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08 junho 2017

A SIMPLICIDADE NA COMPAIXÃO


Imagem adaptadas da internet, 2017.
Eymard Mourão Vasconcelos

O trabalho em saúde está sempre nos colocando a frente de pessoas em sofrimento. Isso é pesado, mas também uma oportunidade. Oportunidade de experimentar profundamente a compaixão.
Viver a experiência da compaixão. De repente, o outro que sofre, na nossa frente, não é mais um coitado. Ou uma pessoa separada de nós. Passamos a percebê-la como parte de nós mesmos. Choramos com ela. Sofremos juntos. E envolvemos em sua ansiedade de busca por saídas. É quebrado nosso temor de perda de espaço e conquistas pessoais pela entrega ao que flui desse encontro, desapegando-se de outras preocupações.
Na compaixão não competimos e não julgamos. Aceitamos e reverenciamos o que vem do encontro, dialogando com o que somos.  E o que passamos a ser, a partir da experiência da compaixão, nos surpreende.
A compaixão unifica a complexidade das relações de cuidado. As várias teorias e demandas profissionais se integram na força da dinâmica emocionada da compaixão. Experimentamos uma simplicidade. O que verdadeiramente importa, naquele momento, fica claro. Outras necessidades e outras perspectivas de compreensão serão depois demandadas a partir do vínculo que começa nessa experiência.
O encontro com quem sofre inicialmente nos comove. Mas também nos encanta, pois encontramos garra de superação, carinho, modos surpreendentes de levar a vida, solidariedade e criatividade. Entramos em contato com a capacidade de transcender presente em pessoas aparentemente tão limitadas. Conhecemos potência presente no ser humano.
Assim, o trabalho em saúde cria fortes oportunidades de uma experiência que pode alastrar para o restante de nossa vida. A experiência do amor. Ele pode ser espaço de treinamento do manter-se no amor mesmo nas dificuldades, que são tão grandes nas instituições de saúde e nos tumultos de nossa mente.  
O amor aprendido com desconhecidos, que se fizeram próximos apenas por nosso trabalho profissional, reverte para a relação com nossos romances, amigos, familiares e companheiros de militância, que muitas vezes são utilitárias e superficiais. Ou marcadas por cobranças e propostas teóricas contraditórias. O amor por quem não temos o dever de amar, nos faz conhecer o amor.
A força da experiência da simplicidade trazida pelo amor, superando a complexidade das relações humanas, cria uma referência fundamental para a reorganização de nosso viver. Aprendemos que o amor é a dinâmica essencial de todo relacionamento que se quer verdadeiro. O resto é secundário.  No relacionamento mais casual ao mais íntimo, no mais antagônico ao mais simpático e no bem presencial ao totalmente virtual, podemos estar inteiros e unificados. Precisamos de estudos críticos, pesquisas científicas, interdisciplinaridade e trabalhos em grupo, mas regidos, antes de tudo, por amor.

Texto elaborado por Eymard Vasconcelos a partir de reflexão de Laurence Freeman, da Comunidade Mundial de Meditação Cristã (fonte: http://www.wccm.org.br/leitura-laurence-freeman-osb/608-perdao-e-compaixao-170604 ), com a finalidade de torná-la mais adequada à sua própria jornada de aprendizagem e aos desafios de seu campo profissional.

[Eymard Mourão Vasconcelos publica no Rua Balsa das 10 às 5tas-feiras]

01 fevereiro 2014

Padre Libanio

O cristo redentor desde a janela do HSVP. Fevereiro 02. 

No dia 30 de janeiro, faleceu o padre João Batista Libânio, meu mestre maior. Foi um dos precursores da Teologia da Libertação. Tive a oportunidade de começar a conviver com ele, aos 19 anos, a partir de um grupo de jovens cristãos em que me inseri. Morreu aos 81 anos, em pleno vigor físico. Pela manhã, nadou, como de costume, e foi fazer uma palestra (estava em Curitiba). No meio da palestra, deu um grito e caiu. Enfarto. Foi uma surpresa para todos. Um dos companheiros daquele antigo grupo de jovens, Faustino Teixeira, cientista da religião, escreveu estas linhas: 

Um dia denso, esse 30 de janeiro de 2014. Relia esses dias o grande Rilke, talvez pressentindo os toques do invisível. Nós diante dessa temporalidade que nos ajuda a entender que a vida é feita de chegadas e de partidas. Estamos mais acostumados às chegadas, mas diante das partidas manifesta-se toda nossa fragilidade. Mas a vida é assim: há os lindos momentos festivos, de êxtase e de vitalidade que encantam e de comunhão que irradia; mas há também a dura constatação de que aquilo que é nosso “flutua e desaparece”. Não há como escapar dessa “fluidez”diante da qual todos prestaremos contas. Apesar de toda dificuldade, creio que temos que aprender também a nos alegrar com as partidas, sobretudo com aquelas que traduzem uma vida de honestidade, de santidade, de beleza e transparência. É assim que vejo esse amigo querido, esse orientador singular, esse santo na exemplaridade: João Batista Libânio. Quero deixar sua presença bem viva junto a mim, sua alegria solar e sua fé contagiante. Esses valores ficam, e vencem a frágil fluidez. Rûmî, dentre meus místicos mais queridos, foi alguém que conseguiu lidar com a morte de forma mais doce e mais serena. E ele me vem agora à lembrança:

“Finalmente partiste para o invisível.

Estranho rumo seguiste para deixar este mundo.
A força de tuas asas rompeu a gaiola,
ganhastes os ares e voastes para o mundo da alma.

Eras o falcão favorito do rei
nas mãos de alguma anciã,
mas ao ouvir o tambor
escapaste para o não-lugar.
Era um rouxinol entre corujas
mas a fragrância das rosas te envolveu
e correste para o jardim (...)

Silêncio.
Liberta-te da dor da fala.
Não durmas, agora que encontraste abrigo
Junto ao amigo querido.”

Quem quiser conhecer mais sobre o Libânio e suas realizações na teologia brasileira, veja a entrevista de Faustino em

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/527835-apoio-e-liberdade-na-construcao-dos-caminhos-entrevista-especial-com-faustino-teixeira-sobre-a-obra-de-padre-libanio

[Eymard Vasconcelos escreve na Rua Balsa das 10 às 5as-feiras]


23 janeiro 2014

O sentido salva [Eymard Mourão Vasconcelos]


O SENTIDO SALVA




"CIDADEZINHA QUALQUER
         Carlos Drummond de
         Andrade

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.

Devagar... as janelas olham.

Êta vida besta, meu Deus."

       * * *

Será mesmo besta, Drummond?
Pode ser, pode não ser.
Besta, se forem esses  atos
rotina falta de opção.

Rica
se os passos
e os olhares
tiverem um sentido
na busca e na história
do homem que vai
da  mulher que olha.
O sentido salva o ato
de sua mediocridade.

Entre o jantar no restaurante francês
e o P.F. no bar da esquina
a diferença maior não são as iguarias
mas o sentido do jantar na vida dos comedores.

Entre a trepada cheia de malabarismos
e o encostar a cabeça no ombro do namorado
a diferença maior não é a intensidade do prazer
mas o sentido do encontro na vida dos amantes.

Jantar refinado
sem encontro
sorrisos formais
gentilezas vazias.
Jantar sem gosto.

Marmitas com ovo, arroz e feijão
comidas com alegria
em comunhão.
Satisfação.
Um monumento na memória.

Lavar as meias do amado.
Levantar com amigos
as paredes do futuro lar.
Limpar o vômito
do filho doente, querido e carente.
Desdobrar-se no trabalho
para pagar a viagem sonhada.
Atos carregados de sentido
carinhos miúdos
inseridos numa história
com sonhos e esperança.
Realização.

Sentido
elo entre o cotidiano e o sonho.
Homem
bicho com o olhar para o alto.

O prazer
A beleza
O sentido
Trio mágico
a resplandecer a vida.

         * * *
Novo século
desmoronamento das utopias
sonhos confusos
Propagação comercial de ilusões,
parafernálias de comunicação
para massificação de projetos políticos.
Esperanças instáveis
desconfiadas.

Gestos com sentido questionado
sentido hesitante
vazio do cotidiano.
Restou o sentido animal
do prazer imediato.
Restou o sentido primário
da busca do reconhecimento imediato.

Crise do gesto
crise do viver.
Jantar sem sal
carinho oco
trabalho que é só trabalho.
Êta vida besta, meu Deus.

Na ausência de sonhos persistentes
que orientem com firmeza os sentidos dos gestos
resta a esperança
de novas descobertas.
Cada ato é uma busca,
gestos a procura do sentido.
O sentido é a busca.

         * * *
Educação
construção conjunta do conhecimento necessário,
busca intencional de novos sentidos,
esforço de traduzir e dialogar os sentidos dos outros.

Educação em saúde,
busca, em conjunto, do sentido
do cuidado do corpo
do cuidado com o outro.

16 janeiro 2014

Poetas guerreiros




O belo é algo que podemos ser
individualmente e socialmente.
Ter esperança é manter-se ligado a esta possibilidade.
Nossa alma se deleita naquilo que é belo.
Os poetas evidenciam a beleza e a ternura já presentes.
Ajudam manter a fidelidade à possibilidade de beleza.
Reconduzem-nos à simplicidade do que é essencial
onde a ternura e o infinito habitam.
Nossa alma se deleita naquilo que é terno e infinito.
Há educadores que são poetas.
Trabalham para ampliar beleza e ternura na sociedade
para o deleite de todas as almas
contra as forças da exploração.
Sensibilidade e enfrentamento.






Recriação de Eymard a partir de anotações de textos de não sei mais quem. 
Para contrariar o Júlio que não gosta deste ideário guerreiro e nem gosta de versinhos explicadinhos,  com cheiro de escrito didático.
É tão bonzinho provocar os amigos.





[Eymard Mourão Vasconcelos escreve na Rua Balsa das 10 às 5as-feiras]

09 janeiro 2014

As trincheiras na universidade de uma guerra em andamento.

As trincheiras na universidade de uma guerra em andamento.
A luta para preservar e construir uma sociedade que permita a todos a realização dos anseios fundamentais do coração




Todos os seres têm a mesma origem; um destino comum os une.

Vivemos, no entanto, a ameaça de devastações inimagináveis do sistema da vida por causa da ação irresponsável do ser humano.  O dinamismo do capitalismo parece consolidar uma cultura de individualismo alienante, de competitividade entre os seres e de relação utilitarista com a natureza. 

Uma guerra está em curso. As forças em luta têm nomes, interesses e discursos elaborados de legitimação.  Algumas destas forças têm ações extremamente perversas e espertamente dissimuladas. Outras são ingenuamente cúmplices.

Na história humana, sempre estiveram presentes a opressão, a perversidade, a necessidade de se distinguir pela desigualdade e o uso utilitário de outras formas de vida. No presente, no entanto, a tecnologia agigantou o poder de destruição das ações humanas. O desenvolvimento das ciências da administração possibilitou a criação de gigantescas instituições controladas por poucos e com capacidade de ação global. Os grandes meios de comunicação de massa possibilitaram a manipulação ampliada da cultura e das subjetividades.  O perigo de destruição da vida chegou a níveis nunca vistos.

O aumento de consumo de bens, a agitação e a alienação, resultantes do sistema, dispersa as vontades, fragmenta os sonhos e acomoda. A gravidade da situação não mobiliza. Um véu adocicado e cheio brindes encobre o processo de destruição do sistema da vida em andamento.

Cresce o desânimo dos que percebem o perigo e sofrem as consequências de forma mais direta.  Muitos seres ameaçados são impotentes diante dos poderosos mecanismos de destruição em marcha.

A esperança é hoje a virtude mais urgente e necessária. Uma esperança que nos mobiliza para a construção uma sociedade que crie condições e permita a realização dos anseios mais profundos e fundamentais do coração de todos os seres.

Como resgatar e difundir a esperança e a mobilização para o enfrentamento da gravidade da situação?

A esperança é filha do silêncio. Anda com mansidão sobre a terra – ela é sagrada. Distancia do turbilhão trazido pelo sistema econômico e político baseado na competição. É preciso permanecer desperto para o Sopro que perpassa tudo o que vive e respira. Escuta sensível. Por dentro deste espaço mental sensível, a esperança se recompõe pela percepção clara do que é fundamental.  A determinação para o enfrentamento é mobilizada. Surge motivação e inspiração para estudos bem orientados e reflexão cuidadosa dos desafios e estratégias de enfrentamento.

Pesquisar os anseios fundamentais dos seres para orientar o trabalho social, pois há muitos anseios e inquietações que dispersam e levam a aprisionamentos. Manter a fé, a firmeza e prontidão para o enfrentamento das estruturas sociais e subjetivas da alienação e opressão.  Cultivar a solidariedade e a afetividade nas relações sociais. Sem dispersar, viver a alegria e o amor, anseios fundamentais e, ao mesmo tempo, forças de transformação. Construir organizações sociais e econômicas fundadas na solidariedade e no respeito aos anseios da vida.

Nesta guerra, cada pessoa e cada grupo social têm seu lugar e sua trincheira. É preciso agir localmente, pensando e se articulando globalmente.

A universidade é espaço importantíssimo nesta guerra.

Para muitos jovens, a universidade é o local de contato com a diversidade de projetos pessoais e sociais presentes na história. Jovens pela primeira vez se expondo de forma ampla a correntes teóricas e forças políticas que estão para além do espaço de suas famílias e suas comunidades de origem, criando momentos de intensa reflexão e mudança.

Os projetos sociais em luta estão na universidade representados nos grupos docentes, na forma como suas instituições se organizam, nos conteúdos dos textos estudados, na diversidade dos movimentos estudantis e no clamor e na voz das pessoas ali assistidas.

Universidade, campo de luta voltado para a conquista ideológica dos futuros profissionais guerreiros que jogarão as próximas batalhas. Campo de luta pela consolidação e legitimação de práticas profissionais que irão favorecer, com a aparência de uma escolha apenas técnica, um ou outro lado das forças em luta. Local de pesquisa e aprimoramento de novos projetos de enfrentamento e de técnicas mais eficazes para o fortalecimento dos interesses em luta.

As práticas acadêmicas dominantes trazem embutidas uma educação ideológica, tornada invisível por um discurso técnico de eficiência pedagógica e de preocupação neutra com a multiplicação de formas mais científicas de agir profissional. Ensinam o individualismo, a competição como melhor caminho para excelência profissional e o olhar para o outro em atendimento que desconsidera sua complexidade e suas diferenças. Legitimam a relação com a natureza de modo instrumental. Formam profissionais operadores acríticos de técnicas desenhadas nos grandes laboratórios de empresas e governos marcados por interesses.  Multiplicam e legitimam os procedimentos técnicos que geram maior consumo de mercadorias. Reproduzem mentes profissionais conformadas com um modelo de vida centrada no consumismo e na busca de distinção individual. Enfim, uma educação muito adequada ao fortalecimento da organização econômica que está ameaçando o planeta.
Sob o manto de um discurso pedagógico voltado para eficácia e de uma agitação alegre, cheia de paqueras, brincadeiras, encontros, premiações, acontece a guerra entre as grandes forças sociais em luta pela condução da vida na Terra.

Há uma urgência e gravidade no nosso tempo que não estão sendo percebidos pela maioria. Alguns estão percebendo. Cabe a eles o despertar da maioria. Mesmo que pareçam uns chatos estragando a aparente tranquilidade da alegre agitação universitária que deixa rolar os modos dominantes de conduzir a vida, em grande parte gestados nas grandes empresas e poderosos governos, controlados por uma elite econômica.

Universidade, também campo importante de resistência ao processo de devastação do sistema da vida pela irresponsabilidade da ação humana. Há, na universidade, um movimento antigo de busca de novas formas de ensino e de novas práticas sociais que vêm experimentando e difundindo um significativo saber de reorientação do aprendizado e de novas formas de lidar com a sociedade e a natureza.

Para um conjunto considerável de estudantes e docentes mais comprometidos com a transformação social, estruturou-se um currículo informal que, ao mesmo tempo, critica o modelo dominante de ensino como também aponta caminhos, já testados e aperfeiçoados na atual estrutura universitária, para uma reforma mais ampla. É preciso escutar este movimento.

A extensão universitária é o espaço mais livre para a gestação de novas práticas pedagógicas contra-hegemônicas. É o lugar para o movimento social dentro da universidade. O novo não é gerado apenas a partir da reflexão de grandes intelectuais. Pelo contrário, é fruto principalmente de movimentos sociais. Uma construção coletiva realizada em processos históricos.

A luta por uma sociedade mais solidária, justa e amorosa é muito antiga na história. Com o desenvolvimento da humanidade, suas estratégias foram se transformando. Educação Popular é uma criação latino-americana, em expansão nos outros continentes, que busca incorporar os saberes trazidos da tradição cristã de busca da solidariedade com as reflexões das ciências sociais da modernidade que apontam para a importância do enfrentamento não apenas das relações pessoais e comunitárias injustas e destrutivas, mas também das estruturas políticas e econômicas geradoras desta injustiça e destruição.

O movimento extensionista brasileiro cresceu fortemente influenciado pela Educação Popular, sistematizada de forma pioneira por Paulo Freire.

O ser humano é marcado pela precariedade e limitação, mas se mobiliza e dá sentido a sua vida por meio de sua aspiração infinita. Perceber a ligação de sua existência limitada e precária com os projetos mais amplos de justiça, solidariedade e integração com toda a natureza, dá-lhe forças para escapar do conformismo com uma vida centrada no consumo de mercadorias e na busca de distinção pessoal.

A percepção e envolvimento nestas grandiosas possibilidades e perigos presentes no trabalho acadêmico, salva os seus profissionais e estudantes da mediocridade, alienação e submissão ao interesse políticos e econômicos de poucos. Cada iniciativa acadêmica e cada prática técnica realizada na universidade podem passar a ser gestos voltados para preservar e construir uma sociedade que permita a todos os seres a realização de seus anseios mais fundamentais. É um ato luta nesta guerra em andamento contra as forças que estão ameaçando submeter a vida à lógica do lucro monetário de uma minoria.

Mas mobilização e enfrentamento sem perder a mansidão, a ternura, o silêncio, a simplicidade e a sensibilidade para o que é fundamental. Com meditação e oração. Um ato de guerrear feito de novo modo. A exasperação e o rancor nos jogam para o lado do inimigo.

[Eymard Mourão Vasconcelos escreve no Rua Balsa das 10 às 5as-feiras]

09 outubro 2013

Pai e filho unidos pelo mesmo amor




Tenho acompanhado muitos projetos de saúde comunitária desenvolvidos como atividade de extensão universitária nos últimos 35 anos, como professor da UFPB. Foi participando desses projetos que descobri o sentido de minha vida como professor universitário. Ao observar o contínuo surgimento de novos profissionais de saúde entusiasmados com o trabalho popular, com tão grande capacidade de iniciativa política e tão marcados por forte sensibilidade no entendimento das relações humanas, eu me pergunto: por onde passa este aprendizado?

A experiência vivenciada por meu filho Marcos me ajudou a entender mais esta questão. Ele se formou em medicina em 2007. Para minha alegria, ele, hoje, é um grande companheiro também na militância. E dos bons. Mas, tudo começou com uma experiência na extensão universitária, trabalhando com saúde comunitária.

Marcos foi criado em uma família de trabalhadores sociais. Quando nasceu, eu e sua mãe, Nelsina, estávamos extremamente envolvidos numa experiência de trabalho comunitário em saúde, no interior da Paraíba. Por sinal, fomos trabalhar lá, em Guarabira, porque a Igreja Católica local tinha uma ação pastoral orientada pela teologia da libertação e a educação popular e nós queríamos atuar onde houvesse companheiros com mais experiência no trabalho social. Com um mês de vida, Marcos já ia para nossas reuniões e, lá, era amamentado com tranquilidade. Fazíamos um programa de rádio semanal sobre saúde e, algumas vezes, ele entrava no estúdio. Seu choramingo fazia parte da programação. Os ouvintes acompanhavam seus passos, que eram discutidos e problematizados, afinal nós estávamos vivendo, pela primeira vez, com ele, muitos dilemas do cuidado de saúde com um recém-nascido. Depois, quando a repressão política nos obrigou a sair da região, fomos fazer um mestrado em educação em Minas, reconhecido, na época, pela valorização do trabalho social junto a mundo popular.

Marcos e seu irmão mais novo, Fernando, sempre conviveram com muitos educadores comunitários em casa. Voltando para a Paraíba, como professores universitários e militantes dos movimentos sociais, eu e Nelsina estávamos sempre conversando sobre questões ligadas ao trabalho social, mas eu notava que estas conversas não entusiasmavam o Marcos. Assim, quando ele decidiu fazer o curso de medicina, não correlacionava sua escolha com o tipo de trabalho médico que eu fazia.

Marcos tem muita semelhança física comigo. Quando entrou na UFPB, foi logo chamado de Eymarcos (no final do curso, tornou-se muito mais conhecido que eu e passei a ser chamado de “o pai do Marcos”). Buscando sua identidade própria, buscava se diferenciar, usando barba e criando espaços próprios de atuação. Assim, apesar de ter o pai coordenando um grande projeto de extensão universitária, sua primeira experiência foi em outro projeto, coordenado pelo meu amigo Emmanuel Falcão, nutricionista e técnico da Pró-Reitoria de Extensão da UFPB.

Tudo aconteceu durante uma greve de professores, no primeiro ano de seu curso. Marcos estava sem o que fazer e resolveu participar do Estágio de Vivência em Comunidades, organizado por Falcão em conjunto com a Direção Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM). Nesta vivência, passou duas semanas com outros estudantes, em um povoado indígena, na cidade paraibana Baía da Traição, que se seguiram de debates sobre o seu significado.

Como pai, senti que esta vivência foi um ponto de corte na vida de Marcos. Sua alma foi tocada de forma intensa por algo semelhante ao que vivi quando, há 39 anos, fui fazer um estágio, ainda como estudante de Medicina, em um povoado de uma região bem pobre de Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha. Após esse Estágio de Vivência, Marcos ganhou uma paixão pela qual passou a lutar e a estudar. A paixão pelo mundo popular, com suas belezas, potências, misérias, surpresas e dores. Passou a dedicar grande parte de sua energia à sua causa. Suas amizades, seu lazer, suas leituras e seus projetos se transformaram nesta militância. Senti a emergência de uma vibração especial em sua vida. Tinha um filho e, naquele momento, ganhei um companheiro de sonhos, projetos, curtições e lutas. Como isto é importante na vida de um pai!

Marcos, desde pequeno, ouvira muitas conversas sobre as belezas e desafios do trabalho social no meio popular. Conversávamos bastante sobre fatos da vida, quando eu expressava meu modo de ver a sociedade. Sua mãe também trazia temas do mundo popular em suas conversas em casa. Mas sentia que estas tantas conversas, destes pais, considerados e valorizados como autores de livros sobre saúde comunitária, não tocavam muito o coração de Marcos. Seus projetos e seus gostos pareciam passar por outros caminhos. O que o tocou e o transformou realmente foi o contato intenso com o mundo popular propiciado por aquela vivência. A experiência valeu muito mais que anos e anos de conversas.

Esta reflexão vem ao encontro do que tenho notado como professor do Curso de Medicina da Universidade Federal da Paraíba, onde ensino desde 1978. Atualmente sou uma pessoa bastante convidada para dar palestras em outros estados do Brasil. Muitos gostam de minhas palavras, entretanto não sinto que elas tenham muito poder pedagógico de transformação entre meus alunos. Grande parte deles não gosta de minhas reflexões. Outros gostam, mas não tenho percebido que minhas aulas tenham maiores impactos em suas vidas profissionais. Mas percebo que o projeto de extensão na Comunidade Maria de Nazaré (uma favela da periferia de João Pessoa), em que participo, tem um impacto de transformação pedagógica imenso.

No nosso Projeto (Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família), que já dura dezesseis anos, muitas turmas de estudantes passaram e pude assistir a grandes transformações. Acompanhei estudantes se transformarem em lideranças com grande capacidade de articulação política e grande envolvimento com as causas dos oprimidos. Formaram-se profissionais extremamente sensíveis aos interesses e às peculiaridades dos subalternos. Mas, neste Projeto, há muito pouco espaço para exposições teóricas. O seu forte é a inserção na realidade popular e o debate sobre as perplexidades que surgem desta vivência. O mais forte é a experiência e não aulas bem feitas. A teoria que valorizam mais é aquela que é buscada a partir das provocações trazidas pelas vivências. Uma teoria que cresce e é elaborada de uma forma que parece mais uma conversa.

O que há na realidade popular que tem tanta força de seduzir e apaixonar as pessoas que dela se aproximam abertos? O que há nesta realidade que levou pai e filho para o mesmo caminho? Há muito mistério nisto, mas algumas coisas podem ser ditas.

O pobre latino-americano está submetido a condições de muita opressão e pobreza. Neste contexto, estruturam-se muitas relações humanas perversas que impressionam muito quem se aproxima dessa realidade de sofrimento e desarrumação. Mas as pessoas que se envolvem com a causa popular não costumam fazê-lo por dó. Vejo nestas pessoas um grande encantamento com o que encontram. Os pobres da América Latina vivem radicalmente a miséria humana, mas o fazem de uma forma que permite dela brotar lutas, alegrias, paixões e solidariedades que encantam. Eles não costumam esconder suas mazelas. Oferecem-nas para o diálogo a quem delas se aproxima com abertura e respeito. Sobre a pobreza assumida sem máscaras, conversas e apoios solidários vão edificando saídas e relações humanas que encantam por sua criatividade e potência. Neste momento, o profissional tem a oportunidade de experimentar o poder dos seus gestos e palavras como dinamizadores desta construção.

A partir desta constatação, minha preocupação como professor passou a ser aplicar e experimentar este aprendizado nos cursos de graduação. Não é o conhecimento, mesmo crítico e progressista, que age pedagogicamente de forma mais intensa no estudante e, sim, a inserção e vivência no mundo daqueles que são nossa maior preocupação. Desisti de organizar minhas disciplinas de forma centrada na exposição logicamente estruturada dos conteúdos da saúde pública. Procuro, antes de tudo, criar vivências que provoquem e instiguem os estudantes. E criar espaço para debater e pesquisar os estranhamentos e percepções. Preocupo muito mais em criar situações de exposição dos estudantes à realidade de saúde das classes populares e gerar debates dos sentimentos e reflexões que daí surgem. Neste momento, livros, artigos e a pesquisa na Internet passam a ser buscados espontaneamente. Sei que, assim, alguns conteúdos planejados do programa das disciplinas costumam ser deixados de lado, mas o aprendizado, por caminhos surpreendentes, é muito maior. E é muito maior também o interesse e alegria dos estudantes que se envolvem.

Mas, nem todos os estudantes se envolvem nessa metodologia: a aproximação e o olhar compreensivo para com o mundo dos pobres irritam muitos que vivem em contextos familiares e de classe social que se beneficiam da injustiça e da desigualdade. E nem sempre se consegue a verbalização franca e clara desta irritação para ajudar a aprofundar o debate. Por isto, não é fácil conduzir este jeito de educar em cursos universitários em que muitos estudantes trazem uma atitude de soberba pela classe social a que pertencem. Uma coisa é usar esta metodologia na extensão, em que os estudantes se envolvem voluntariamente, por opção própria; outra coisa é aplicá-la de forma ampliada para todos os estudantes de um curso de graduação. Nesta situação, estes estudantes irritados boicotam os espaços de debate e as iniciativas de inserção mais profunda nas comunidades.

Mesmo assim, tem valido a pena. Muitas vezes, o nojo e desprezo para com os pobres são sentimentos difusos entranhados na subjetividade destes estudantes, de uma forma não assumida conscientemente. Estas experiências curriculares obrigatórias de inserção no meio popular criam condições para que eles possam refletir sobre esta conduta quase automática e se transformarem. O acolhimento afetuoso das famílias e movimentos populares, com suas histórias cheias de criatividade e garra, bem como a descoberta do fascínio de se descobrir profundamente útil e significativo em situações de tanto sofrimento têm uma potência transformadora muito maior do que qualquer aula teórica. É muito gratificante, para nós docentes, assistir estas mudanças tão radicais na vida dos estudantes. É isto o que me encanta no ensino universitário: os educandos são confrontados com múltiplas visões de mundo e projetos de vida que estão bem fora de sua tradição familiar e de classe. É um espaço de enorme potência pedagógica. Uma potência pedagógica que vai muito além daquilo que está planejado no currículo oficial. É uma pena que muitos educadores não valorizem, criando espaços de escuta, debate e estudo, para esta efervescência de questionamentos e aprendizados possa se desdobrar e avançar. Só me realizei como professor universitário quando consegui acessar e trabalhar pedagogicamente esta realidade de buscas, perplexidades e trocas que se encontra para além dos conteúdos e das aulas previamente planejados.

Eymard Vasconcelos, outubro de 2013

09 setembro 2013

O amor no trabalho em saúde. Eymard Vasconcelos.



Para muitos profissionais de saúde, o trabalho com os pobres, oprimidos e marginalizados não se orienta só pelo dever profissional, pela cobrança das instituições onde estão empregados, pelos lucros financeiros que obtêm ou por uma obrigação moral aprendida em sua formação. Orienta-se principalmente pelo vínculo afetivo e pelo compromisso fundado neste vínculo. A partir deste vínculo afetivo, aproximam das pessoas e comunidades com um olhar e uma escuta sensíveis, atentas para dimensões sutis da realidade. Orientam seu agir principalmente pela percepção das suas consequências no olhar, nos corpos e nas palavras das pessoas que cuidam.

Este vínculo se inicia com o encantamento com a criatividade da população, a gratidão e valorização como são acolhidos nas comunidades, os instigantes desafios teóricos trazidos pelas complexas situações em que são chamados a lidar e seus consequentes aprendizados, além do clima de amizade e de alegria que surge neste tipo de trabalho. Trata-se inicialmente de um vínculo reforçado pelos encontros e acontecimentos do momento. Mas este vínculo vai se aprofundando. Situações de dificuldade, ingratidão, tensão, conflito e frustração surgem, criando períodos sem estes reforços. São tempos áridos que desanimam alguns, mas fazem outros profissionais descobrirem estar vinculados para além das emoções presentes. Trata-se de um vínculo mais visceral e mais atávico que os aproxima de um compromisso não apenas com os usuários mais próximos dos serviços, mas com a população em geral, principalmente os mais necessitados. Vai criando uma maior capacidade de indignação com outras situações de injustiça e opressão presentes na sociedade. Envolve-os, aos poucos, nas lutas políticas pela ampliação dos direitos sociais e pela superação das causas estruturais da desigualdade. Este vínculo mais profundo, que vai ficando sem medo das dificuldades, enfrentamentos e perseguições decorrentes, é mais bem expresso pelo conceito de amor.

O amor é um sentimento simples de ser entendido por ser uma realidade existencial universal, mas, ao mesmo tempo, é um conceito confuso e de significado teórico pouco preciso por assumir formas muito diferentes no cotidiano da vida humana. Há o amor de mãe, dos casais, dos religiosos, dos políticos populistas, do comércio preocupado com a venda de presentes, dos prostíbulos, dos poetas, etc. Há ainda o amor ao dinheiro, ao poder, a Deus e àquele prato favorito. A grande valorização do amor romântico, entre os casais na cultura contemporânea, tem criado uma referência muito forte para sua compreensão, que tende a tornar o conceito de amor em algo muito idealizado, com as qualidades mais belas possíveis, o que cria ilusões por esconder as suas contradições e seus condicionamentos sociais. No mundo acadêmico e profissional, onde impera uma ideologia de valorização da objetividade racional e lógica desvestida de qualquer emoção, passou a ser um conceito extremamente evitado. Mas na vida privada destes profissionais e acadêmicos, fora dos seus ambientes de trabalho e pesquisa científica, tem sido um dos temas que mais gera interesse. Na última década, no entanto, vem sendo tema de crescente debate nas ciências humanas.

Amor é um vinculo afetivo intenso e profundo entre seres que reorienta a relação entre eles, a partir do momento em que se estabelece. Diferencia-se do outros vínculos afetivos pela intensidade. Nele, dinâmicas inconscientes tornam-se fortes, superando o controle da vontade consciente. Gera um enlevo afetivo que toma simultaneamente a consciência e o agir dos seres envolvidos. Desencadeia um tipo especial de acolhimento, compreensão mútua e aceitação de diferenças não bem compreendidas. Cria uma relação de reciprocidade com um forte sentimento de união de interesses, propósitos, necessidades e emoções. A partir daí, estabelecem-se compromissos que se baseiam mais na emoção do que na vontade e no dever racionalmente construído. Neste vínculo, passa-se a sofrer e alegrar intensamente com o sofrimento e a alegria do outro. A partir do momento em que se estabelece na vida das pessoas, passa a ser elemento estruturante importante do sentido e da motivação que dão ao seu existir. É uma experiência, ao mesmo tempo, espontânea como também intencionalmente cultivada. A abertura e o investimento da vontade consciente criam condições para que a sua dinâmica de envolvimento emocional se aprofunde.

Amor é, portanto, regido principalmente pelo sentimento e não pela vontade. Não se ama por obrigação. Ele não pode ser ordenado. Não é um dever moral. Quando existe amor, o dever moral é supérfluo. Mas como ele não está presente na maioria das relações humanas, a moral é necessária. Para muitos filósofos (Sponville, 2011), o agir regido pela moralidade é um agir como se houvesse amor, com aparência de amorosidade, para o bem do convívio humano em sociedade. A moral, sim, é regida pela vontade e pelo dever.

A valorização dos sentimentos, das emoções e das intuições significa uma abertura para dimensões e forças que estão fora do controle da vontade e da elaboração consciente e lógica. É uma abertura para elementos vindos do inconsciente, onde não existe apenas o amor: ali estão também rancores, instintos confusos, medos intensos, agressividades, ímpetos contraditórios e a agitação de nossas neuroses. Para dar espaço à amorosidade é preciso também acolher e elaborar nossas dimensões sombrias, que tendem a se manifestar juntas. Não basta querer amar. O amor vem. E vem misturado com o que não é amor. Amar é um processo exigente de elaboração. Ao fazê-lo, potências subjetivas ligadas à sensibilidade e à intuição são desenvolvidas, levando a superação do viver restrito ao que é racional, medível e claramente explicável.
A valorização do amor no trabalho em saúde significa a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado apenas em conhecimentos e argumentações logicamente organizadas. O vínculo afetivo cria novos canais de compreensão. Leva a mente colocar-se no lugar do outro, para perceber o significado dos acontecimentos a partir de sua perspectiva. Alguns chegam a afirmar que só se compreende bem aquilo que se ama. Assim, o amor permite que o afeto se torne elemento estruturante dos diálogos, acordos e motivações do processo de construção de uma vida com mais saúde. O amor aciona um processo subjetivo de elaboração, não totalmente consciente, que traz importantes percepções, motivações e intuições sobre a realidade para o processo de produção da saúde. Assim, são incorporados ao trabalho aspectos mais sutis da realidade subjetiva e material da população. O amor é, portanto, uma dimensão importante na superação de práticas desumanizantes e na criação de novos sentidos e novas motivações para o trabalho em saúde.
O vínculo afetivo, nesta perspectiva, se diferencia das situações de submissão presentes nas relações de dependência emocional, não podendo ser confundida com sentimentalismo ou infantilização das relações de cuidado. Em nome do amor, muitas cobranças opressivas são feitas. Ao contrário, o amor fortalece o compromisso com a superação de situações de sofrimento e injustiça. Enquanto referencia para a ação política, pedagógica e de cuidado, o amor amplia o respeito à autonomia de pessoas e de grupos sociais em situação de iniquidade, por criar laços de ternura, acolhimento e compromisso que antecedem às explicações e argumentações. 

Há inicialmente uma surpresa ao perceber a potência terapêutica e de transformação social do agir regado pela emoção amorosa. Vai se percebendo, no entanto, que a expressão desta emoção precisa ser modulada para que seja eficaz e ética. Não é qualquer emoção, pois ela também pode ser expressão de rancores, preconceitos e neuroses. É preciso aprender a lidar com as emoções no trabalho profissional. É um processo de aprendizado demorado que acontece por meio de vivências, em que erros e acertos são cometidos e refletidos. A relação continuada e franca com os pacientes, possibilitada pelo vínculo, permite que estas situações possam ser revistas. Vai se desenvolvendo o que vem sendo chamado de inteligência emocional (Goleman, ). E a vida afetiva do profissional, inclusive sua vida privada, vai sendo enriquecida.
Em uma sociedade onde grande parte dos profissionais tem um trabalho alienado, sem vínculo com o que se produz, ter um trabalho criativo e integrado com seus principais propósitos de vida é um grande privilégio. A qualidade deste trabalho, carregado de motivação e sentido, acaba sendo reconhecido, gerando gratificações, inclusive financeiras. Portas institucionais se abrem, mesmo sem iniciativa intencional para isto.
A valorização do trabalho profissional por amor é algo bastante propalado em discursos de gestores, empresários e políticos para cobrar um maior empenho do trabalhador, muitas vezes, sem condições institucionais mínimas. Por isto, há uma desconfiança generalizada contra o uso desta palavra no ambiente institucional. Mas o que realmente dá força e legitimidade para o trabalho por e com amor é a vivência de experiências significativas em que ele aconteceu, transformou e encantou. Depois de experiências como esta, discursos, ideologias e mensagens adocicadas têm pouco valor. Quem passou por esta vivência, evita falar muito sobre ela, pois as palavras são pequenas para expressá-la bem. Só conversam com quem percebem entender destes caminhos sutis da subjetividade humana. Trata-se de uma experiência que leva a uma paz e a uma sensação de sentido pleno que dão uma certeza e uma assertividade para seguir o caminho tomado. Assenta-se em rocha firme e se sente bem apoiado. As ventanias e confusões do trabalho não mais abalam significativamente. Depois desta experiência, firme na rocha, se tem força para enfrentar gestores, empresários e políticos com discursos hipócritas. O desafio passa a ser manter–se assentado nesta rocha, nesta vivência do amor, pois rancores, cansaços, medos e seduções individualistas de consumo e poder podem crescer e afastar da rocha. E o trabalho em saúde é cheio destes perigos. Mantê-lo nas trilhas do amor exige sabedoria, estudo e reflexão.

A experiência da centralidade do amor na existência humana transforma os objetivos do trabalho em saúde. A amorosidade e a ternura passam a ser não apenas uma metodologia de aprofundamento do diálogo e do cuidado, para se tornar também seu objetivo. Não se busca apenas uma sociedade justa, igualitária, participativa, sem marginalizados e com direito assegurado à assistência, mas também uma sociedade amorosa, pois só assim o ser humano se realiza plenamente. A amorosidade é pois instrumento e finalidade do trabalho de promoção da saúde.

As dimensões da emancipação ligadas à justiça, democracia e equidade das políticas sociais têm passos e metas mais palpáveis e delimitadas. São necessárias mudanças das leis, do sistema de representação política, da distribuição dos recursos públicos, da organização da produção econômica, do fortalecimento de organizações sociais, etc. São metas e passos muito difíceis, mas palpáveis dentro de uma lógica racional. Já a ampliação da amorosidade na sociedade é uma dimensão da emancipação menos palpável e menos controlada pela ação consciente. Depende do acolhimento e difusão de dinâmicas que, como o vento, a vontade não consegue governar; apenas cria-se espaço, elabora-se e espera. Isto é extremamente incômodo para as mentes regidas pelo cálculo e pelas estratégias racionalmente definidas.

Eymard Mourão Vasconcelos, setembro de 2013

Este texto e os outros textos meus estão sendo debatidos na lista de discussão 

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30 agosto 2013

Três grandes inspiradores: Jesus, Marx e Paulo Freire


Uma perspectiva ampliada de trabalho em saúde exige visões panorâmicas da realidade que permitam situá-lo no contexto da história humana de luta pela emancipação e felicidade. Querer orientá-lo apenas com saberes técnicos operativos induz a um grande empobrecimento de suas possibilidades. Este empobrecimento simplificador é útil para os que querem apenas usar a ação em saúde com objetivos comerciais ou como instrumento de dominação política. Trabalhadores alienados são muito úteis para operar instituições, cujos fins últimos não podem ser revelados publicamente. Para isto, se adorna as propostas de trabalho com palavras bonitas e cheias de boas intensões e se foge do debate mais amplo com as análises bem estruturadas sobre a realidade social presentes nas tradições históricas de espiritualidade, na filosofia e nas ciências humanas e sociais. Não basta se entregar ao trabalho em saúde com paixão e boa intensão; é preciso também de uma visão crítica consistente. Para isto, é preciso estudo e debate.

O cuidado da saúde é um dos trabalhos mais antigos da humanidade. Seus trabalhadores, em todas as épocas da história, tiveram uma enorme relevância social. Alguns deles se destacaram e se tornaram referências simbólicas importantes na cultura de seus povos. Em geral, eram pessoas que se preocupavam muito com leituras e discussões filosóficas, religiosas e políticas, além do estudo dos detalhes técnicos de seu trabalho. Esta tradição milenar de grandeza profissional precisa ser continuada neste momento da história de crescimento, nunca antes visto, do individualismo voltado para o consumo compulsivo de mercadorias, o gozo privado de prazeres e a obsessão pela diferenciação e distinção pessoal em relação aos outros. O sentido comunitário ficou encoberto pela glorificação do sentido individual. Trata-se de um momento histórico em que enormes instituições empresariais e governamentais conseguiram construir sistemas de controle ideológico complexos e sutis, que deixam os interesses de lucro e domínio mostrarem-se mascarados, adocicados e desejados pela inculcação e difusão de sonhos individualistas, através dos meios de informação e de difusão cultural financeiramente controlados. A dominação ficou parcialmente adocicada e é atraída pelo anzol da sedução das infinitas e mirabolantes promessas de consumo e prestígio, oferecidas para indivíduos competitivos e espertos. Mais do que nunca, é preciso valorizar visões ampliadas e críticas que possibilitem vislumbrar o sentido histórico do trabalho em saúde. Isto tem exigido muito esforço e enfrentamento.

Nos centros formadores de profissionais de saúde e nos centros de pesquisa de novas práticas e tecnologias de assistência, tem sido usual o banimento de estudos filosóficos e sociológicos sobre a realidade de saúde. O debate crítico sobre os propósitos das instituições, o sentido das práticas assistenciais e os interesses subjacentes ficam fora dos espaços planejados e apoiados de ensino e pesquisa. Soam como perda de tempo e energia. O importante seria se concentrar apenas nos detalhes técnicos do trabalho em saúde e sobre o que é imediatamente operacional. Mesmo a saúde coletiva está dominada por discussões sobre conhecimentos instrumentais para gestão institucional. Expulsaram as grandes teorias e os grandes pensadores pela porta principal destes centros formadores e de pesquisa. No vazio do debate filosófico e sociológico mais amplo, criou-se um ambiente propício para o domínio da ideologia comercial e política do comando institucional. Ideologia é a justificativa, com aparência racional, de interesses não muito explícitos. Essa ideologia vai entrando pelas portas dos fundos e gretas das paredes destas instituições e pelas leituras que cada profissional vai fazendo nos meios de comunicação dominados financeiramente pelos mesmos interesses.  Assim, o pensamento dos profissionais de saúde foi ficando dominado, de forma semiconsciente, por conceitos preconceituosos e mesquinhos sobre a realidade. E o trabalho em saúde foi perdendo sua beleza, sua audácia e o seu sentido mais amplo.

Muitos profissionais de saúde resistem e lutam contra esta tendência. Buscam se inspirar nos grandes pensadores da história da humanidade. Priorizam o debate crítico sobre suas práticas e sobre a realidade em que atuam. Participam de movimentos sociais voltados para a difusão deste debate e das ideias que acreditam importantes. Surgiram, então, vários grupos teóricos e entidades que muito têm ajudado nesta luta contra o empobrecimento do trabalho em saúde pela sua submissão parcialmente escondida a interesses comerciais e de legitimação política dos grupos dominantes.
Vários grandes pensadores vêm sendo valorizados por este movimento de resistência. É esta ampla diversidade que assegura um debate mais amplo e envolvente. As ideias presentes neste conjunto de textos estão francamente influenciadas por três destes pensadores: Jesus, Marx e Paulo Freire. Nenhum deles era profissional de saúde, mas forneceram perspectivas ampliadas para o entendimento do trabalho em saúde.
Jesus, entre outras coisas, trouxe para o trabalho em saúde uma perspectiva nova de amor: o amor ágape voltado para quem é apenas próximo, ou seja, aquele que não é nem amante, nem familiar e nem amigo. É algo muito importante para entender o envolvimento de coração que muitos trabalhadores de saúde têm com seus pacientes e suas comunidades. Marx muito contribuiu para o entendimento da dimensão política e econômica do trabalho em saúde e para apontar uma perspectiva de seu engajamento na superação das estruturas sociais reprodutoras da injustiça e da desigualdade. Mostrou a importância do enfrentamento, não apenas de situações individuais e comunitárias, mas também de modos de organização da produção da riqueza econômica e da política para a conquista da saúde. Paulo Freire sistematizou um caminho de integração entre as contribuições de Jesus e Marx e refinou os caminhos da ação pedagógica necessária para a emancipação. As contribuições de cada um serão discutidas em textos seguintes.

Outros grandes pensadores, como Michel Foucault, Deleuze, Espinosa, Freud, Jung, Martin Buber, Edgar Morin, Habermas e Boaventura de Sousa Santos, têm sido valorizados no setor saúde. Explicitar estas referências teóricas mais amplas ajuda a tornar o debate mais franco e produtivo. Os grandes teóricos conseguem explicitar, de forma mais ampla e organizada, uma determinada perspectiva de análise da realidade. Mencionar a centralidade do pensamento de um ou mais destes teóricos, em sua prática, ajuda a tornar mais compreensível e clara a perspectiva que a orienta, contribuindo no diálogo entre os vários profissionais de saúde.

Além dos grandes pensadores que conseguiram criar perspectivas de análises da realidade e de intervenção amplas e articuladas, temos ainda intelectuais que vem pensando a aplicação destas perspectivas para contextos específicos de prática. Muitos sanitaristas e outros profissionais de saúde têm feito este trabalho. Em cada região ou instituição há ainda profissionais mais vocacionados para o trabalho intelectual que atuam como mediadores entre os questionamentos locais e as discussões teóricas mais amplas. Alguns professores, lideranças de movimentos sociais, profissionais locais, pastores, comunicadores, familiares, ativistas culturais fazem este trabalho para públicos menores. Na verdade, todo trabalho pedagógico é também uma mediação entre as ideias mais articuladas de leitura da realidade e as questões emergentes no cotidiano da vida.
O ser humano tem fome de entender amplamente a realidade. Não quer apenas curtir, sobreviver, interagir socialmente, ser amado, formar família e transformar a realidade próxima; é um ser curioso que carece situar sua vida particular diante de sistemas de ideias que lhe permitem ter um entendimento amplo da realidade. Mas nem todos têm condições e facilidade para investir no trabalho de organizar o pensamento. Este é o trabalho dos intelectuais, mestres e dos sábios existentes nas comunidades. É um trabalho exigente, muitas vezes não reconhecido. Educar e lutar pela justiça, liberdade e democracia é também ampliar este processo de elaboração e organização do pensar para toda a sociedade, principalmente para os mais pobres, oprimidos e marginalizados. O entendimento amplo da realidade é imprescindível para o ativo protagonismo de cada cidadão na reconstrução da nação.

Eymard Vasconcelos, agosto de 2013Este e outros textos meus estão sendo discutidos na lista de discussão http://br.groups.yahoo.com/group/dialogando_/


12 agosto 2013

Meu envolvimento inicial com o mundo popular - Eymard Vasconcelos


Era o ano de 1974. Eu estava em crise. No terceiro ano de medicina, pensava em abandonar o curso. Escolhi medicina pensando ser o curso mais apropriado para me tornar um pesquisador. Era fascinado com a complexidade da vida. Imaginava-me em um laboratório procurando desvendar mistérios do corpo e encontrando soluções de impacto. A figura do professor Pardal, das histórias em quadrinho do Pato Donald, com suas descobertas mirabolantes, era uma referência não claramente assumida. Mas o estágio que havia feito no Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de Minas Gerais, um centro de pesquisa bastante reconhecido nacionalmente naquela época, me decepcionara. Descobrira como a pesquisa científica em laboratório era demorada, dependente de longa rotina de repetição de testes. Era um ambiente sem o dinamismo que imaginara. Mas o que fazer então? Imaginava também o trabalho clínico em consultórios particulares e ambulatórios públicos como algo rotineiro e chato. Cheguei a procurar uma psicóloga da Universidade para me orientar.

Nesta época, o Centro Acadêmico do Curso de Medicina organizou a I Semana de Saúde Comunitária - SESAC. Eram férias e eu tinha alguns amigos na sua organização. Resolvi participar sem saber bem o que encontraria. Estudantes de cursos de medicina de outros estados vieram, trazendo relatos e reflexões de experiências de trabalho comunitário em saúde que começavam a se organizar no Brasil, em geral ligados a universidades. Era impressionante o entusiasmo de alguns deles. Animei-me, então, a participar de um estágio de duas semanas em postos de saúde recém-criados na Região do Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, para os participantes da SESAC. Fui parar, com mais dois estudantes, no povoado de Engenheiro Schinnor, no município da Araçuaí, depois de uma desconfortável viagem de ônibus por toda uma noite. Até hoje não compreendo bem o que me animou a arriscar nesta aventura.

Era um povoado pobre e em decadência pela desativação da Estrada de Ferro Vitória-Minas, que lá passava. Fomos muito bem acolhidos pela comunidade. Cada refeição era feita na casa de um morador diferente. Estávamos bastante desajeitados e inseguros, apesar de apoiados por uma estudante de Brasília mais adiantada e já com alguma experiência em saúde comunitária. Apesar de estudantes, a população da redondeza, carente de assistência, afluía em grande número trazendo seus problemas que procurávamos resolver com os medicamentos da Secretaria Estadual de Saúde e muita conversa entre nós. Já iniciados em alguns princípios da pedagogia libertadora de Paulo Freire, procurávamos criar espaços para ir discutindo, de forma mais ampla, as raízes e soluções dos problemas mais importantes do lugarejo. Tentávamos identificar lideranças que nos ajudassem no trabalho de mobilização.

A carência da população, que ao tornar valiosos os nossos poucos conhecimentos, os levava a expor intensamente os seus problemas, e as orientações de Paulo Freire, que nos levavam a não assumir a atitude de doutor sabe-tudo, mas de encontrar formas para discuti-los coletivamente, fizeram uma mágica. Aquele povoado pacato e decadente se revelou lugar de uma dinâmica fascinante. Problemas aparentemente banais iam mostrando estar ligados a histórias complexas, carregadas de sofrimento, garra, opressão e paixão. Eu, filho de uma família de classe média tradicional da capital mineira e com uma vida bem regradinha, tive acesso a mistérios que nem imaginava. Assustei-me e encantei-me. Além do mais, sentia que éramos significativos na busca de soluções. Pouco entendíamos de política, sociologia, psicologia ou economia, mas nosso precário saber técnico nos dava autoridade para propor encontros e, seguindo os princípios da Educação Popular, colocar problemas em discussão. Nossa insegurança até ajudava, na medida em que nos dificultava tentar responder sozinhos às dúvidas. Estávamos perplexos demais com o que deparávamos para conseguirmos transmitir segurança. Era impressionante como uma simples orientação metodológica salvava e abria caminhos: “diante de um problema significativo, procure discutir com as pessoas envolvidas, buscando construir coletivamente as soluções”. Nas discussões com as famílias e nos grupos formados, fios da complexa meada da vida iam se revelando, mostrando dimensões inusitadas da luta pela sobrevivência e felicidade. Soluções eram costuradas com palpites de muitos, já os envolvendo no encaminhamento. Ficávamos encantados com os resultados esboçados no processo que ajudávamos a construir. 

Participávamos da obra de recriação coletiva da vida e isto era fascinante. Esta metodologia pedagógica nos aproximava afetivamente deles e nos permitia desfrutar de seus carinhos e alegrias que expressavam de forma intensa.

Não me lembro mais dos rostos daquelas pessoas, nem da maioria de suas histórias. Mas ficou marcado em minha alma um sentimento tão forte que tem me acompanhado em toda minha existência. Nunca vivera nada tão intenso. Foi algo, tão tremendo, que relativizou todas as minhas dúvidas. Não entendia bem o que acontecera, mas, a partir daí, fiquei sabendo que era isto que queria para a minha vida.

Desde então, em cada período de férias, buscava organizar um estágio em alguma comunidade. Precisava experimentar aquilo novamente; queria viver outros desdobramentos do amor que se iniciara; necessitava conhecer mais esta realidade que me fascinava. Vieram, então, ainda como estudante, Veredinha, Padre Paraíso, Calciolândia e a favela da Avenida Raja Cabáglia de Belo Horizonte. Os rostos e lugares mudavam e o vínculo aumentava. Classes populares e movimentos sociais foram conceitos que descobri e me ajudaram a dar uma identidade a este outro que tanto me atraía para um encontro de criação conjunta, mobilizando meus sonhos e minha paixão. As classes populares eram um novo e fascinante outro que encontrei em minha vida; um outro desvestido de pompas e sem pudor de escancarar sua intimidade desarrumada na crise da doença, deixando mostrar uma criatividade e vibração capazes de construir uma inesperada alegria e amorosidade em situações aparentemente insustentáveis.

Meu curso de medicina ficou colorido. Nas diversas disciplinas, os assuntos técnicos ganharam vida, pois me ajudavam a entender os problemas das pessoas com quem criara vínculos. Passei a ter, então, uma referência para selecionar o que estudar mais, ganhando uma autonomia diante da cobrança dos professores. Formei, fui trabalhar na Paraíba com saúde comunitária. Desde então, tive fortes encontros em Pilõezinhos, Guarabira e nas favelas de João Pessoa e Belo Horizonte. Descobri que outros profissionais também tinham paixões semelhantes e estavam cheios de inquietações. Fiz mestrado, doutorado e pós-doutorado buscando a melhor compreensão de nossas dúvidas. Vieram livros e a Rede de Educação Popular e Saúde, que aglutina hoje centenas de profissionais com buscas parecidas.

Hoje, com 60 anos, já tive vários amores. Tive namoradas, casei, tive dois filhos que não mais vivem comigo, separei, casei novamente e, agora, tive um novo filho. Olhando para trás, vejo que o encontro, com o mundo dos pobres, oprimidos e marginalizados, iniciado em Engenheiro Schinnor, no espaço do trabalho em saúde e da luta pela justiça social, funcionou em mim como um grande encontro amoroso. Destes que criam um vínculo de tal monta que reorientam todo o viver. Que despertam energias e motivações que nos dão garra para enfrentar a aventura da vida. Entre desencontros, desencantos, momentos de intensa alegria e conquistas, raivas e frustrações, este amor perdurou central. Gerou filhos: alunos e leitores espalhados pelo Brasil, movimentos sociais, sistematizações teóricas. Criou redes de parentesco. É um amor cheio de precariedades e contradições como todos outros, mas o que mais desencadeou mudanças em minha vida.
A partir do conhecimento da realidade propiciado por este comprometimento com a pobreza, opressão e marginalidade, fui também definindo meu modo de encarar minha vida afetiva, meu lazer, minhas amizades, minha vida religiosa e minha profissão.

A força deste comprometimento estruturante da minha vida foi confirmada na década de 1990, cerca de 20 anos depois da experiência de Engenheiro Schinnor. Nesta época, passei por um intenso processo de revisão de valores. Afastei-me do cristianismo, pela crescente tomada de consciência das feridas deixadas pela formação cristã tradicional (a desvalorização dos desejos, a cobrança contínua de perfeição e a ênfase na culpa pessoal) e pelo cansaço com as contradições da igreja. E terminei o casamento de 19 anos.
Como não cristão, fui fazer meu doutorado em Medicina Tropical na UFMG, procurando estudar o novo papel da educação popular a partir da conquista do Sistema Único de Saúde, quando suas práticas passaram a valorizar mais o espaço de atuação dentro das instituições. Escolhi fazer a pesquisa em um serviço de atenção primária à saúde bem estruturado, inserido em uma grande favela de Belo Horizonte. Esta experiência está descrita no livro Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família (Hucitec, 2010, 4ª edição). Nesta pesquisa, quando percebi, estava totalmente dedicado à educação popular junto às famílias mais pobres e rejeitadas da favela: a maioria dos moradores e lideranças comunitárias tinha raiva delas pelos tumultos e sujeiras que causavam. Quando percebi isto, vi que tinha em mim um vínculo muito profundo, até mesmo inconsciente, com os pobres, oprimidos e marginalizados que dinamizava minha criatividade e trazia realização. Fui tomando consciência que um cristianismo não teórico fazia parte da minha estrutura pessoal, mesmo tendo muitas discordâncias com sua doutrina antes aprendida. Um cristianismo que não era mais essencialmente um sistema de saberes para conduzir a vida, mas um caminho de desvelamento e elaboração de uma estrutura amorosa que nos constitui (o Cristo que habita em nós, desde a criação da humanidade). A partir desta percepção, as palavras do Evangelho ganharam novo sentido. Passei, então, a ouvir e valorizar mais as vozes interiores profundas, abrindo perspectivas de ver e relacionar com a realidade, de forma menos regida pelo dever e pelo pensamento considerado correto. Retornei ao mesmo lugar, vendo, no entanto, nova paisagem. Novamente, minha vida pessoal e profissional se modificou a partir de um insight originado, em grande parte, no contato com os pobres. Por isto, tenho uma grande identidade com a história de São Francisco, narrada em texto anterior.

Este foi o caminho inicial de meu envolvimento pessoal com a luta pela saúde dos pobres, oprimidos e marginalizados. Vivi uma experiência que fundou um novo modo de ser. Percebo que vários profissionais, com envolvimento semelhante, tiveram também experiências fundantes, mas falam pouco sobre elas. É importante reconhecer a força destas experiências numinosas, isto é, experiências tão tremendas e fascinantes que passam a reorientar o viver. Trazem-lhe um novo sentido e motivação, bem profundos. Grandes aprendizados ocorrem por meio de experiências das quais pouco conversamos, pois nossas palavras não dão conta de expressá-las inteiramente. Aí, calamos.  Mas como educadores, precisamos tentar conversar mais sobre elas, criando espaços educativos protegidos em que possamos explicitar estes pensamentos e sentimentos ainda embaçados e inseguros para se expressarem com firmeza. É importante trazer para a pedagogia estes processos subjetivos, que ficam abaixo da linha d’água da consciência clara e lógica e que têm imenso poder orientador dos maiores sentidos e motivações do existir. Em outras palavras, valorizar a dimensão espiritual no fazer educativo.





03 agosto 2013

As várias faces da pobreza, opressão e marginalidade na sociedade - Eymard Vasconcelos



Pobreza, opressão e marginalidade são conceitos pouco precisos nas ciências humanas. Têm sido estudados por diferentes autores e disciplinas, com diferentes definições e ênfases teóricas. Justamente por causa desta imprecisão conceitual é que eles são adequados para as reflexões deste livro. Assim, permitem nominar pessoas e grupos sociais muito diversos e situações inesperadas de subalternidade que não se enquadram em esquemas teóricos clássicos. Expressam uma realidade em que a sensibilidade afetiva costuma, muitas vezes, detectar com mais precisão do que as muitas análises sociológicas.

Já vi pobres marginalizados na Inglaterra (imigrantes paquistaneses) com condições materiais melhores do que muitas famílias consideradas ricas na cidade onde morava, no interior da Paraíba. O ser considerado pobre tem uma dimensão relativa que depende da situação de disponibilidade de recursos em determinado ambiente social. Vi também opressores com atitudes aristocráticas, morando em favelas bem precárias.
Minha mãe, que trabalhava na pastoral da saúde de sua paróquia católica, em bairro bem rico de Belo Horizonte, conheceu e apoiou pessoas extremamente oprimidas e marginalizadas (principalmente idosos e deficientes físicos ou mentais), morando em apartamentos finamente decorados deste bairro tão nobre. Um ex-aluno trabalhou na ONG Médicos Sem Fronteiras, assistindo populações ricas, mas extremamente oprimidas pela guerra e dominação política. Há pessoas com boas condições materiais, mas que vivem humilhados por pertencerem a grupos sociais marginalizados, como os travestis e os ciganos. Pertencer a um grupo religioso pode ser fator importante de exclusão social. Pessoas pertencentes à determinada religião podem ser opressores ou oprimidos dependendo do lugar onde moram.

Opressão e marginalidade podem surgir em situações inusitadas e inesperadas.  Podem estar em situações extremamente variadas: favelados das periferias dos grandes centros urbanos, camponeses, índios da Amazônia, índios nos bairros urbanos, sem-terras, moradores de rua, idosos explorados por filhos e netos, prostitutas que sustentam sua casa, mas vistas com vergonha pelos familiares, imigrantes, presos das penitenciárias, desempregados, o aluno desajeitado e tímido da escola famosa, dependentes de drogas psicoativas, os gays, as pessoas com deficiência física, as esposas de maridos grosseiros, o amante tolhido por jogos de chantagem emocional, o trabalhador de grande empresa exploradora de mão de obra, o doente crônico deixado isolado em seu quarto, pessoas com agitação mental maior que a usual, o empregado do sapateiro da esquina, o funcionário público com vínculo precário, pessoas com aparência física muito diferente dos padrões de beleza, as vítimas da guerra, os ciganos, as faxineiras dos luxuosos shoppings centers, os operários, o morador de distante povoado ribeirinho, pessoas com ideias e propostas de vida muito diferentes da maioria, filhos de pais autoritários,  etc.

Se a opressão e marginalidade são mais evidentes em alguns grupos sociais e em algumas situações familiares e institucionais, elas, de alguma forma, são também experiências de todos. Os profissionais de saúde não são apenas pessoas que delas cuidam. De alguma forma, eles também as experimentam em suas vidas, de modo mais forte em alguns momentos e em alguns de seus espaços de convivência. Essas dolorosas experiências próprias são importantes referências para melhor compreender as pessoas a quem cuidam.

As situações de opressão e marginalidade são muitas, mas a maioria está definida pela inserção de seu grupo social no processo econômico e na consequente forma de participação da riqueza produzida, podendo ser enquadrada dentro do conceito marxista de classe trabalhadora. Empregados subordinados de grandes e pequenas empresas, grandes ou pequenas fazendas, casas de famílias e pequenas propriedades rurais. Eles e seus familiares. São pessoas que vivem de trabalho assalariado ou que até mesmo não o conseguem durante períodos, quando sobrevivem de pequenos negócios precários. São elas que constroem a imensa riqueza mundial atual, mas tem acesso à apenas uma parte pequena dela. Mas há também várias situações de exploração e marginalização que não são diretamente ligadas à organização política e econômica da sociedade, sendo apenas alteradas por ela.

Grande parte desta enorme variedade de situações está determinada por um número bem mais restrito de causas sociais, a maioria delas ligadas à forma como a riqueza é produzida e distribuída na sociedade. E como o poder político é controlado.  As ciências sociais e a economia política são fundamentais para a compreensão destas origens comuns de muitas destas situações. A assistência à saúde integral busca contribuir também no enfrentamento destas fontes estruturais da pobreza, opressão e marginalidade, sendo, portanto, importante buscar que os pacientes e os grupos assistidos as compreendam. O tratamento e a prevenção de doenças são importantes espaços para questionamento e discussão das causas mais gerais do sofrimento.

No entanto, as teorias mais importantes sobre as origens da pobreza, opressão e marginalidade na sociedade não dão conta de explicar e identificar todas as situações. A realidade é mais complexa do que as teorias existentes. Muitas vezes, o apego extremo a determinada teoria sociológica, religiosa ou econômica sobre as causas e explicações da opressão e exclusão impedem a percepção de situações novas e até frequentes. Por isto é importante a sensibilidade, que pode conseguir perceber situações inusitadas. Pela sensibilidade pode se identificar, se comprometer e, posteriormente, buscar análises explicativas para estas situações inesperadas. As teorias são importantes instrumentos para apurar nosso olhar sobre a realidade, mas podem também turvar a visão.

A identificação e conhecimento de muitas situações de opressão e marginalidade têm sido possíveis também pela formação e luta de movimentos sociais destes grupos. São movimentos que criam união e articulação política, divulgam saberes e denúncias e trazem para a cena cultural e política questões até então encobertas.
Pessoas que não convivem de perto com os pobres oprimidos e marginalizados podem vê-los de forma romântica e simplista. Eles são constituídos de grupos e pessoas contraditórias como quaisquer outras. Outros modos de opressão e subalternidade podem ser criados dentro de famílias e grupos sociais empobrecidos e marginalizados. Pessoas injustiçadas podem exercer grandes injustiças e ter ações extremamente perversas. Se entre eles há muita luta solidária de superação, também há indolência e desunião. A miséria e humilhação não têm apenas efeitos materiais e psicológicos, mas também morais. Podem gerar comportamentos tumultuados, agressivos e ressentidos. Suas contradições têm sido usadas politicamente para justificar o não investimento em políticas sociais a eles destinadas. A visão mítica dos pobres é também base para uma intensa rejeição após a percepção das primeiras contradições.

Os serviços de saúde são um dos principais locais para onde se dirigem os que mais sofrem na sociedade. Se o profissional não tiver uma visão restrita à queixa orgânica bem específica dos pacientes e tiver sensibilidade, ele pode ajudar a identificar e problematizar realidades opressivas bem maquiadas pelas famílias ou pela cultura dominante. Uma queixa centrada em um problema físico bem específico pode ser o jeito socialmente mais aceito para se chegar aos profissionais de saúde e pedir socorro, quando o sofrimento é difuso e confuso por derivar de situações sociais complexas. Alguns machucados nas pernas e braços podem revelar situações de espancamento repetido em famílias garbosas. Algumas modalidades de doença pulmonar podem indicar condições de trabalho insalubres. Uma dor de cabeça persistente pode mostrar o ritmo desumano de trabalho de uma empresa. Isto dá uma dimensão política muito forte para o trabalho em saúde, tornando-o instigante e grave. Exige um saber e uma habilidade para lidar com situações que podem gerar perseguições ao profissional. O solo por onde se desenvolve o trabalho em saúde exige um caminhar reverente. Mas também pode ser trilhado levianamente com espírito comercial e de ostentação.

Os serviços de saúde podem ser também locais que reforçam a marginalização e humilhação de pessoas e grupos sociais. “Não vou lá, porque lá me sinto mais podre do que já sinto”. Muitas resistências em procurar os serviços se devem aos olhares de rejeição e as pequenas ironias que ali acontecem, provenientes dos profissionais ou dos outros usuários. Na fragilidade da crise trazida pela doença, rejeições aparentemente pequenas causam grande efeito de afundamento da autoestima. Para alguns grupos, é preciso criar serviços específicos próprios para se conseguir uma frequência regular.

A assistência à saúde, que acolhe e trata a opressão e a marginalização, pode acontecer em diferentes tipos de serviço. Os serviços de atenção primária à saúde, bem inseridos na vida comunitária e com condições de dar um acompanhamento próximo e de longo prazo, são espaços privilegiados para um trabalho potente e criativo. As enfermarias dos hospitais acolhem os subalternos por períodos limitados, em momentos de muita fragilidade e de dependência intensa a um cuidado humano e pedagógico, podendo ter grande significado no cuidado das situações de opressão. As unidades de atendimento de urgência iniciam o cuidado nas crises, momentos cruciais na vida das pessoas, onde as situações de injustiça e desprezo se mostram evidentes, clamando por iniciativas firmes e carinhosas. O atendimento ambulatorial especializado é fundamental no acompanhamento de pessoas acometidas por problemas específicos e servem de referências orientadoras da assistência continuada nos serviços de atenção primária. Neles, é possível rever condutas antigas que não estavam dando resultados satisfatórios e perceber dimensões humanas ainda não consideradas. Organizações não governamentais e movimentos sociais voltados para problemas específicos de saúde ( como para portadores de HIV, usuários de serviços de saúde mental, síndrome de Down, hanseníase, dependentes de drogas psicoativas, etc.) ou para públicos específicos ( como os homossexuais, prostitutas, meninos de rua, negros, etc.) são espaços de trabalho riquíssimo e locais de articulação de lutas políticas fundamentais. Por traz do funcionamento de todos estes serviços, há gestores que podem atuar numa perspectiva de sua transformação em direção a uma assistência mais humana e integral. É um trabalho mais distante do atendimento às pessoas, mas muito difícil, pois exige muita habilidade política e uma visão ampla das possibilidades e alternativas. Os gestores dos serviços de saúde podem criar condições gerais propícias a uma assistência integral e orientar amplamente o conjunto de serviços em direção a um cuidado humanizado.

São, portanto, muitas as formas, espaços e possibilidades de um trabalho em saúde a serviço da superação da opressão, pobreza e marginalidade em suas múltiplas e surpreendentes faces. Elas precisam ser articuladas para serem mais potentes.

Eymard Vasconcelos
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