Ermande Valentin
do Prado
Uma câmera na mão
Como numa cena
de filme de arte: o close está fechado nos lábios vermelhos e úmidos da mulher
que repete enquanto a câmera vai se afastando: olha aqui, ela ainda está
respirando. Ela só tem 20 anos, é minha amiga, ainda está respirando... A câmera
começa a se afastar, começamos a ver o corredor, onde há um corre-corre de
pessoas de branco, cadeiras de rodas e macas ocupadas, gente sentada
esperando... e lá no fundo, ficando cada vez mais longe, uma mulher ajoelhada
do lado de um corpo.
O peso da lágrima
Miriam poderia
dizer uma verdade qualquer. Bastaria escolher a mais apropriada para o momento,
mas preferiu ficar calada.
De seus olhos
brotaram lágrimas tão grossas e pesadas que pareciam poder afogar o mundo.
Também tive
vontade de chorar, mas justamente naquele momento parecia provocação.
P.S.
A criança começou a tremer... devia estar entrando
em choque. Alguém grita pelo médico. A mãe está desesperada.
Quando ela começou a sangrar, eu sabia que não ia
parar mais... A mãe agarrou em meu braço e gritou: faz alguma coisa pelo amor
de Deus.
DOI-CODI
Para
Eduardo Kruschewsky, pai de uma amiga de luta
Ainda lembro...
Apesar
de todo esforço que fazem para me fazer esquecer.
Lá
A lembrança mais antiga que tenho é de um vizinho de infância que
apanhava do pai até sangrar.
Um dia, na
escola, olhando as suas feridas, as manchas vermelhas e roxas, perguntei por
que seu pai lhe batia tanto. E ele respondeu, demonstrando (nos olhos) muita
pena:
- Não existe ninguém mais fraco em quem meu pai possa
se vingar das surras que o mundo lhe dá.
Na época não entendi o que aquilo significava (nem
sei se entendo hoje), mas as palavras dele, e principalmente a pena na sua voz
(e nos olhos), nunca saíram da minha cabeça.
O mundo é um lugar perigoso demais.
Lâmina
Você
sabe o que é levantar de manhã para ir trabalhar e na esquina de sua casa
encontrar um cadáver com 32 tiros?
Eu sei, e
o que se sente nesta hora não é manchete de jornal, nem traduzido em novela. Nem
os programas policiais parecem entender. Não há livro de sociologia que consiga
explicar... O meu depoimento não passa nem perto de expressar tamanho horror.
República
Um barulho seco, abafado, muito alto. De repente, senti uma queimação
muito forte na barriga, uma umidade quente correndo pelas pernas. Uma vontade
de parar de resistir e dormir.
Um frio percorreu meu corpo. As pernas bambearam e caí
de joelhos. Depois debrucei na terra seca.
Deitado fiquei. Antes das
vistas escurecerem de vez, ainda vi os homens sumindo na distância da estrada.
Violência (quase) gratuita
A
primeira pergunta que ele se fez foi: porque não mato esse taxista e não tomo
todo o dinheiro de sua noite de trabalho?
Eram 6 horas da manhã e ele não achou uma
resposta satisfatória.
Subúrbio rap
Talvez nem saiba ainda, mas vai morrer hoje.
E não há nada que possa fazer para evitar.
Ninguém pode fazer nada.
Já foi decidido.
Irritação
Acordo às 4 da manhã. O café já acabou, por isso tomo
um copo de água para disfarçar. Pego o coletivo lotado, pois sei que não
adianta esperar o próximo. Quanto mais cedo eu chegar, mais chance tenho.
Já no ônibus, tenho que aguentar um monte de desaforos; pessoas
irritadas com essa situação. O aperto e a falta de espaço para ser gente. (Sou
um monstro, mas disfarço bem, até não aguentar mais)
Chego às cinco
horas na empresa que veiculou o anúncio pedindo funcionários, a fila já está
enorme, mais ou menos umas 70 pessoas. Devo ser a 71. Que inferno. Será que
isso algum dia terá fim? Fico horas esperando na fila, são 7h20 e só agora
chegou a minha vez. Só havia uma vaga e um estudante de engenharia ou
psicologia a havia preenchido. Eu não tinha a mínima chance mesmo.
Tenho vontade de quebrar tudo que está ao meu alcance, encher a cara do
entrevistador de bolachas, mas me disseram que isso é falta de educação, é
selvageria, porém o que é ser civilizado? Aqui não tem ninguém em condições de
ter tal privilégio.
Volto para casa desacorçoado da vida, já não sei mais o que fazer, estou
irritado e na falta de alguém abaixo de mim, chutei o cachorro... quase nada
mudou.
A barriga ronca, tomo uma pinguinha para abrir o apetite, mas nem sei se
vou ter o que comer hoje. Ligo a tv. Já vendi muitas coisas, mas a tv ainda não.
Vejo a garrucha em cima do armário. Na tv o governo que nós elegemos faz
um balanço do primeiro ano de mandato. Penso em me matar. A garrucha é a única
herança que meu pai me deixou.
Isto é mesmo o fim, vendi as balas ontem, para comprar pão.
Só agora
-
E agora, o que você vai fazer?
-
Vou tentar viver sem você...
-
Acha que vai conseguir? Você já tentou isto antes...
-
Vou tentar de novo.
-
Tem certeza que é isso que você quer?
-
Agora é, amanhã não sei...
-
E como vai ser?
-
Vou pra casa, te esquecer,conhecer outra pessoa, me casar e ter nosso filho.
-
...
-
E você?
-
...
-
Não vai fazer nada para me convencer a ficar?
-
Tem alguma coisa que eu possa fazer para te fazer mudar de ideia? Alguma
coisa que eu diga vai te fazer ficar?
-
Não.
-
Então não adianta dizer nada.
-
Por que você não tenta ao menos?
-
Você já disse que não vai mudar de ideia...
-
Mas você podia pelo menos tentar. Hoje eu tenho certeza que quero tentar
viver sem você, amanhã não sei se ainda vou estar pensando assim.
-
...
-
...
-
Eu vou pegar este ônibus, me trancar em casa por três dias e chorar... depois,
vou relembrar todos os nossos momentos
bons nestes anos, ter vontade voltar (mas vou chorar). Vou relembrar os
momentos ruins e te chingar e (chorar mais), então, vou sair e passar um ano e
meio deprimido, comparando você com todas as outras mulheres do mundo, aí,
vou gostar de alguém, namorar, noivar, romper... Pensar em você e ficar
deprimido (de novo). Neste espaço de tempo vão me dizer que você está com o
casamento marcado, depois que está grávida, que teve uma filha...
-
...
-
...
-
Tchau...
-
...
-
Me esquece...
-
Você também.
Mulheres
I
Daqui a pouco
ela vai chegar
(e como sempre
faz),
vai sorrir e me
beijar de leve os lábios.
Não sei se por
causa de seu sorriso maravilhoso ou por qualquer outro motivo que me foge a
compreensão,
vou fingir não
perceber seus mais de 40 minutos de atraso.
II
Eu vinha
descendo a rua e vi uma mulher linda caminhando em minha direção. Sem alterar o
passo ela me deu uma boa olhada.
Deve ter
pensado: não vale a pena.
III
No corredor,
aquela mulher linda de deixar qualquer um petrificado me deu a honra de ser
olhado. Carinhosamente deteve seus olhos no meu rosto...e pela expressão pensou:
não o conheço.
VI
Quando eu era
adolescente, mudaram-se duas irmãs gêmeas para a vila. Peles tão negras
quanto a noite sem luar na floresta. Olhos hipnóticos, fala doce.
Lindas...lindas...lindas,
como nunca mais vi igual.
Quer dizer: a
Néia era tão linda que chegava a dar uma coisa ruim na gente. Quando a via na
rua ficava paralisado.
A beleza da
Cléia já era mais normal e não incomodava tanto.
Como quase sempre
acontecia na vila (mas desta vez foi pior), Néia ficou grávida e não sobreviveu
para se tornar uma mãe linda.
Fotos – Ernande
Revisão de texto – Cecília Mano.
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