20 janeiro 2014

De como nos enxergam e do que somos...



Trapiche Gamboa (Zona Portuária do Rio de Janeiro)
Charlie Parker e Carmen Miranda - Misturas

para o amigo Ernande do Prado, que migra adoidado.


Ser migrante, translated man, pessoa traduzida, expressão cunhada pelo Edward Said, é desafio permanente. Mas, fora as poucas agruras que isso me trouxe, mesmo antes de vir ao Brasil, é algo fascinante. E esta longa experiência brasileira é gostosa, alimentadora de reflexões e sensações, de emoções e transformações.

Sou testemunha a tempo integral de culturas misturadas, em movimento, se fazendo e refazendo, se imaginando de jeitos diferentes a como são vistas por "olhares estrangeiros" e que me entusiasmam o tempo todo. Culturas, enfim, da pós-modernidade. Múltiplas, fragmentadas, mas, talvez também por isso, deliciosas.

Sendo tão misturado - chinês de Macau, Cantão, e mais um lugar que acho que era Hunan; índio quíchua de Ancash no norte do Peru; espanhol de Castilha, ao sul de Madri; e quem sabe mais o que... é difícil, penso, me classificar. Mas aqui é fácil demais. Sou dono de pastelaria (com seu "bem asiático" caldo de cana e pastel fritado). Ou dono de restaurante. Ou mafioso chinês cheio da grana. Ou alguma coisa asiática sem muita clareza. Nunca professor, nunca médico, nunca peruano, nunca poeta. Olhares me simplificam e classificam. Taxonomia do senso comum. Adoro. Curto e me divirto incorporando personagens.

Só em algumas fases da minha vida renascida aqui neste Brasil eu me incomodei com isso. Nunca sofri bullying - embora sei de outros que sim, especialmente na zona norte carioca. Nunca me destrataram ou preteriram. Quando fui ofendido, na Polícia Federal da Praça Mauá, foi igual que os outros migrantes estrangeiros e portugueses que por lá tínhamos que renovar vistos e resolver pendências. Nada demais.

Um evento especial aconteceu anos atrás na periferia de João Pessoa. Nessa época tinha a ambição tola de morar lá e fazer a vida perto do amigo Eymard Vasconcelos, balseiro também aqui no blog. Não deu certo. Mas no processo eu fui e voltei várias vezes. Uma dessas idas eu teimei em ir do aeroporto até a cidade de ônibus. Errei de linha, o que para mim é raro. Erro proposital, ri depois de mim mesmo.

Acabei em lugar que não lembro o nome, no meio de várias culturas e lavouras. Numa mini aldeia no meio da Paraíba. Instruído carinhosamente pelos passageiros e cobrador desci para esperar o ônibus da linha XXX, o certo. De mala e cuia, eles pensariam que eu era desses migrantes chineses escassos que tem no nordeste e que vendem tênis e relógios xing ling. Infelizmente não era.

Sentadinho na banquinha, na sombra de uma árvore magrinha, eu matutava meu tempo, pensando talvez em Guimarães Rosa - quando se viu chinês pensar em Sagarana? Um psiu me acordou. Psiu baixinho, de longe.

Eram umas 5 crianças de uns 9 a 12 anos. Cabelo bem curto, corpos de arame, olhar intenso. Pensei, crianças arretadas para ter essa energia de brincar, curiosear o mundo e o chinês-peruano aqui.

Uma delas, João, a mais ousada, veio me procurar, e disse: "você luta kung fu?" e me tocou. Assim que me tocou saiu correndo, disparada. E, ao chegar à turminha que o esperava, disse triunfante: "ele é de verdade"!!!!!

E repetiram, ansiosos: você luta kung fu? eu assenti sério e misterioso. Eles foram ao delírio e começaram a brincar de luta entre eles. Onde será que eles vêm esses filmes que no Sudeste nem passam pela TV?

Depois, soube, o comércio de filmes piratas - obra indireta também dos meus distantes parentes chineses - leva toda oferta de filmes, shows e claro, filmes de pancadaria.

Assim, estava entendida minha popularidade. E, no ato de me tocar, eu percebi que nessa região nunca houve um chinês bochechudo. Ainda espero que médicos chineses (ou quase chineses, como eu) invadam também esses mundos. Que os médicos que amam atender, conversar, brincar com crianças, participar da vida da comunidade, se espalhem pelo planeta.

Ser traduzido, migrante, carregador de tantas tradições e sensibilidades, para mim é uma benção. E é também uma responsabilidade. Quando falam mal dos médicos estrangeiros fico meio zangado. Embora saiba que alguns só vieram pelo dinheiro e que uns outros farão trabalho ruim, sei que todos somos misturados e que essa mistura cultural também é valiosa e algo que quero para o mundo da saúde. E que para muitas populações ter um médico interessado neles, seja qual for a nacionalidade, é bom demais. Nunca teve antes.

Décadas atrás lutei kung fu, adolescente. Lutava mal. Espírito guerreiro fraco. Mas o kung fu me fez entender meu lado chinês. Pobre, camponês, marginal, migrante ferrado. Mas digno, belo, saboroso, e que me traz orgulho até hoje.

Assim é ser como sou neste país estranho e gostoso que se imagina único sendo tão diverso. Que tenta homogenizar sem conseguir. Que obedece às corporações sem perceber. Que vive ao ritmo de ilusões sendo tão real. 

Quem sabe o gigante realmente continue acordando. Ou talvez a história seja um cochilo intermitente e interminável. Nela, mergulho, misturado, traduzido, estereotipado, singular, social, único, legião.






[Julio Alberto Wong Un publica na Rua Balsa das 10 às 2das-feiras]

Um comentário:

  1. Querido Júlio, só esqueceu de falar da interpretação de Alice, segunda ela você finge falar espanhol. Alice o definiu. Talvez por ser um eterno viajante nos países que falam Português, como Paraná e Bahia, não me sinto tão estrangeiro, embora na Região Metropolitana de Salvador tenha me sentido muito estranho e até discriminado pela cor, mas faz parte, embora não devesse.

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