06 junho 2014

O ESTADO DAS COISAS


     Ernande Valentin do Prado

AS DÚVIDAS

Psicologia, nutrição, farmacologia, anatomia, fisiologia, bioquímica, estatística, políticas de saúde, história da Enfermagem, história do cuidado, patologia, fundamentos de Enfermagem, teorias de Enfermagem, produção de texto e tantas outras disciplinas fundamentais para compreender o ser humano, suas necessidades físicas, psicológicas, sociais, culturais e espirituais e acima de tudo, entender o papel da Enfermeira e do Enfermeiro enquanto membro da equipe de saúde. E fica a dúvida: será que os profissionais/pessoas que supostamente estudam todos estes assuntos conseguem compreende realmente o que é o ser humano, suas necessidades? Entender qual é a missão da Enfermeira e do Enfermeiro? Ou tudo isso são apenas discursos para justificar as aulas, os livros, a “cadeia produtiva da saúde e do ensino da saúde”? 

O TESTEMUNHO 

Quando recebeu alta, seu José, meu pai, passou um dia em casa e voltou para o hospital, desta vez, além do problema cardíaco supostamente diagnosticado e ainda não solucionado, havia uma pneumonia, que não fora diagnosticada, apesar de mais de uma vez a família chamar atenção para os sintomas. Segundo a equipe de saúde, ele fora tratado. Voltou para casa. Desta vez ficaram dois dias.
A impressão deixada pelos profissionais deste primeiro hospital é que não tinham a intenção de curar ou controlar a doença ou mesmo realizar o diagnóstico, mas, com a alta, abrir vaga para o próximo doente, que provavelmente teria o mesmo tratamento. É como se os profissionais tivessem perdido a perspectiva de cuidar, tratar ou curar e passassem a serem gerentes de vagas insuficientes.
Diante da situação e da aparente falta de interesse ou de estrutura do local onde meu pai estava internado, começaram aparecer sugestões alternativas. Um dizia: “tem um hospital em tal lugar onde a gente paga uma consulta particular e interna pelo SUS e faz todos os exames”. “Fulano conhece sicrano que é amigo de beltrano que é deputado” e outras coisas deste teor. 
O detalhe: nas duas primeiras internações ele foi assistido pelo médico Clínico Geral e a consulta com o cardiologista foi solicitada junto à unidade de saúde. Mas o médico da unidade básica disse que poderia demorar muito e era importante fazer a consulta o quanto antes. Minha irmã, que acompanhava pessoalmente a situação, pediu a indicação de um médico cardiologista particular e levou meu pai até ele com a ajuda de uma vizinha. Por sorte dele e azar do sistema, além de atender em clínica particular, o médico também trabalhava em um grande hospital beneficente conveniado ao SUS. Fez a consulta e solicitou internação.  
     Desta vez meu pai foi internado na UTI cardíaca e fez diversos exames e realizou, aparentemente, o tratamento correto para o coração e os pulmões . Voltou para casa e novamente, dois dias depois estava no hospital.  Agora era um problema renal. De que tipo ainda não se sabe, estão sendo feitos diversos exames. Além do problema cardíaco, que agora parece controlado, da pneumonia, que parece curada, tem também um problema no esôfago e uma hérnia de hiato, que lhe deixa com um gosto amargo na boca e lhe dificulta comer.  

AGORA QUERO FALAR DO QUE REALMENTE TEM INCOMODADO 

     Estou com meu pai no hospital há quatro dias. Pouco tempo se julgar o tempo de nossa vida, mas muito tempo quando se esta dentro de um hospital. Principalmente quanto não se tem diagnóstico.  
     Neste tempo tive dois choques muito fortes: o primeiro foi ver meu pai nesta situação de tão grande dependência. Magro, pálido, mãos amareladas, barba grande e amarelada, soro ligado na veia, sonda vesical. Aparência de quem precisa de ajuda. Para compreender melhor o drama: meu é aquele tipo de pessoa que nunca para, que nunca desiste, que sempre tem solução para tudo e está sempre pronto a ajudar qualquer um. Enfim, é meu pai e é assim que lhe vejo. Além de ter sido professor do Mac gyve[1], poucas vezes na vida entrou em um hospital ou foi em um serviço de saúde. Julgava-se um ser imbatível, indestrutível e impossível de ficar doente. Inclusive não ia ao serviço de saúde porque, segundo ele, isso atraia doenças. Opinião que não está totalmente errada – acho que acreditava em tudo. 
O segundo choque: trabalhei dentro de uma estrutura hospital por sete anos e meio. Durante todo esse tempo a minha teoria (e minha prática) era que a Enfermagem tinha que se envolver com os pacientes. Conversar com eles, saber seus dramas, dificuldades, esperanças, seus afazeres e tornar sua estada o menos traumáticas possíveis. Sempre acreditei que o primeiro dever do profissional de Enfermagem era se importar com o outro, ter consideração com suas necessidades e cuidar. E cuidado só acontece quando há envolvimento(1). Acredito que a Enfermagem precisa acolher de tal forma que as pessoas se sintam como se estivessem em casa(2). Causar nas pessoas a sensação de que estão protegidas, que os profissionais se importam com elas, enfim, que se sintam cuidadas. E cuidado significa desvelo, solicitude, diligencia, zelo, atenção, bom trato(1). E tudo isso só é concreto e só se realiza no contato entre as pessoas, entre o profissional e o usuário/paciente(3).
O grande choque é ver que neste hospital, apesar da boa estrutura física e material, do espaço razoável e do bom número de servidores, o aspecto humano é tão negado em atos e discurso. E o pior, a Enfermagem é  o exemplo mais acabado desta indiferença, mais que qualquer outro profissional. Por incrível e inacreditável que possa ser, e contrariando minha experiência pessoal até o momento,  a atenção dos médicos, atuando dentro do modelo biomédico puro e seco, foi muito maior do que a da Enfermagem. Consegui mais informações, mais tempo e mais consideração dos profissionais médicos do que da enfermagem. Não estou aqui falando de um comportamento individual ou pessoal deste ou daquele profissional, mas de um modo de ser geral, de uma postura pessoal e profissional. Não que todos os médicos tenham sido atenciosos e todo pessoal da Enfermagem indiferente, não é isso. Estou falando de uma sensação, um sentimento baseado vivenciado. Coisa semelhante é narrada por uma profissional de Enfermagem no livro de Vera Regina Waldow, cuidado, expressão humanizadora da Enfermagem. Nele ela diz que o cuidado só é percebido quando falha e isso sozinho talvez explique o porquê a Enfermagem foi tão percebida por mim nestes dias.
     Neste hospital ainda trabalham de um modo que pensei já estar extinto: cada grupo de auxiliar e/ou técnico é responsável por uma tarefa. Uns responsabilizam-se pela higiene pessoal dos doentes, outros pelos controles de sinais vitais e um terceiro grupo pela distribuição das medicações. E aí pergunto: quem se responsabiliza pelo cuidado? Meu pai tentou responder essa pergunta dizendo que a Enfermeira “chefe” fica sabendo de tudo, que vê as anotações e passa nos quartos. Realmente elas passaram nos quartos. Porém a impressão que ficou, em todas as visitas que presenciei neste primeiro setor onde ficamos, é que passam para serem vistas. Não há tempo para conversar com os internados ou com a família. Perguntam duas ou três coisas do tipo: “passou bem à noite, está sentindo dor, evacuo  hoje?” A impressão é que as respostas não importam, perguntam apenas por perguntar. E aí dizem: “não se esqueça de falar isso para o médico”. Não tocam nas pessoas, não sentam nos quartos, não examinam, não consultam prontuários. Do ponto de vista clínico a visita não tem nada a acrescentar. O resto do tempo passa em frente ao computador fazendo anotações, mas para que servem essas anotações se não se revertem em conhecimento, em cuidados apropriados?  
     O sistema do serviço lembra uma linha de montagem do cuidado ou melhor, uma linha de montagem onde o cuidado é negado, tipo uma pegadinha de mau gosto, destas da TV. Todos os profissionais são encarregados de trabalhar com os pacientes, mas nenhum verdadeiramente é responsável, nenhum consegue saber o todo que se passa com eles. Não ficam no quarto nem cinco minutos de cada vez. Não sabem nem ao menos o nome das pessoas ou do pacientes, que é como veem. Um número, um leito e um sintoma/patologia[2]. Isso foi muito chocante. 
Essa forma de trabalhar, chamada “cuidados funcionais” é repetitiva e desintegradora, pois causa alienação no profissional de Enfermagem[3].
Para ter uma ideia mais clara da situação e o quanto ela é grave, basta dizer que as meninas da limpeza ou da cozinha[4], encarregadas de trazer a alimentação, sabiam mais das pessoas internadas e tinham mais consideração e condições de responder dúvidas do que o pessoal da Enfermagem. Elas conseguiam cuidar mais e melhor que qualquer um dos servidores da Enfermagem que eu vi nestes dias e neste setor. E digo isso com imensa dor, pois sou Enfermeiro e sempre acreditei que a gente fazia toda a diferença na vida de uma pessoa dentro do hospital. Ao menos sempre procurei fazer essa diferença. 
Uma forma mais apropriada ou talvez menos ruim de trabalhar é chamada de  “cuidados integrais”. Neste modelo o profissional é o responsável por prever e prover todos os cuidados que serão dispensados ao paciente/usuário. “Esse modelo possibilita uma adesão mais global das necessidades do paciente/cliente, tornando o trabalho potencialmente mais criativo.” (4 – Pires)     
Trabalhei em Hospital em uma época em que havia um menor número de profissionais de Enfermagem disponíveis no mercado. Éramos poucos dentro dos hospitais, mas sempre dávamos um jeito de ter mais tempo, de fazer mais. Ou talvez essa impressão também seja errada, já se vai muito tempo e o importante, neste caso, é a impressão de quem é cuidado. Mas inegavelmente essa é a minha sensação. 

SERES INVISÍVEIS

 Em uma das muitas noites em que fiquei no hospital, entraram dois técnicos de Enfermagem no quarto. Nada falaram com os pacientes ou com os acompanhantes. Apenas conversavam entre si e foram vendo a pressão e a temperatura de todo mundo. Nem pediam para ver a pressão, iam chegando e colocando o termômetro e enrolando o braço com a braçadeira do esfigmomanometro. Nada diziam. Tudo muito mecânico. Era a tarefa pela tarefa. O importante parecia ser fazer as anotações e não cuidar das pessoas. Não é que as anotações não sejam importantes, elas são primordiais, mas parecia que aqueles profissionais não sabiam a função das anotações, mas apenas que tinha quer colher as informações e anotar nas fichas. Coisa idêntica já percebido no comportamento da Enfermeira responsável pela unidade.
Roach, citada por Waldow[5] diz que o cuidado é uma expressão de nossa humanidade, sendo essencial para nosso desenvolvimento e realização enquanto tal.  Roach ainda acrescenta que o cuidado pressupõe consciência e comprometimento, competência para exercer suas funções. Será que o comportamento dos técnicos  mostram esse comprometimento e a competência necessária para realizar suas funções?
O cuidado não pode ser prescrito, nem ensinado. Não há regras ou manuais. O cuidado deve ser sentido, vivido(6). Ordens podem ser dadas, procedimentos definidos e feito anotações, mas isto em si não é cuidado. Cuidado é um ato moral do cuidador para com o cuidado e só existe quando o profissional se importa com outro, demonstra por atos e atitudes afeto, compaixão, compromisso e não apenas com a técnica ou o procedimento a ser executado(6). Cuidado e cura só existem quando há relacionamento, quando se conhece a história da pessoa([6]).
O detalhe mais estarrecedor é que os sujeitos que imaginava serem  profissionais do hospital: eram alunos. Ou seja, já estavam aprendendo deste jeito. Não conseguem ter um olhar para o cuidado e nem um olhar técnico, pois ao entrar no quarto fazendo barulho, acendendo as luzes sem nem um cuidado, colocaram a prancheta em cima das pernas de um paciente, usaram o termômetro sem assepsia de uma pessoa para outra. Não lavaram as mãos e saíram do mesmo jeito que entraram, com estardalhaço e sem ver nada. Ali demonstraram serem pessoas que ainda não foram tocadas pela importância de seu trabalho. Não defendo uma enfermagem vocacional que deve trabalhar por amor, por uma recompensa em outro mundo. Defendo uma Enfermagem profissional, bem preparada que reconhece que apenas o saber científico não é o suficiente para entender o ser humano e fazer nosso trabalho. Que trabalhe com amor, que tenha fé no ser humano, pois só assim vai conseguir ver no outro mais do que um sintoma ou uma patologia. O profissional que se deixar ser tocado pelo drama do outro, seja pela sua espiritualidade, seja pelo seu compromisso social, jamais conseguirá olhar o outros como uma corpo-maquina estragado precisando de concerto ou como uma tarefa rotineira que precisa ser executada para manter o emprego[7]. E principalmente, jamais agirá como os profissionais descritos até aqui. 
O homem executa seu trabalho numa relação entre, ele, trabalhador e o objeto, o trabalho ou o produto de seu trabalho. Acontece que no trabalho em saúde o objeto quase sempre é também o sujeito[8]. E a pessoa não pode ou não deveria ser tratada como objeto.
Esse sistema de linha de montagem é tão perverso que não adianta pedir um cuidado para auxiliar, pois ela diz que isso é responsabilidade de outro e não é tão fácil identificar ou achar o outro e a impressão é que os grupos não se comunicam entre si. 
Não acredito que todo esse comportamento deturpado da Enfermagem, neste setor em particular, seja responsabilidade apenas dos profissionais de forma individualizada. O sistema rígido de hierarquia profissional que existe dentro dos hospitais é responsável por uma parte, a falta de objetivos claros e de autoconfiança por parte da coordenação de Enfermagem por outra e por fim esse sistema de tarefas a que os auxiliares estão acostumados estraga o resto. 
Uma divisão onde cada Auxiliar ou técnico cuida de forma integral de uma pessoa parece ser a mais adequada, uma vez que propicia ter um conhecimento global e possibilita cuidar de forma individualizada de cada pessoa.
Seja como for, parece que o grande número de escolas técnicas e faculdades de Enfermagem não estão contribuindo com o aprimoramento dos servidores e do serviço, mas sim deixar o profissional cada vez mais distante e impessoal. E os conhecimentos técnicos não melhoraram por causa disso, ao contrario, parecem que pioraram na mesma medida que a falta de consideração com o próximo. 
Vasconcelos(4) diz que as ciências, sejam biológicas, sociais ou humanas, não dão conta da complexidade do mistério da vida. Isso parece muito evidente nos acontecimentos narrados até aqui. E acrescenta que é preciso voltar a valorizar a dimensão espiritual como forma de valorizar a relação paciente/profissional.
Texto escrito em março de 2012.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Continua...




[1] Personagem de uma série de TV dos anos 80. Era famoso por conseguir sair de situações aparentemente insolúveis e construir instrumentos a partir dos objetos mais improváveis.
[2] ROS, Marco Aurélio. O mapa do capital na saúde: cartel da formação médica. In: ANCA – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE COOPERAÇÃO AGRICOLA. Pesquisa populacional participativa. Condições de vida e saúde. São Paulo: ANCA, 2008.
[3] PIRES, Denise. A estrutura objetiva do trabalho em saúde. In: LEOPARDI, Maria Tereza. (org.) Processo de trabalho em saúde: organização e subjetividade. Florianópolis: 1998. Capitulo 1. Páginas 21-45. 164 p.
[4] Não quero ser mau interpretado com essas palavras. Sei que as meninas da limpeza e que servem as refeições podem ser tão ou mais competentes que qualquer outro profissional. Mas elas passam menos tempo com os pacientes e, ao mesmos em teoria, teriam que saber menos, uma vez que não é sua função direta ter as respostas para as dúvidas dos familiares e pacientes.
[5]  WALDOW, Vera Regina. Cuidar – expressão humanizadora da enfermagem. 1. Ed.  Petrópolis: Vozes, 2007.
[6]  Lama, Leo. O nome do cuidado. [DVD]. [esc.] Paulo Hersch Rosenbaum. Sputinik, 2009. Filme documentário.
[7] Para aprofundar estas reflexões sugiro a leitura do livro de Eymard Vasconcelos: A espiritualidade no trabalho em saúde. Editora HUCITEC. Especialmente este paragrafo foi construído a partir de reflexões da página 69.
[8] FARIA, Eliana Marilia. O diálogo entre as inter-subjetividades na saúde. In: LEOPARDI, Maria Tereza. (org.) Processo de trabalho em saúde: organização e subjetividade. Florianópolis: 1998. Capitulo 1. Páginas 109-154. 164 p.

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