Lá onde a luz do último lampião
Uns tristes charcos alumia embalde,
Moram, numa infinita solidão,
As estrelinhas quietas do arrabalde...
Mário Quintana
Carneirinho, carneirão-neirão-neirão,
Olhai pro céu, olhai pro chão, pro chão, pro chão...
Cantávamos em roda. Na canção, o rei pedia para ajoelhar, sentar, deitar e se levantar a cada um desses mandos, que todos obedecíamos, inquietos. Penso nisso enquanto o avião chacoalha. Vem o medo de estar tão alto, o medo de estar tão à mercê de outros que não sei quem são, o medo de não ter onde se segurar nem para onde fugir.
No limite, fecho os olhos. Prometo um dia melhor, um sorriso maior, só palavras boas e carinho aos que amo. Prometo rezar mais, comer mais salada e menos chocolate. Prometo não adiar uma conversa, não poupar elogio, pensar mais antes de reclamar ou criticar e me manter esperançosa e íntegra. Quando pisar no chão...
Prometo soltar todos os pássaros engaiolados, plantar uma planta que dê flor, outra que dê fruto, outra que dê sombra e mais uma só para o vento balançar. Prometo prestar mais atenção aos meus passos, às minhas pausas, aos meus cansaços e às minhas preguiças. Prometo mais sonos em redes, em gramas, em colos...
Prometo mais banhos de chuva e na chuva, mais beijos. Prometo mais lampiões e menos holofotes, mais palavras na madrugada, mais janelas abertas e mais tempo para a boa solidão que ensina. Prometo mais vento no rosto, mais noites nas ruas e nas ruas, mais mãos dadas. Prometo mais arte, mais cor, argila nas mãos. Quando pisar no chão...
Olho para baixo e vejo a minha cidade chegando. Alívio.
Luzes bem de longe parecem estrelas no céu. O céu e o chão se parecem. Estrelas e luzes de carros, de casas, de postes, de vidas. O mundo corre enquanto as luzes se aproximam. Pessoas como eu, fazem promessas, cumprem, descumprem. Crianças nascem. Um filho morre. Casais se conhecem, se estranham, se unem, se afastam, se amam e deixam seus amores irem, morrerem, aos pouquinhos.
Mentiras, verdades e revelações. Fogueiras são acesas e cinzas são jogadas ao mar. Alguém cala. Alguém fala e ambos mudam os rumos, fazem infinitos ou rompem momentos. Um verso primeiro de quem aprende a ler. Uma carta amassada de quem não quer lembrar. Uma passagem para visitar o passado. Uma chave de abrir futuros. E o presente em angústias e esperanças nascendo e se pondo com o sol.
O dia passa rápido. A noite é veloz. A vida é curta. Olhai pro céu, sonho, imensidão. Olhai pro chão, pedra, verdade. Estamos no meio. Somos o recheio dessas luzes distantes. Esperando que nossas orações nos protejam, nos guiem, nos encontrem em alguma luz apagada, perdida no meio da brincadeira da vida, da cantiga de roda.
Dia seguinte e já estou cá embaixo. Lida. Chão. Noite. Passo pelo centro, mercado, rua, sina, sinal de trânsito, parada de ônibus e me vejo caminhando entre as luzes que já vi de cima. Olho o céu e vejo o avião que passa buscando pouso. Lembro o medo e as promessas, as pequenas revoluções planejadas. As grandes histórias para contar e viver.
Todos os dias, nas caminhadas que nos fazem esquecer de nós, que não nos façam esquecer da ciranda que termina, da vela que se apaga, das marcas que se somem. E de tanta noite, que fique a luz do céu, do chão, no chão... perdida entre as pedras. As pedras, as perdas, as promessas caídas do céu, do avião. Promessas, essas... ah! Recolho, junto, afago e coloco nas tuas mãos: guarda contigo, leva, no peito, leva, no passo, leva...
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