Eymard Mourão Vasconcelos
Para entender o estranho vínculo e compromisso de muitos profissionais com os excluídos da sociedade.
O
termo conversão usualmente é compreendido como passagem de uma crença para
outra ou de uma religião para outra. Também é comum entendê-lo como aceitação
de uma missão divina que reoriente totalmente o modo de viver. O teólogo
Richard Schaull, um dos precursores da Teologia da Libertação e da Educação Popular
e que atuou em vários países da América Latina na segundo metade do século
passado, usava o termo conversão em um sentido diferente (Cesar e Shaull,
2001). Referia-se a ele para expressar um processo de mudança pessoal radical
do modo de entender e olhar o mundo e de pensar a solução dos seus problemas e
os projetos para o futuro. Para ele, a conversão mais importante e central para
esta sociedade, marcada pela intensa desigualdade e exploração, é a conversão à pobreza. Ele usou este termo
para expressar um fenômeno subjetivo que via acontecendo, desde a década de
1950, em muitos profissionais, militantes políticos e religiosos que passavam a
conviver intensamente com as classes populares e começavam a colocar a questão
da pobreza como ponto central em suas vidas, de uma forma em que todas outras
dimensões de seu trabalho, vida pessoal e inserção política ficavam
reorientadas por ela.
Esta
conversão ocorre entre pessoas vindas das classes médias e das elites da
sociedade, setores que usualmente percebem as classes populares de forma
pejorativa. Na convivência intensa com a pobreza, por razões de trabalho
profissional, militância política ou missão religiosa, vão descobrindo a
riqueza de sua cultura e de seus esforços para superação de sua situação.
Encantam-se com sua dinâmica de vida, criam intensos vínculos afetivos e passam
a assumir suas lutas como se fossem próprias. Vão abandonando suas concepções
anteriores de que a solução dos problemas da sociedade passa pela generalização
dos valores, saberes, modos de viver e projetos políticos presentes nos seus setores
mais eruditos e ricos. Deixam de lado, então, a ênfase mais usual dos que
aproximam dos pobres para trabalhos educativos e sociais: a conversão dos
pobres. Esta última expressão
ressalta a perspectiva mais comum entre militantes, religiosos e trabalhadores
das políticas sociais que se aproximam dos pobres para convertê-los a projetos,
valores e hábitos de vida elaborados fora de seu meio. A cada época, novos projetos
civilizadores, emancipadores e humanizadores, cada vez mais modernos, sofisticados
e “científicos”, vão sendo produzidos e difundidos pelas vanguardas políticas,
religiosas e intelectuais para serem generalizados, de cima para baixo, por
toda a sociedade. A conversão aos
pobres é uma inversão desta atitude. Pressupõe estar com eles para, em
processos dialógicos e amorosos, produzir junto novos caminhos para a
sociedade.
Victor
Vicent Valla foi quem primeiro trouxe este conceito para o campo da saúde. Ele
foi um historiador norte americano que chegou ao Brasil em 1964, como missionário
religioso. Aqui, ficou abismado com a pobreza tão amplamente presente. Percebeu
logo a complexidade dos caminhos de superação, mas sentiu muito mobilizado para
permanecer junto a ela, mesmo não sabendo bem o que era necessário fazer. Abandonou
a vida religiosa e se dedicou a vida acadêmica, onde sempre se manteve focado
em estudar aspectos que marcavam a pobreza. Apesar de ter se tornado um
intelectual muito prestigiado e com múltiplos convites para participação em
eventos científicos, nunca se afastou da convivência com o mundo dos pobres,
oprimidos e marginalizados. Era pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Osvaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e foi um dos pioneiros do
movimento da educação popular em saúde. Faleceu em 2007. No final de sua vida,
passou a falar repetidamente sobre este processo de mudança profunda de sua
vida causada pelo convívio com a pobreza. Seu último texto publicado foi
justamente sobre o significado da conversão à pobreza na saúde pública e na
educação popular (Valla, 2007). Sua vida foi um exemplo vivo deste fenômeno.
O
conceito de conversão à pobreza pode ser hoje ampliado para conversão aos
pobres, oprimidos e marginalizados. Não é só a pobreza que define a exclusão
social, que tem muitas outras facetas. Assistimos, na última década, a uma
expressiva diminuição da pobreza na sociedade latino americana, tornando mais
significativas estas outras facetas da exclusão social.
Trata-se
de um conceito que ajuda muito a entender o que vem ocorrendo com inúmeros
trabalhadores do setor saúde cuja prática com os pobres, oprimidos e
marginalizados não é bem explicada por conceitos como altruísmo ou dedicação
abnegada. Eles são movidos muito mais
por um fascínio com o surpreendente dinamismo e vitalidade presentes nestes
grupos sociais quando se cria espaço para uma relação igualitária e
respeitadora de seus saberes e valores. Suas atuações são mais explicadas por
um vínculo amoroso do que pelo dever. Não se trata de algo estranho à cultura
do mundo ocidental. Personalidades significativas na história expressaram esta
perspectiva subjetiva.
A história da figura de São
Francisco de Assis é exemplar e tem grande repercussão no imaginário ocidental,
pois foi escolhido, em 1999, em toda
Europa, como a maior
personalidade europeia do
II Milênio. Em quase todos os países do mundo, neste ano, foram feitos processo
de consulta para escolher a personalidade do século que terminava. Na Europa,
fizeram também a escolha da personalidade do milênio que terminava. São
Francisco, nascido no final do século XII, era filho de um abastado
comerciante italiano, fazendo, então , parte da burguesia nascente . Teve uma juventude
de muitas festas e despreocupação .
Mas , de repente ,
seus amigos
começaram a notá-lo muito quieto . Eles lhe perguntam: - Você
sempre era
o líder das nossas festas ,
das nossas cantorias noturnas, por que agora você se retira ? Ele
responde: -Encontrei uma dama maravilhosa , lindíssima, brilhante !
Estou enamorado, apaixonado por ela e tenho dor
de amor ... Eles
voltam a perguntar : - Qual foi a moça que você encontrou? Francisco lhes
responde: - Encontrei a Dama Pobreza ,
a Senhora Pobreza .
Fiquei tão fascinado que vou abandonar tudo para fazer
o esponsório com a Dama
Pobreza . Sua profunda transformação, que lhe
trouxe nova motivação e um novo sentido para sua vida, se deu através do encontro com a pobreza
e particularmente com
os leprosos . Em seu tempo , os leprosos causavam enorme pavor pelo medo de contágio e
eram totalmente rejeitados. Andavam com uma campainha
dependurada no pescoço para
alertar às pessoas
que era
necessário se afastarem, pois estavam chegando. Francisco, durante suas frequentes crises
pessoais , buscava o acolhimento
dos leprosos para
se recompor . O cristianismo
assume importância maior
em sua
vida a partir
da sua relação com a pobreza
e os doentes (LELOUP & BOFF, 1997,
p.31-34).
A importância da experiência deste forte vínculo encontrado na relação igualitária com os excluídos é repetidamente referida por profissionais de saúde quando
se cria um ambiente de comunicação em que
dimensões subjetivas sutis podem ser expressas.
O termo conversão remete para a importância das dimensões
subjetivas inconscientes nos processos de tomada de decisão e envolvimento com
tarefas e projetos. Não somos apenas o que nossa consciência clara e lógica
decide. Há uma inteligência e uma forte emoção que ficam abaixo da linha d’água da
consciência lógica e de nossos conhecimentos claramente definidos. Apaixonamos
e nos vinculamos fortemente com pessoas, comunidades e causas. Por elas, somos
capazes de enfrentar duros desafios e aguentar sofrimentos. Suas conquistas e
alegrias nos satisfazem profundamente. A inteligência lógica dialoga, avalia,
aprende e orienta parcialmente este forte vínculo que nos toma e nos lança, mas não o
controla. Esta dimensão humana é mais aceita nas relações interpessoais da vida
privada, mas é também muito forte no trabalho e na militância.
A conversão aos pobres, oprimidos e marginalizados inaugura outro tipo de relação para com eles que rompe com a
tradição da filantropia burguesa e do trabalho social
tradicional que se condoem com a sua situação de sofrimento, mas
os veem como carentes
e, por isto ,
funda uma relação
de ajuda unilateral .
Nesta perspectiva , é difícil haver diálogo profundo entre quem ajuda e quem
recebe, que tende a ser
visto apenas
como recebedor. Quando há diálogo
nesta situação , ele
tende a ser uma estratégia pedagógica para convencê-lo
de sua verdade ou para fazê-lo assimilar
melhor a informação que
se acredita ser importante para sua melhoria. A percepção de brilho
e novidade fascinantes
nos pobres
e doentes abre a mente
de quem deles se aproxima, motivado pela compaixão ,
para uma atitude
reverente de escuta . Cria uma solidariedade que
parece nascer das próprias entranhas .
Trata-se de uma realidade , usualmente
ironizada por quem
acredita se guiar apenas pela razão lógica , mas que é uma experiência frequentemente
relatada na sociedade , apesar
de nem sempre ser ressaltada.
O encantamento com o vigor humano ,
que de forma surpreendente se manifesta em situações tão precárias, aponta para um conceito de justiça social diferente do habitualmente
referido entre as pessoas
envolvidas nas políticas sociais que
enfatizam a superação das
desigualdades sem valorizar
as importantes contribuições
proporcionadas pelo diálogo entre setores tão desiguais para a construção de uma sociedade alegre e solidária .
Funda também uma ética em que o dever e
a obrigação de ajudar e de militar é substituída pela paixão e o encantamento
de ajudar e de militar.
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