
Nossas viagens a Senador Pompeu, terra dos meus avós paternos, eram frequentes e cansativas. Já perto, as cores mudavam e víamos as plantas secas, a paisagem cinza. O pai sintonizava a Rádio Sertão Central que basicamente tocava Luiz Gonzaga e, bem perto, antes de chegar na cidade, tinha uma curva grande que o pai chamava a última curva. Quando a gente passava na última curva, ele gritava: “a úúúúúúltimaaaaaaa curvaaaaaaa!!!!”, buzinava e cantava um “lararaiá” com o mesmo impacto, para nós, que a música da vitória do Airton Senna.
Finalmente, chegamos na casa da vó e do vô! Ao chegar e ao sair, o ritual das bênçãos aos dois e ficava maravilhada ao ver o pai fazer o mesmo. Via meu pai ser filho também. Éramos, então, todos iguais perante aqueles dois velhinhos.
Quando nasci, vó Maria Amélia já era velhinha. Teve meu pai aos 45 anos, último e décimo quinto filho, nascido logo depois da morte de um filho padre, amado e que morreu de tuberculose aos 21 anos. Vó teve tristeza muita e gripe espanhola. Assim, não pode cuidar e amamentar meu pai nos primeiros meses e ele diz que teve ama de leite. Obviamente, meu pai herdou o nome do irmão falecido. Irmão que frequentemente ele visitava e colocava flores sem nunca ter conhecido. A vó levava ele junto desde pequeno, para as visitas. E ele, o pai, depois, nos levava para conhecer o túmulo do irmão que tinha dado seu nome, antes de morrer.
Os nomes...
Tenho o nome dela. Ser Maria Amélia era um plano de antes de eu pensar em existir. Não havia nenhuma neta Maria Amélia e acho até que tinha alguma disputa de afetos de irmãos, os oito que restaram de uma realidade de mortes antes de 1 ano de idade, mortes mais maduras de doenças evitáveis, violências sem sentido... Vida curta que nem vira estatística, pois nem chega a existir, sem registro.
E vó Maria Amélia viveu muito além que a maioria dos filhos. Ninguém sabia o quanto porque ninguém sabia ao certo a idade que tinha: 95, 99, 100, 105... Tinha nascido em um ano e sido registrada em outro e nem sequer sabia se aquele dia era mesmo o dia que tinha nascido. Filha de vaqueiro do sertão que fazia versos e receitava chás, ainda lembro dela recitando algumas palavras de seu pai, na sua inconfundível voz rouca.
Vó Maria Amélia dormia de rede, mascava fumo de rolo, tinha cheiro de água de colônia e fazia um macarrão barato e simples ser a melhor refeição de uma criança. A casa da vó tinha um quintal imenso, tinha um pilão de pilar café e paçoca nos fundos, tinha um galinheiro, um quarto “proibido” com coisas estranhas – um arado grande, enxada, ancinho, pás e coisas de trator, além de um fantasma, é claro. Tinha um cacimbão assassino de pintos e, conforme a mãe, cheio de cobras em volta. Era cheio de árvores pra subir e coisas proibidas para se aventurar a mexer.
A casa da vó era um mundo mágico de personagens mágicos. Tinha o Juvenal, homem de pés enormes, era “curado”, não morria de picada de cobra e era o único que limpava o mato na volta do cacimbão, porque era protegido. Tinha a Maria Pilão, negra, velhinha, pequenina, magrinha que vivia de pilar café nos quintais. Ela era o próprio grão de café. Tinha o Chico Rouco que de tão feio, seu esporte era aparecer no portão e nos assustar. Fui aprendendo a enfrentar o Chico até o momento em que ficamos amigos e ele me dava até bala pipper.
A casa da vó tinha história. Uma vez o pai tirou o chapéu de palha do primo Odésio deixando à vista a careca lustrosa dele e atirou o dito chapéu no alto do galho da acácia amarela que tinha no jardim. Essa acácia floria lindo e sempre tinha gente pedindo flor para levar, principalmente em finados. A vó sempre deixava. O Odésio também tinha uma casa mágica com uma laranjeira que nascia dentro de casa e furava o teto. Assim, as laranjas nasciam em cima da casa e a gente precisava pular no telhado pra pegar. Eram as laranjas mais saborosas da minha infância.
A “casa velha” como chamam, tinha um alpendre lateral de ladrilhos vermelhos. Tinha a parte da frente, com piso de cimento, cheia de cadeiras, algumas de balanço, algumas com assento de couro de bode. Mas tinha umas cadeiras de balanço daquelas tiras de plástico coloridas que marcam as costas e coxas. Essas eram as minhas prediletas... Sim, porque as conversas iam até tarde e eu dormia nessas cadeiras o melhor sono do mundo, deitada meio torta, ventinho fresco de sertão, todas as vozes contavam histórias. Desde então, adoro dormir com gente falando.
E tinha o pé de estrela, flor predileta da vó. Simples, branquinha como eram os cabelos dela. O cheiro era suave e por mais que a mãe tentasse, nunca conseguiu fazer muda. Era mesmo única, não tinha igual e ninguém nem sabia quem tinha plantado. Era uma estrela de quatro pontas de meio palmo, sem mais nenhum enfeite. Mas os frutos eram cilíndricos e o pai dizia que eram carneirinhos. Assim, embaixo do pé de estrela, a gente “tocava” rebanhos e rebanhos de carneiros e seus filhotes. Fazíamos aventuras e até transportávamos em um velho caminhão de madeira e lata de óleo.
Eu sempre dava uma “estrela” para a vó. Ela não era de mostrar carinho, mas ficava toda dengosa. Tinha um humor ácido e resposta na ponta da língua. Ria muito de si mesma, muito. Fechava os olhos e ria balançando a cabeça como não se perdoando de alguma bobagem dita. Repetia as histórias, mas nunca as contava do mesmo jeito. Tinha histórias boas como a que estava conversando e contando uma de suas aventuras e, no meio, entrou um pinto na sala. A porta do galinheiro tinha quebrado. Ela parou e olhou seriamente para o pinto e perguntou: “e de onde veio este?”. Todos riram dela e em seguida, ela ria dela mesma.
Mal aprendeu a ler com o carvão do fogão de lenha que riscava preto a parede. Era curiosa, não falava da juventude ou de um tempo bom que passou. Mas gostava do “tempo de hoje”, das novidades. Gostava de cerveja e de picolé. Gostava de movimento e nunca esqueceu da viagem que fez ao Rio de Janeiro e foi a um museu e viu Dom João VI de cera saindo do Brasil com um punhado de terra. No fim da vida, confusa, dizia, comovida, que viu Dom João saindo triste do Brasil com um punhado de terra. Eu me impressionava. Acreditava nela.
Passou a vida tentando escapar da mesmice, da vida árida do sertão, da comida sem tempero, da falta de sobremesa e de festa, da brutalidade dos homens, da partida e morte dos filhos. Quando tinha alguma novidade nas mãos, os perfumes e doces presenteados por netos e filhos, ela considerava valioso e trancava em um cofre. Cofre que só abria pra mim...
Por ser Maria Amélia, eu era a neta predileta, sem nenhum disfarce. Quando eu chegava, ela me pegava pela mão, sob o olhar ciumento das minhas duas irmãs e me levava devagarinho pelo corredor comprido da casa, se apoiando na parede e, sem dizer nada, abria o cofre e me entregava “seus” presentes. Era o que tinha de mais valor. Às vezes, me sentia com uma responsabilidade imensa de ser a predileta, de ter o nome de uma pessoa tão forte, tão sofrida e com tantas histórias.
E nesses tempos de páscoa, lembro com carinho de um ovo de chocolate que ela me deu, acho que pela metade porque tinha saboreado, um pouco derretido pelo calor e nem me lembro se o gosto era bom... Sim, eram guardados no cofre. Uns diziam que era porque as empregadas acabavam comendo, mas eu entendo que era mais, era por serem valiosos. Por em idade tão elevada, finalmente, ela ter tido o luxo de um ovo de chocolate na páscoa, um agrado, um brilho, uma festa. Festa que guardava com segredo que só ela sabia, para dividir comigo.
Vó Maria Amélia se foi lúcida, em casa, se despedindo de cada um que estava ao seu lado. A casa velha virou restaurante. Arrancaram o pé de estrela. O pai herdou o cofre que apodreceu após uma enchente em Pelotas. Os personagens não devem mais existir e fico curiosa com o quarto do fantasma, a acácia que abrigou o chapéu do Odésio, o fogão a lenha, o pilão, os ladrilhos vermelhos, o galinheiro, o cacimbão assassino de pintos, as árvores... Voltar lá talvez fosse um erro. Talvez pouco exista daqueles fins de semana aventureiros com direito até a visita ao túmulo do tio com o nome do pai: primeiro cemitério da minha vida.
Sim, de Senador Pompeu e da vó Maria Amélia e sua casa, seu corredor longo, sua vida longa, aprendi o mais misterioso e o mais árduo da vida. O mais sofrido e o mais simples, traduzido em flor branca com cheiro de leite de colônia. As fantasias e novidades coloridas trancadas - metade de um ovo de páscoa já meio derretido - em segredo, porque de valiosas, elas fogem rápido, tal qual a vida. Vai rápido que nem passar a grande volta na estrada. Ela, a última curva, a que fazíamos festa quando atravessávamos, chegando, e ficávamos em silêncio quando partíamos.
[Maria Amélia Mano publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]