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02 maio 2018

Porque os sinos dobram



“Preocupar-se é tão mau como ter medo. Só serve para tornar as coisas mais difíceis.” - Ernest Hemingway

- Doutora você já sentiu o cheiro da morte?
- ... Por que?
- Eu senti bem pouquinho na mãe mas depois foi embora. Mas agora está vindo de novo.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

20 dezembro 2017

Onze e meia

Ruralices. Foto: Mayara Floss
O conflito familiar na casa de interior era sério. Ex-esposa, plantação de milho, vacas para tirar leite. Mas, depois do AVC do companheiro ele não queria mais sair de casa. Já há mais de um ano de companheira para cuidadora oficial, ela já dizia repetidamente: “Não aguento mais”.
Entre conversas descubro um grande motivo de chateação, ela ia perder o casamento da sobrinha. Pergunto porque não ir, ele muito teimoso diz:
- Não, é muito long -.
Ela já com o vestido pronto, com a carona arrumada, tudo organizado, balança a cabeça. No final, decido prescrever na receita: “Ir no casamento da sobrinha”.
Ela pendurou feliz na porta da geladeira, destemida.

Hoje eles vieram até a unidade e perguntei:
-Foram ao casamento?
Ele responde feliz:
- Fomos!
Sigo:
- E como estava? -.
- Muito bom, nunca mais um casamento como aquele. - Ela sorri e diz: - Nunca mais.
Ela emenda:
- A gente não se sentiu pequeno, se sentiu gente, foi muito bom. .
Pergunto:
-Ficaram até o final?
Eles estufam o peito:
- Até às onze  e meia!

Abraços que pousam,
Mayara Floss

13 dezembro 2017

Sonhos e oxigênio

"Se cada dia cai, 
dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

Há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência."
Pablo Neruda

- E você tem ainda algum sonho? - Pergunto para a paciente com oxigênio e muita dificuldade para respirar.
- Sonho, sonho eu não tenho… - ela diz.
- Hmmmmm… - espero nas reticências e ela responde:
- Eu queria até procurar um namorado, mas eu assim desse jeito não vai dar. - e aponta para o os tubos do nariz com um riso largo e risada alto, apoiando-se com as duas mãos no sofá e caindo a saturação de oxigênio.

Não importa, ri da sua doença, ri para a vida, na transcendências dos caninhos e caminhos do tubo de oxigênio.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

13 setembro 2017

Raízes

Imagem retirada da internet. 

Nas conversas no interior de Pinhalzinho meus primos e tios riram lembrando de uma história de quando era pequena, ali pelos dez anos . Minha tia me mandou dar comida para o porco, um balde cheio de soro de leite que tinha sobrado do cuidado com o leite naquela manhã depois de eu ter participado da ordenha das vacas, num daqueles chiqueiros arranjados em cima do açude, tinha uma trilha estreita de diferentes tipos de madeira (recicladas de outras  construções), algumas pintadas de azul descascado, outras sem pintura, o açude me olhava enquanto equilibrava um balde bem grande que certamente para o meu tamanho eu podia quase caber dentro. 

Eu puxando com as duas mãos consegui levar o balde até à frente da porta do chiqueiro. O porco já começou a fungar de animação e eu pensando em algo como os desenhos animados da época "Cocoricó", sem entender que aquele porco estaria no prato depois. Enfim, olhei para o porco sem maldade e como não conseguia elevar o balde acima da minha altura para jogar no cocho, decidi que seria uma boa ideia abrir a porta do chiqueiro. 

Acabamos eu, o soro de leite e o porco no açude. Minha prima, da mesma idade que eu, confessou aos risos que jogava metade do soro de leite fora antes de dar para o porco para conseguir levantar o balde e dar ao porco. 

Eu e o porco fomos socorridos por meu tio  no meio do açude.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

07 junho 2017

Silêncio

Foto: Art veins



‘Quando se trata de uma visita ao médico, o paciente tem uma média de 23 segundos para informar suas preocupações antes do médico interromper. No geral, apenas 28% dos médicos conhecem o espectro completo de preocupações de seus pacientes antes de começar a se concentrar em uma preocupação particular e, uma vez focada a conversa, a probabilidade de retornar a outras preocupações é de apenas 8%.” (Marvel et al. 1999)[1]


E quando não interrompemos a fala, mas interrompemos o silêncio?

O médico perguntou:

- Como você está?

Passaram-se trinta, quarenta, quase um minuto enquanto a paciente muito idosa mexia na manga do casaco, sem parecer entender, alheia a consulta, após a filha ter saído para buscar um exame, até que muito vagarosamente ela levanta os olhos e encara o médico.

- Eu sinto uma agonia por dentro.


Abraços que pousam,
Mayara Floss



[1] Marvel MK, Epstein RM, Flowers K, Beckman HB. Soliciting the patient's agenda: have we improved? JAMA. 1999;281:283–287.

20 julho 2016

Roupa suja



- Doutora, preciso da alta..
- Mas agora? Ainda estamos iniciando o seu tratamento...
- Mas eu preciso dar alta... Não posso ficar baixada...
(... silêncio...)
- Posso perguntar o que aconteceu?
- Meu marido doutora, meu marido disse que chega desse negócio de hospital, estou com medo que minha filha fique sem roupas para usar...
(um suspiro)
... preciso voltar ... para lavar a roupa.

Mayara Floss

04 maio 2016

Crack e Chocolate




Em um desses dias de plantão uma paciente, entre tantas outras, em trabalho de parto de uma criança prematura e "usuária de crack". Sem pré-natal, sem documentos, sem familiar, sem acompanhante, quase sem roupa. Tudo acontece muito rápido não deram nem dez minutos. Ela após o parto ajoelha-se no chão para rezar pela filha que nasceu. Fica na sala de recuperação do parto chorando desconsolada. Eu indo e vindo com uns papéis decido entrar no quarto, colocando de lado meu turno de sono para conversar com ela. Toco no ombro e peço se ela quer conversar, ela vira-se, chora e diz: "é tudo culpa minha". Eu só escuto, a história, o filho perdido, o ex-marido, a vida que se costurava entre as lágrimas. História doida. Começamos a conversar e de repente a barriga dela  "fala mais alto". Ela coloca a mão na barriga e confessa: "Não como há três dias, fui vender crack para conseguir comida e acabei usando" - respira fundo e diz - "é sempre assim". A copa já está fechada, estamos adentrando a madrugada e insisto para conseguirmos algo para ela comer, pergunto se posso dar um chocolate que eu tenho, a enfermeira dá de ombros com um "sim". Levo meu chocolate para ela, ela dá um pulo da cama, "Eu adoro chocolate, faz tanto tempo que não como um". Eu sorrio ela lê a embalagem: "Sem açúcar, sem leite, sem glúten" e ela diz para mim "essa coisa é porque quer emagrecer?" eu digo que "não" e rimos juntas com uma certa cumplicidade entre nós. Os olhos castanhos com um brilho verde ao comer o chocolate. Nós duas, tão mulheres, tão humanas, tão chocolate.

Voam abraços,
Mayara Floss


30 março 2016

Relógio de cebolas [Mayara]



- Quanto tempo a senhora demora para começar a sentir dor?
- O tempo de cortar uma cebola.
- Como assim?
- É doutora, o tempo de descascar e picar uma cebola.
- Hmmmm..
- Ontem mesmo, eu só consegui picar meia cebola e já me deu dor.
- Entendi, e a medicação está ajudando?

- Ajuda, dá tempo de três cebolas...

Voam abraços,
Mayara Floss

* Imagem http://www.freepik.com/  

16 março 2016

Conversa em quadrinhos [Mayara]

Para Júlio

A evolução clínica foi sobre quadrinhos,. Mas nada de quadrinhos Marvel ou grandes quadrinhos de super heróis. Foi Mickey, Tio Patinhas, Tex e Turma da Mônica. Entrei no quarto e vi a revistinha do Mickey, prato cheio para conversa. No meio da anamnese que parecia mais conversa de clube de gibi perguntava como ele estava.

O que você gosta mais de ler? - ele disse.
Eu gostava de Turma da Mônica, mas meu primo tinha Tex, também li alguns.
Nossa eu adorava Tex! Bang bang tenho as edições antigas em casa.
Tudo certo para engolir?
Tá bem melhor, depois dos caninhos tá bem melhor. Sabe que eu acho as histórias antigas bem melhores? Esse último gibi que comprei tá bem menos emocionante.
Depois de falar dos gibis acabamos completando uma página de palavras cruzadas juntos.
Acho que aqui é “rinoceronte”.
 Você é boa nisso.
E com está para ir aos pés?
 Tá bem doutora agora que estou comendo está melhor.
Deixa eu ver aqui acho que é “esverdeado”, isso!
Agora ficou difícil.
Posso examinar o senhor?
Claro. Você gosta mais de palavras cruzadas ou caça palavras?
Palavras cruzadas.
Olha aqui (me apontando a revista) eu adoro também jogo dos 7 erros.
É muito bom.  Respira fundo e solta o ar pela boca.
Sempre vem pouco jogo dos 7 erros nas revistas, eu também gosto.
Dormiu bem?
Sim, tudo tranquilo quero ir para casa, logo vai faltar revista.
Entendo, eu te empresto mais se precisar.
Vai ser ótimo, mas me manda para casa.
Tudo bem, vou ver mas eu não mando nada.

Manda bem nas cruzadinhas doutora. 

Voam abraços,
Mayara


09 março 2016

Mandala [Mayara]


Da série internato

Olá, bom dia! Como estamos?
Indo.
Eu só vim visitar... Te dar um abraço... não estou mais acompanhando o caso.
Mayara, adoro quando você vem me visitar.
O que você tem feito?
Estou cansada do Hospital, mas comecei a pintar para me ajudar a passar a dor. A psiquiatra, não, não é psiquiatra, como é mesmo?
A psicóloga?
Isso. Ela vem me visitar e traz esses desenhos, estou pintando.
Está gostando?
Sim, me ajuda a não pensar na dor. Quer ver minhas pinturas?
Claro.
(Sento na cama para olhar os desenhos)
Esse aqui é bem bonito... Gosto desse também.. Esse eu teria que ter mais cores...
Estão todos lindos!
Esse é mais delicado, tem esse amarelo aqui, eu gostei dele. Esses detalhes...
Ficou muito bonito mesmo.
Esse é para você. Quer?
Claro. Tem certeza?

É como você, leva. 

Voam abraços,
Mayara Floss

28 janeiro 2016

Sina



Que nome curioso!
O que significa?
Eu é que sei, pergunte para quem deu. Todas as mulheres terminam com ina e todos os homens com ino. Minha mãe quis assim.
Tá bem. Nunca procurou o significado?
Não, nunca procurei, mas agora estou curiosa!
Vou procurar e amanhã te digo!
Certo, vou ficar esperando.
E não é que o google não achava nenhum significado, procurei com “c” com “s” e no masculino, nem terminando em ino. O que iria dizer para ela? Descobri um parente distante do nome que significava: “carneiro”.
Cheguei no dia seguinte.
“E então, encontrou meu nome?”
Encontrei um significado meio bobo só.
O que é?
Significa carneiro. Mas eu queria dar um significado meu.
Ela sorri, e diz “carneiro”, gostei.
Eu digo, que bom.
Mas qual é o significado que você quer?
“Aquela que ilumina meus dias”
Ah venha cá menina, você que sempre alegra meus dias.

Ah se eu conseguisse resolver as depressões com dicionários de nomes. 


* Fonte da foto clique aqui.

Voam abraços,
Mayara Floss

11 novembro 2015

Doutora, qual é o meu problema?




Exposição "Limites" sobre os plantões médicos da Leticia Ruiz Rivera. Veja mais clicando aqui.


Paciente com história de insônia, despertares noturnos, perda do apetite, perda de peso acentuada nos últimos meses, isolamento social, utilização de múltiplas drogas, agitação, rebaixamento do sensório, realização de diversos exames, astenia, adinamia, realização de diversos procedimentos, dor epigástrica, em queimação, consumo em excesso de bebida cafeinadas em excesso, desidratação...
Depois de coletar a história e fazer o exame físico o paciente pergunta com a voz rasgada:

Doutora, o qual é o meu problema?

É medicina, filho, é a medicina.

Voam abraços,
Mayara Floss

20 maio 2015

Cambia todo cambia

 Eu decidi parar e estudar as raízes da medicina e saúde ocidental a inspirado (mas não limitado) pelo livro “The Sociology of Health: Principles, Professions and Issues” do autor Frederic D. Wolinskt (livro de 1980 que parece que foi escrito ontem). Senti-me escutando a música da Mercedes Sosa “Cambia todo cambia” (muda tudo muda). Talvez entre mais uma mudança da visão médica. Segure-se nessa balsa, que vamos navegar por esses mares de tempo e mudanças. 

Mar de mudanças. Fonte: http://www.rtp.pt/noticias/index.php?article=710220&tm=8&layout=121&visual=49


 Mais ou menos em XV a. C. começaram a surgir a filosofia de Hygeia na Grécia antiga. A Deusa Hygeia é considerada a primeira filosofia relacionada a saúde. Uma grande raiz da filosofia grega que dizia que a função fundamental da medicina era descobrir e depois ensinar (quem sabe dividir) os conhecimentos sobre o funcionamento do corpo humano que garantiriam uma mente e corpo saudáveis. A popularidade de Hygeia decaiu por volta de XII a. C. com o surgimento do culto de Asclépio (que a maioria conhece a história ou pelo menos símbolo de Asclépio – ou Esculápio - a cobra enrolada num bastão). Ele acreditava que a função fundamental da medicina (e do médico) era tratar a doença para restaurar a saúde, conhecido por usar facas e ervas. A visão mais voltada para cura-doença começou aí, e essa cura era feita através das correções das imperfeições do corpo humano.

Talvez mais famoso que Asclépio foi Hipócrates que a história que conhecemos é muito incerta baseada em uma série de livros que tem o seu nome (e que não foi escrita por ele). Mais famoso pelo seu juramento que fala de ajudar os doentes, não prejudicar e manter sagrada a relação médico paciente. Hipócrates foi o primeiro a deixar para trás os “fenômenos sobrenaturais” trabalhando de forma científica e sistemática. Também manteve a ideia de mente e corpo em harmonia e ele reafirmou a ideia de cuidar da pessoa como um todo e, embora pouco falado, Hipócrates dizia que o ambiente tem uma influência direta no entendimento das doenças.

 A pouco falada deusa Hygeia.
Bem depois de Hipócrates o império romano veio e se foi e a Igreja chegou com a idade das trevas colocando os conhecimentos da medicina em tumulto com o conhecimento religoso. Aliás o que sobreviveu do conhecimento médico também foi salvo pela igreja, e o que sobreviveu foi a medicina que apenas cuidava dos problemas físicos do corpo – saúde mental e problemas socioeconômicos eram problemas de Deus e da igreja. O ser humano como um todo da visão grega acabou repentinamente. 

Pulando para o século XVII chegamos a Descartes e o Racionalismo que focou ainda mais na divisão do corpo e da mente e que disse que a medicina deveria focar unicamente no corpo. Descartes inclusive referiu que a mente deveria ficar a cargo de Deus e os seus agentes. Ironicamente, talvez, a grande mudança da medicina da filosofia cartesiana para uma visão mais humana veio com a Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX, isso veio acompanhado da ideia do indivíduo isolado para a medicina no contexto da sociedade. Os utopistas começaram a trazer o senso de humanização para a saúde. A Revolução Industrial deixou as cosias óbvias, relacionadas a comida, poluição e condições sanitárias. Se a motivação destes utopistas foi aumentar a produtividade dos trabalhadores ou realmente ajudar isso não é a parte central dessa discussão, mas sim o fato que a Hygeia voltou um pouco diferente para discussão originado a palavra “higiene”. Inclusive começou a se dizer que as técnicas mais efetivas para evitar as doenças vieram das ações corretas e medidas sociais da industrialização. 

Depois, ciclicamente, diga-se de passagem, veio a era dos germes com os trabalhos de Pasteur e Koch e as pesquisas com bactérias. Eles postularam que “toda a doença tem uma causa patológica” (e também reforçou o nosso raciocínio clínico e uma das formas de “onipotentes” da medicina, da investigação de tentar descobrir – e da frustração de não ter explicações quando não é possível, e só dessas frustrações que às vezes sai um “é a medicina não resolve tudo” e a sensação de falha). Também é neste ponto da história que começamos a discutir mais fortemente sobre a fragmentação, é aqui que se refere à doença e não mais ao paciente -“nos temos uma cirrose no leito 211” ou “HIV positivo com complicações no isolamento” (entre outros vários exemplos). Por aqui que os médicos se tornaram mais mecânicos e mercadores. 

Uma apendicite no 403” ou “Uma ‘bruxaria’ (doenças inexplicáveis ou de difícil diagnóstico que ainda não foram elucidadas) no 315”. Imagem ilustração de Salvador Dalí para a obra a Divina Comédia.
Por volta da metade do século XX voltamos a falar da pessoa como um todo. E a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1948 disse que as dimensões da saúde devem ser trabalhadas em relação as dimensões físicas, psicológicas e sociais – o “famoso” bem estar biopsicossocial. É aqui que se começa a discussão de que a saúde é um processo adaptativo e não estático (que sempre pode ser comprado ou alcançado). E em 1985 o conceito da saúde da OMS também muda: “a saúde é uma fonte de todos os dias, não o objetivo da vida; é um conceito positivo que enfatiza as fontes sociais e pessoais e também as capacidade físicas”. Volta-se a discussão e orientação para que os profissionais de saúde compreendam que as definições restritas das doenças são puramente um fenômeno fisiológico. Inclusive, neste contexto adoro a frase de Melody Goodman professora de saúde pública da Universidade de Washington “Your zip code is a better predictor of your health than your genetic code” (o seu Código de Endereço Postal – vulgo CEP - é um previsor melhor da sua saúde que o seu código genético). Inúmeras vezes vejo essa frase do William Osler no final das palestras de vários médicos “O bom médico trata a doença, mas o grande médico trata a pessoa com a doença.” Eu gostaria de fazer um corte nesta frase, quem sabe emendando ela com uma visão mais global da saúde que o “o bom profissional da saúde cuida da pessoa” (sem a doença). 

Brazilian States by Municipal Longevity index.svg

“O seu Código de Endereço Postal – vulgo CEP - é um previsor melhor da sua saúde que o seu código genético” – Pensando em Brasil é “fácil” ver isso analisando o IDH relacionado a saúde você morar no Nordeste determina se você irá viver mais ou menos (longevidade). "Brazilian States by Municipal Longevity index" por User:Juniorpetjua - http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e0/Brazilian_States_by_Longevity_index.svg. Licenciado sob CC BY-SA 3.0 via Wikimedia Commons.

 Assim como tudo muda, a saúde muda também e a nossa forma de navegar, acredito nesta mudança e nos desafios diários de trabalhar com diferentes visões e tempos da medicina e saúde. Assim como eu já passei por várias mudanças dentro da medicina (e fora dela), posso mudar novamente. Sim, já coloquei todas as minhas apostas na clínica médica (que é muito importante), mas me vi frustrada com o paciente voltando com os mesmo problemas, a mesma desidratação, a mesma fome da barriga e de viver, e vejo essa medicina pontual mudando para uma visão global onde o endereço do paciente, e as condições socioeconômicas definem mais sua saúde e o trabalho dos profissionais da saúde. Voltando a Mercedes Sosa "Cambia el modo de pensar/ Cambia todo en este mundo (...) Y así como todo cambia/ Que yo cambie no es extraño" (Muda a forma de pensar/ Muda todo este mundo (...) E assim como tudo muda/ que eu mude não é estranho).

"Cambia lo superficial
Cambia también lo profundo
Cambia el modo de pensar
Cambia todo en este mundo (...)"


Voam abraços,
Mayara Floss

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 quase todas as 4as-feiras]

11 junho 2014

A cura das almas


Livro de anotações no Sint-Janshospital


Fui visitar Brugge na Bélgica e aproveitei para ver a minha prima que não via há mais de ano. Em Brugge passei por um museu de hospital criado no século XII, o Sint-Janshospital. O Hospital foi uma iniciativa das autoridades municipais e de uma burguesia rica da época. Eu quase não entrei no hospital: “tem tanto disso no meu dia-a-dia”. Mas depois que o namorado da minha prima insistiu, adentrei as portas de pedra do antigo hospital. Logo cheguei e pensei “ainda bem que eu vim”.

Encontrei algumas pinturas famosas daquelas que você encontra recorrentemente nas aulas do primeiro ano da faculdade. Uma coisa muito legal foi ver as anotações dos médicos da época (há mais de 1000 anos atrás), os desenhos, os prontuários médicos enrolados como pergaminho.  Mas não foi isso que me impressionou de fato. Foi cantinho falando da história do hospital falando no tratamento da alma.

Estava escrito: “A morte em um hospital não era incomum. Por isso, a atenção espiritual estava fortemente presente. Sint-Jan contava com o seu próprio cura. O hospital tinha o direito de enterrar os mortos. A capela do hospital era parte da sala hospitalar. A devoção dos santos e da cultura popular religiosa estavam intimamente relacionados com o funcionamento do hospital. As freiras assistiam o cura quando um paciente ia morrer.”

Em 1188 quem entrava no hospital eram as pessoas em apuros, os viajantes e peregrinos. E as principais “virtudes” do hospital era a hospitalidade e a caridade. Outra passagem que chamou atenção foi que até a metade do século XIX o hospital não era um centro médico como hoje. Como o conhecimento médico era limitado, as pessoas recorriam a remédios alternativos. E por isso era tão evidente a busca da “cura das almas”.

Fiquei a pensar. A medicina avançou tanto que praticamente tudo que não é aferível não é válido. Como disse Helman (2009, p.113): “Quando um fenômeno não pode ser observado ou medido objetivamente por exemplo, as crenças de uma pessoa sobre as causas de uma doença, tal fenômeno é, de certa forma menos ‘real’ do que algo como o nível da pressão arterial do paciente ou a sua contagem de leucócitos (...)”¹.

Dá-se mais valor a medição, a contagem, ao índice, ao órgão do que a pessoa, do que as palavras do paciente. Da história e da vida que está por trás da anamnese. Quantos séculos vamos ter que voltar para falarmos que não são só as medidas? Quanto nós “avançamos” e quanto nós “retrocedemos” nessa caminhada?

Ainda falava-se de remédios alternativos. Composição das plantas. Na parte psiquiátrica do hospital estava escrito sobre “perturbação do espírito”. Sempre quando deparo com isso penso que a visão biológica é apenas uma das maneiras de compreender e analisar a pessoa.  A cura das almas não é tão aferível, assim como a visão biológica não é a maneira mais, única ou melhor de compreender um indivíduo. 

Sint-Janshospital

¹ HELMAN, C. G. Cultura, Saúde e Doença. 5 ed. Porto Alegre: Artmed, 2009. 431 p.


[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

06 maio 2014

Vida-Viajante

Connemara

“Minha vida é andar
Por esse país
Pra ver se um dia
Descanso feliz
Guardando as recordações
Das terras por onde passei
Andando pelos sertões
E dos amigos que lá deixei.” - Luiz Gonzaga

Subi no ônibus. Um ônibus simples comparado a outros que já usei aqui. Deixei minha mochila no porta-malas, antes organizando cuidadosamente para não amassar algumas maças que comprei de última hora no mercado. Subi, com a minha mateira e um livro. Acabei deixando a câmera dentro da mochila o que logo se tornou um pequeno motivo de aborrecimento. Sentei no meio do ônibus, perto da janela. Todo mundo que entrava no ônibus logo procurava um lugar para sentar sozinho, ou com as pessoas que conheciam. Tirando alguns turistas e eu, o ônibus era praticamente todo de irlandeses. No final, o ônibus lotou e uma moça sentou ao meu lado. Você não consegue esconder a sua cara de estrangeiro nesses lugares. Enquanto o ônibus começava a se movimentar sempre com o mar ao meu lado, eu estava com aquele espírito aventureiro, lugares novos. Mas ao mesmo tempo com vários olhares curiosos e pessoas falando irlandês ao meu redor.

Dia cinza, com o mar refletindo o cinza do céu típico da Irlanda. Meu destino: Rossaveal. Passando por Barna e outros vilarejos. A vida muitas vezes nos leva por novos caminhos. Viajei para a Itália há cerca de um mês. Estava conversando sobre medicina de família, o caminho que eu escolhi para seguir dentro da medicina. Um irlandês que também estava no grupo falou: “Meu pai é GP”, (GP é o mesmo que General Practice, que é o nome na Irlanda para a especialização em Medicina de Família). Começamos a conversar e ele falou veemente que o pai dele me aceitaria para acompanhar em algumas práticas. Como a irmã dele ia se casar, acabou demorando para eu conseguir conversar com o pai dele. Há duas semanas atrás marcamos um encontro para conversar, uma conversa agradável, combinamos os acertos o ônibus que eu iria pegar e o tempo que ficaria. Como tenho aulas durante a semana a melhor opção foi fazer um plantão durante o final de semana. E bem, quando me vi estava no ônibus olhando as ovelhas pela janela entrando no interior da Irlanda. Um misto de frio na barriga e curiosidade de conhecer algo novo.

O médico estava me esperando em Rossaveal, porque o ônibus não chegava até a casa dele era mais longe em uma pequena ilha. Fomos de carro até lá, ele me mostrando o caminho e comentando que tinha comprado comida vegetariana para mim. Falando o nome das ilhas, da paisagem, do trabalho. Eu estava fascinada, e com aquela sensação que sempre dá quando entra em um carro irlandês, a sensação de que você está sentado do lado virado do banco. Mesmo morando há mais de dois meses essa sensação não muda. Durante o trajeto ele também já foi explicando que teríamos uma visita domiciliar pela manhã e me dizia como funcionava a rotina.

Chegamos e fui recepcionada pelo grande (e gordo) labrador. O médico me mostrou o quarto onde eu iria ficar, larguei minha mochila lá e ele foi me apresentar o consultório no anexo da casa. Eu estava num misto de felicidade e constrangimento ao entrar na casa de um estranho e feliz por estar mais perto dos pacientes novamente. Ele abriu a porta do consultório (o nome antigo e que se utiliza para consultório é Surgery), logo a minha direita uma estante enorme cheia de livros, acoplada a uma escrivaninha. Mas a primeira diferença do Brasil, a mesa não fica entre o médico e o paciente, o paciente senta ao lado do médico, com mais proximidade (e quando ele foi me mostrar os outros dois consultórios que ele atende durante a semana a organização foi a mesma). Uma maca para examinar o paciente, quadros pendurados na parede com os certificados, pia a direita, material esterilizado. Não era um grande consultório, apenas do tamanho ideal.

Eu, não sabia se levava ou não, acabei levando comigo o jaleco. Ele disse que eu poderia usar mas que provavelmente as pessoas iriam estranhar eu de jaleco, além disso, ele acrescentou que as crianças não gostam de jaleco. Ele precisou sair, me mostrou onde eu poderia tomar um banho depois de um dia agitado na vida estudantil na cidade. Tomei meu banho, sentei e fiquei contemplando a baía. A casa mais próxima parecia muito distante. O labrador me fez companhia.

Quando o médico chegou explicou como funcionava os horários, os planos do dia e eu fiz um chimarrão. Ele olhou curioso, experimentou alguns goles e ficamos conversando até tarde sobre medicina. Ele com trinta e poucos anos trabalhando na mesma comunidade no interior da Irlanda eu dando os meus primeiros passos. Conversamos sobre como o médico tem que ter “orelhas grandes” para saber ouvir. Ele me contou vários causos da vida de médico do interior, como foi chegar na cidade, aprender irlandês para poder se comunicar. Dava para ver o brilho no olho, não precisei de muito tempo para perceber que ele amava o que fazia. Eu falei do Brasil, da comunidade da Barra, contei algumas experiências também. Terminamos o assunto no sistema de saúde irlandês.

Quando deitei na cama fiquei pensando quais eram as minhas expectativas em relação a Europa, e me dei conta que a medicina é igual. Com suas nuances, mas as orelhas grandes, a vontade de cuidar e a alegria de trabalhar com aquilo que gosta, sendo sério quando precisa, mas também se divertindo com os pacientes. O cuidado está nas mãos de cada um, e tive a sorte de parar em uma pequena ilha no interior do interior da Irlanda, com um médico que ama o que faz. É essa vida de viajante de Luiz Gonzaga, os novos caminhos, vivências e aprendizados. E longe de casa sigo o roteiro mais uma estação, e a alegria no coração.


Voam abraços,
Mayara

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

15 abril 2014

Sanduíche de viagem



     Estou sozinha na cozinha preparando os sanduíches para viajar. Começo a lembrar de quando eu era pequena e cortava os pepinos para ajudar meu pai a fazer os sanduíches enquanto minha mãe terminava de organizar as malas. Passava a margarina no pão, e ia montando os sanduíches para colocar no isopor. Agora observo os meus sanduíches e eles lembram os mesmo sanduíches de viagem da infância.

    Preparei da mesma maneira, em escala, com todos os ingredientes a postos, passei margarina em todos os pães, coloquei todas as fatias, todos alinhados. Coloquei da mesma maneira na geladeira. E pensava em como o conhecimento acontece. Hoje, faltaram só os achocolatados para levar junto no isopor, e só de lembrar de vontade de ir correndo no mercado comprar para fazer a combinação nostálgica perfeita. Pode ser só fazer sanduíches mas está escrito em cada sanduíche o que eu aprendi com a minha família.

    A forma que comemos, levantamos de manhã, nos cobrimos a noite e até fazemos os nossos sanduíches é um reflexo do que aprendemos durante a nossa vida. Penso que para muitos é assim, como os pescadores pescam os peixes, ou a música que se usa para ninar antes de dormir. A educação é como um DNA, transmite de pessoa para pessoa e vai incorporando novas “bases” em nossas atitudes, gestos e personalidade. E vamos transmitir esse código para quem está ao nosso redor, como por exemplo, fazendo sanduíches. Ou o que nós incorporamos na faculdade, como o conhecimento médico.

    Mas a beleza desse “DNA” é a sua transmissibilidade e não a sua imposição. É a ideia da replicabilidade e do respeito. Não se altera o código genético de uma hora para outra, mas é possível trocar algumas “bases” com o tempo. E é assim, trocando, que se conversa sobre sal na alimentação, ou exercícios físicos. Construindo novos caminhos, fazendo novas ligações, novas formas de cuidado.

    É essa “genética” educacional, que respeita as ligações, a estrutura e principalmente a pessoa que está com você. Não é apenas a célula, nem o coração, ou cérebro, ou pâncreas. São as histórias, os caminhos, o olhar e a genética de aprendizado de cada um. O imprint que levamos do que vivemos. O conhecimento se replica com novos aprendizados e trocas, como o DNA

    Assim como não se faz sanduíches de viagem sem histórias, sem vivências, sem aprendizado, não se constrói educação sem a relação entre as pessoas, sem envolvimento, sem a troca de “bases” ou histórias.

Voam abraços,
Mayara

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

Marias Amélias



Nossas viagens a Senador Pompeu, terra dos meus avós paternos, eram frequentes e cansativas. Já perto, as cores mudavam e víamos as plantas secas, a paisagem cinza. O pai sintonizava a Rádio Sertão Central que basicamente tocava Luiz Gonzaga e, bem perto, antes de chegar na cidade, tinha uma curva grande que o pai chamava a última curva. Quando a gente passava na última curva, ele gritava: “a úúúúúúltimaaaaaaa curvaaaaaaa!!!!”, buzinava e cantava um “lararaiá” com o mesmo impacto, para nós, que a música da vitória do Airton Senna.

Finalmente, chegamos na casa da vó e do vô! Ao chegar e ao sair, o ritual das bênçãos aos dois e ficava maravilhada ao ver o pai fazer o mesmo. Via meu pai ser filho também. Éramos, então, todos iguais perante aqueles dois velhinhos.

Quando nasci, vó Maria Amélia já era velhinha. Teve meu pai aos 45 anos, último e décimo quinto filho, nascido logo depois da morte de um filho padre, amado e que morreu de tuberculose aos 21 anos. Vó teve tristeza muita e gripe espanhola. Assim, não pode cuidar e amamentar meu pai nos primeiros meses e ele diz que teve ama de leite. Obviamente, meu pai herdou o nome do irmão falecido. Irmão que frequentemente ele visitava e colocava flores sem nunca ter conhecido. A vó levava ele junto desde pequeno, para as visitas. E ele, o pai, depois, nos levava para conhecer o túmulo do irmão que tinha dado seu nome, antes de morrer.

Os nomes...

Tenho o nome dela. Ser Maria Amélia era um plano de antes de eu pensar em existir. Não havia nenhuma neta Maria Amélia e acho até que tinha alguma disputa de afetos de irmãos, os oito que restaram de uma realidade de mortes antes de 1 ano de idade, mortes mais maduras de doenças evitáveis, violências sem sentido... Vida curta que nem vira estatística, pois nem chega a existir, sem registro.

E vó Maria Amélia viveu muito além que a maioria dos filhos. Ninguém sabia o quanto porque ninguém sabia ao certo a idade que tinha: 95, 99, 100, 105... Tinha nascido em um ano e sido registrada em outro e nem sequer sabia se aquele dia era mesmo o dia que tinha nascido. Filha de vaqueiro do sertão que fazia versos e receitava chás, ainda lembro dela recitando algumas palavras de seu pai, na sua inconfundível voz rouca.

Vó Maria Amélia dormia de rede, mascava fumo de rolo, tinha cheiro de água de colônia e fazia um macarrão barato e simples ser a melhor refeição de uma criança. A casa da vó tinha um quintal imenso, tinha um pilão de pilar café e paçoca nos fundos, tinha um galinheiro, um quarto “proibido” com coisas estranhas – um arado grande, enxada, ancinho, pás e coisas de trator, além de um fantasma, é claro. Tinha um cacimbão assassino de pintos e, conforme a mãe, cheio de cobras em volta. Era cheio de árvores pra subir e coisas proibidas para se aventurar a mexer.

A casa da vó era um mundo mágico de personagens mágicos. Tinha o Juvenal, homem de pés enormes, era “curado”, não morria de picada de cobra e era o único que limpava o mato na volta do cacimbão, porque era protegido. Tinha a Maria Pilão, negra, velhinha, pequenina, magrinha que vivia de pilar café nos quintais. Ela era o próprio grão de café. Tinha o Chico Rouco que de tão feio, seu esporte era aparecer no portão e nos assustar. Fui aprendendo a enfrentar o Chico até o momento em que ficamos amigos e ele me dava até bala pipper.

A casa da vó tinha história. Uma vez o pai tirou o chapéu de palha do primo Odésio deixando à vista a careca lustrosa dele e atirou o dito chapéu no alto do galho da acácia amarela que tinha no jardim. Essa acácia floria lindo e sempre tinha gente pedindo flor para levar, principalmente em finados. A vó sempre deixava. O Odésio também tinha uma casa mágica com uma laranjeira que nascia dentro de casa e furava o teto. Assim, as laranjas nasciam em cima da casa e a gente precisava pular no telhado pra pegar. Eram as laranjas mais saborosas da minha infância.

A “casa velha” como chamam, tinha um alpendre lateral de ladrilhos vermelhos. Tinha a parte da frente, com piso de cimento, cheia de cadeiras, algumas de balanço, algumas com assento de couro de bode. Mas tinha umas cadeiras de balanço daquelas tiras de plástico coloridas que marcam as costas e coxas. Essas eram as minhas prediletas... Sim, porque as conversas iam até tarde e eu dormia nessas cadeiras o melhor sono do mundo, deitada meio torta, ventinho fresco de sertão, todas as vozes contavam histórias. Desde então, adoro dormir com gente falando.

E tinha o pé de estrela, flor predileta da vó. Simples, branquinha como eram os cabelos dela. O cheiro era suave e por mais que a mãe tentasse, nunca conseguiu fazer muda. Era mesmo única, não tinha igual e ninguém nem sabia quem tinha plantado. Era uma estrela de quatro pontas de meio palmo, sem mais nenhum enfeite. Mas os frutos eram cilíndricos e o pai dizia que eram carneirinhos. Assim, embaixo do pé de estrela, a gente “tocava” rebanhos e rebanhos de carneiros e seus filhotes. Fazíamos aventuras e até transportávamos em um velho caminhão de madeira e lata de óleo.

Eu sempre dava uma “estrela” para a vó. Ela não era de mostrar carinho, mas ficava toda dengosa. Tinha um humor ácido e resposta na ponta da língua. Ria muito de si mesma, muito. Fechava os olhos e ria balançando a cabeça como não se perdoando de alguma bobagem dita. Repetia as histórias, mas nunca as contava do mesmo jeito. Tinha histórias boas como a que estava conversando e contando uma de suas aventuras e, no meio, entrou um pinto na sala. A porta do galinheiro tinha quebrado. Ela parou e olhou seriamente para o pinto e perguntou: “e de onde veio este?”. Todos riram dela e em seguida, ela ria dela mesma.

Mal aprendeu a ler com o carvão do fogão de lenha que riscava preto a parede. Era curiosa, não falava da juventude ou de um tempo bom que passou. Mas gostava do “tempo de hoje”, das novidades. Gostava de cerveja e de picolé. Gostava de movimento e nunca esqueceu da viagem que fez ao Rio de Janeiro e foi a um museu e viu Dom João VI de cera saindo do Brasil com um punhado de terra. No fim da vida, confusa, dizia, comovida, que viu Dom João saindo triste do Brasil com um punhado de terra. Eu me impressionava. Acreditava nela.

Passou a vida tentando escapar da mesmice, da vida árida do sertão, da comida sem tempero, da falta de sobremesa e de festa, da brutalidade dos homens, da partida e morte dos filhos. Quando tinha alguma novidade nas mãos, os perfumes e doces presenteados por netos e filhos, ela considerava valioso e trancava em um cofre. Cofre que só abria pra mim...

Por ser Maria Amélia, eu era a neta predileta, sem nenhum disfarce. Quando eu chegava, ela me pegava pela mão, sob o olhar ciumento das minhas duas irmãs e me levava devagarinho pelo corredor comprido da casa, se apoiando na parede e, sem dizer nada, abria o cofre e me entregava “seus” presentes. Era o que tinha de mais valor. Às vezes, me sentia com uma responsabilidade imensa de ser a predileta, de ter o nome de uma pessoa tão forte, tão sofrida e com tantas histórias.

E nesses tempos de páscoa, lembro com carinho de um ovo de chocolate que ela me deu, acho que pela metade porque tinha saboreado, um pouco derretido pelo calor e nem me lembro se o gosto era bom... Sim, eram guardados no cofre. Uns diziam que era porque as empregadas acabavam comendo, mas eu entendo que era mais, era por serem valiosos. Por em idade tão elevada, finalmente, ela ter tido o luxo de um ovo de chocolate na páscoa, um agrado, um brilho, uma festa. Festa que guardava com segredo que só ela sabia, para dividir comigo.

Vó Maria Amélia se foi lúcida, em casa, se despedindo de cada um que estava ao seu lado. A casa velha virou restaurante. Arrancaram o pé de estrela. O pai herdou o cofre que apodreceu após uma enchente em Pelotas. Os personagens não devem mais existir e fico curiosa com o quarto do fantasma, a acácia que abrigou o chapéu do Odésio, o fogão a lenha, o pilão, os ladrilhos vermelhos, o galinheiro, o cacimbão assassino de pintos, as árvores... Voltar lá talvez fosse um erro. Talvez pouco exista daqueles fins de semana aventureiros com direito até a visita ao túmulo do tio com o nome do pai: primeiro cemitério da minha vida.

Sim, de Senador Pompeu e da vó Maria Amélia e sua casa, seu corredor longo, sua vida longa, aprendi o mais misterioso e o mais árduo da vida. O mais sofrido e o mais simples, traduzido em flor branca com cheiro de leite de colônia. As fantasias e novidades coloridas trancadas - metade de um ovo de páscoa já meio derretido - em segredo, porque de valiosas, elas fogem rápido, tal qual a vida. Vai rápido que nem passar a grande volta na estrada. Ela, a última curva, a que fazíamos festa quando atravessávamos, chegando, e ficávamos em silêncio quando partíamos.
 

[Maria Amélia Mano publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

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