14 junho 2013

Conversão aos pobres, oprimidos e marginalizados




Eymard Mourão Vasconcelos



Para entender o estranho vínculo e compromisso de muitos profissionais com os excluídos da sociedade.

O termo conversão usualmente é compreendido como passagem de uma crença para outra ou de uma religião para outra. Também é comum entendê-lo como aceitação de uma missão divina que reoriente totalmente o modo de viver. O teólogo Richard Schaull, um dos precursores da Teologia da Libertação e da Educação Popular e que atuou em vários países da América Latina na segundo metade do século passado, usava o termo conversão em um sentido diferente (Cesar e Shaull, 2001). Referia-se a ele para expressar um processo de mudança pessoal radical do modo de entender e olhar o mundo e de pensar a solução dos seus problemas e os projetos para o futuro. Para ele, a conversão mais importante e central para esta sociedade, marcada pela intensa desigualdade e exploração, é a conversão à pobreza. Ele usou este termo para expressar um fenômeno subjetivo que via acontecendo, desde a década de 1950, em muitos profissionais, militantes políticos e religiosos que passavam a conviver intensamente com as classes populares e começavam a colocar a questão da pobreza como ponto central em suas vidas, de uma forma em que todas outras dimensões de seu trabalho, vida pessoal e inserção política ficavam reorientadas por ela.

Esta conversão ocorre entre pessoas vindas das classes médias e das elites da sociedade, setores que usualmente percebem as classes populares de forma pejorativa. Na convivência intensa com a pobreza, por razões de trabalho profissional, militância política ou missão religiosa, vão descobrindo a riqueza de sua cultura e de seus esforços para superação de sua situação. Encantam-se com sua dinâmica de vida, criam intensos vínculos afetivos e passam a assumir suas lutas como se fossem próprias. Vão abandonando suas concepções anteriores de que a solução dos problemas da sociedade passa pela generalização dos valores, saberes, modos de viver e projetos políticos presentes nos seus setores mais eruditos e ricos. Deixam de lado, então, a ênfase mais usual dos que aproximam dos pobres para trabalhos educativos e sociais: a conversão dos pobres. Esta última expressão ressalta a perspectiva mais comum entre militantes, religiosos e trabalhadores das políticas sociais que se aproximam dos pobres para convertê-los a projetos, valores e hábitos de vida elaborados fora de seu meio. A cada época, novos projetos civilizadores, emancipadores e humanizadores, cada vez mais modernos, sofisticados e “científicos”, vão sendo produzidos e difundidos pelas vanguardas políticas, religiosas e intelectuais para serem generalizados, de cima para baixo, por toda a sociedade. A conversão aos pobres é uma inversão desta atitude. Pressupõe estar com eles para, em processos dialógicos e amorosos, produzir junto novos caminhos para a sociedade.

Victor Vicent Valla foi quem primeiro trouxe este conceito para o campo da saúde. Ele foi um historiador norte americano que chegou ao Brasil em 1964, como missionário religioso. Aqui, ficou abismado com a pobreza tão amplamente presente. Percebeu logo a complexidade dos caminhos de superação, mas sentiu muito mobilizado para permanecer junto a ela, mesmo não sabendo bem o que era necessário fazer. Abandonou a vida religiosa e se dedicou a vida acadêmica, onde sempre se manteve focado em estudar aspectos que marcavam a pobreza. Apesar de ter se tornado um intelectual muito prestigiado e com múltiplos convites para participação em eventos científicos, nunca se afastou da convivência com o mundo dos pobres, oprimidos e marginalizados. Era pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Osvaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e foi um dos pioneiros do movimento da educação popular em saúde. Faleceu em 2007. No final de sua vida, passou a falar repetidamente sobre este processo de mudança profunda de sua vida causada pelo convívio com a pobreza. Seu último texto publicado foi justamente sobre o significado da conversão à pobreza na saúde pública e na educação popular (Valla, 2007). Sua vida foi um exemplo vivo deste fenômeno.

O conceito de conversão à pobreza pode ser hoje ampliado para conversão aos pobres, oprimidos e marginalizados. Não é só a pobreza que define a exclusão social, que tem muitas outras facetas. Assistimos, na última década, a uma expressiva diminuição da pobreza na sociedade latino americana, tornando mais significativas estas outras facetas da exclusão social.

Trata-se de um conceito que ajuda muito a entender o que vem ocorrendo com inúmeros trabalhadores do setor saúde cuja prática com os pobres, oprimidos e marginalizados não é bem explicada por conceitos como altruísmo ou dedicação abnegada.  Eles são movidos muito mais por um fascínio com o surpreendente dinamismo e vitalidade presentes nestes grupos sociais quando se cria espaço para uma relação igualitária e respeitadora de seus saberes e valores. Suas atuações são mais explicadas por um vínculo amoroso do que pelo dever. Não se trata de algo estranho à cultura do mundo ocidental. Personalidades significativas na história expressaram esta perspectiva subjetiva.

A história da figura de São Francisco de Assis é exemplar e tem grande repercussão no imaginário ocidental, pois foi escolhido, em 1999, em toda Europa, como a maior personalidade europeia do II Milênio. Em quase todos os países do mundo, neste ano, foram feitos processo de consulta para escolher a personalidade do século que terminava. Na Europa, fizeram também a escolha da personalidade do milênio que terminava. São Francisco, nascido no final do século XII, era filho de um abastado comerciante italiano, fazendo, então, parte da burguesia nascente. Teve uma juventude de muitas festas e despreocupação. Mas, de repente, seus amigos começaram a notá-lo muito quieto. Eles lhe perguntam: - Você sempre era o líder das nossas festas, das nossas cantorias noturnas, porque agora você se retira? Ele responde: -Encontrei uma dama maravilhosa, lindíssima, brilhante! Estou enamorado, apaixonado por ela e tenho dor de amor... Eles voltam a perguntar: - Qual foi a moça que você encontrou? Francisco lhes responde: - Encontrei a Dama Pobreza, a Senhora Pobreza. Fiquei tão fascinado que vou abandonar tudo para fazer o esponsório com a Dama PobrezaSua profunda transformação, que lhe trouxe nova motivação e um novo sentido para sua vida, se deu através do encontro com a pobreza e particularmente com os leprosos. Em seu tempo, os leprosos causavam enorme pavor pelo medo de contágio e eram totalmente rejeitados. Andavam com uma campainha dependurada no pescoço para alertar às pessoas que era necessário se afastarem, pois estavam chegando. Francisco, durante suas frequentes crises pessoais, buscava o acolhimento dos leprosos para se recompor. O cristianismo assume importância maior em sua vida a partir da sua relação com a pobreza e os doentes (LELOUP & BOFF, 1997, p.31-34).

A importância da experiência deste forte vínculo encontrado na relação igualitária com os excluídos é repetidamente referida por profissionais de saúde quando se cria um ambiente de comunicação em que dimensões subjetivas sutis podem ser expressas.

O termo conversão remete para a importância das dimensões subjetivas inconscientes nos processos de tomada de decisão e envolvimento com tarefas e projetos. Não somos apenas o que nossa consciência clara e lógica decide. Há uma inteligência e uma forte emoção que ficam abaixo da linha d’água da consciência lógica e de nossos conhecimentos claramente definidos. Apaixonamos e nos vinculamos fortemente com pessoas, comunidades e causas. Por elas, somos capazes de enfrentar duros desafios e aguentar sofrimentos. Suas conquistas e alegrias nos satisfazem profundamente. A inteligência lógica dialoga, avalia, aprende e orienta parcialmente este forte vínculo que nos toma e nos lança, mas não o controla. Esta dimensão humana é mais aceita nas relações interpessoais da vida privada, mas é também muito forte no trabalho e na militância.

A conversão aos pobres, oprimidos e marginalizados inaugura outro tipo de relação para com eles que rompe com a tradição da filantropia burguesa e do trabalho social tradicional que se condoem com a sua situação de sofrimento, mas os veem como carentes e, por isto, funda uma relação de ajuda unilateral. Nesta perspectiva, é difícil haver diálogo profundo entre quem ajuda e quem recebe, que tende a ser visto apenas como recebedor. Quandodiálogo nesta situação, ele tende a ser uma estratégia pedagógica para convencê-lo de sua verdade ou para fazê-lo assimilar melhor a informação que se acredita ser importante para sua melhoria. A percepção de brilho e novidade fascinantes nos pobres e doentes abre a mente de quem deles se aproxima, motivado pela compaixão, para uma atitude reverente de escuta. Cria uma solidariedade que parece nascer das próprias entranhas. Trata-se de uma realidade, usualmente ironizada por quem acredita se guiar apenas pela razão lógica, mas que é uma experiência frequentemente relatada na sociedade, apesar de nem sempre ser ressaltada.

O encantamento com o vigor humano, que de forma surpreendente se manifesta em situações tão precárias, aponta para um conceito de justiça social diferente do habitualmente referido entre as pessoas envolvidas nas políticas sociais que enfatizam a superação das desigualdades sem valorizar as importantes contribuições proporcionadas pelo diálogo entre setores tão desiguais para a construção de uma sociedade alegre e solidária. Funda também uma ética em que o dever e a obrigação de ajudar e de militar é substituída pela paixão e o encantamento de ajudar e de militar


Este e outros textos estão sendo debatidos na Lista de Discussão "Dialogando". Se você quer participar destas conversas, entre nesta Lista, mandando um e-mail em branco para:  dialogando_subscribe@yahoogrupos.com.br   

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