheiro. Estou indo para meu primeiro dia de emprego hoje. Se tivesse dinheiro comprava um cavalo para mim e não andava mais de ônibus.
A moça, pelo crachá que usava no pescoço estava indo para uma empresa de telemarketing que ficava próxima ao ponto final do ônibus.
- Não precisa de dinheiro. Você vai a zoonoses e pega o cavalo e dá para gente.
- Vocês não acham melhor estudar, mudou de assunto à menina.
- A gente estuda de manhã. Só trabalho de tarde.
- Eu estudo naquela escola ali da entrada.
- Aquela grande?
- É...
- O nosso ponto... desce, desce...
Os meninos desceram correndo e o papo acabou. Da calçada acenaram para a menina e gritaram tchau.
Ela olhou para mim e exclamou:
- Coitadas dessas crianças.
Eu fiquei mudo, sem saber o que dizer. Seguimos nossa viagem, eu para casa ela para seu primeiro dia de trabalho. No ponto final descemos. Dobrei a esquina, ela seguiu em frente.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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