Foto: @suldemins
Não é a primeira vez que alguns alunos vem conversar comigo que não entendem como “por em prática a educação popular”, principalmente no “espaço das consultas” não encontram o “espaço da educação popular”. Ainda, dizem que não se encontram, que há uma dificuldade de sair do texto referência e trazer isso para a consulta da pessoa.
Costumo ouvir e perguntar se teve alguma experiência em que isso ficou mais evidente, se tem algo incomodando. Geralmente o incômodo é a própria consulta clínica. O incômodo de estar vendo só uma partezinha da história, estar “engessado” pela anamnese puramente biomédica. Essa “incomodação” é Educação Popular.
Nos subterrâneo da consulta “estritamente biomédica” e da mesa separando futuro profissional da saúde incomodado e o sujeito está o tecido da Educação Popular. O desconforto do jaleco branco que quando oportunamente em dinâmica da Liga de Educação em Saúde usado pela comunidade faz as mulheres-mães da comunidade serem médicas melhores por olharem nos olhos, examinarem com cuidado e conversarem com calma - coloca muitos acadêmicos em cheque. Tudo teatro da dinâmica mas com verdade, como seria se meu “paciente” usa-se meu jaleco?
Essa mistura de saberes que não é tão tangível, mas que faz parte do tecido das experiências de estar “desconfortável” e que leva em consideração a pessoa além do seu sinal e sintoma. A experiência inquieta de quem está “traduzindo” essa história para o raciocínio clínico como futuro profissional de saúde de sentimentos mistos é parte do processo pedagógico da educação popular entrelaçando o saber anterior do educando e sujeito como ponto de partida.
Enxergar e querer fazer uma consulta diferente por estar insatisfeito é o começo da inversão do micropoder do profissional da saúde, a revolução está na “incomodação” que envolve diversos atores – futuros profissionais da saúde, acadêmicos e professores – na construção compartilhada do cuidado.
A “incomodação” é o ponto de partida. Imaginava-se talvez na ficção distópica de Orwell no livro 1984 que: “No início do século XX, a visão de uma sociedade futura inacreditavelmente rica, ociosa, organizada e eficiente - um mundo antisséptico, cintilantes, de vidro e aço e concreto branquíssimo - fazia parte da consciência de praticamente toda pessoa culta”. Essa sociedade que não aconteceu e que ainda não descambou para o controle totalitário e sádico do livro 1984 também não é o objetivo da educação popular, como disse Brandão (1982): “a Educação Popular não visa a criar sujeitos subalternos educados: sujeitos limpos, polidos, alfabetizados, bebendo água fervida, comendo farinha de soja e utilizando fossas sépticas”. A construção do próximo e a “incomodação” faz parte do pano da Educação Popular.
Costumo desafiar os profissionais de saúde com a ideia de que clinicamente podemos saber muito sobre a Hipertensão Arterial, por exemplo, fisiopatologia, débito cardíaco, exames, medicações formas de prescrever e as famosas “mudanças do hábito de vida”. Porém, sabemos o que é ter “Pressão Alta”? O que é e como é diariamente tomar a medicação prescrita? O mesmo vale para todas as doenças, sabemos muito sobre elas, mas como é viver com diabetes, por exemplo? Esta é a mágica da comunicação e da beleza da aproximação dos diferentes mundos. Mais profundo do que as doenças em si, são as pessoas.
A fisiopatologia, a clínica e o cuidado são geralmente muito parecidos, basta um bom livro ou uma boa referência para aprender o melhor manejo e diagnóstico. Porém o que é realmente diferente são as pessoas, a experiência de cada “paciente”. E cada paciente é um universo, percepção, espiritualidade, vivências e amorosidade cruzam essa pessoa. Este é o toque humano que nenhum protocolo pode fazer, reservado apenas a outros seres humanos.
A Educação Popular permite a identificação do humano em comum a partir dos olhos e permite também a compreensão e amorosidade, reconhecendo os diferentes caminhos que cada um traçou. A partir deste tecido, podemos costurar juntos a construção conjunta do conhecimento. A reorientação do cuidado no serviço de saúde não vem apenas da “incomodação” dos acadêmicos, mas também do “incômodo” das pessoas que o utilizam, dos seus gestores e profissionais da saúde. Essa construção do cuidado por vários atores e mãos é central para “prática da educação popular”. Assim, espero sempre mais “incomodados” e eternos em construção.
Abraços que pousam,
Mayara Floss