Bloc de Educação Popular em Saúde com foco em crônicas, contos e poesias. Reflete o dia a dia de trabalhadores do Sistema Único de Saúde e Saúde Pública e Coletiva. (cotidiano, saúdes, vidas, poéticas, sensibilidades, ternuras, raivas, gritos)
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21 outubro 2016
30 setembro 2016
DEZ HISTÓRIAS SOBRE UNIVERSALIDADE
1
Dona Cleide acordou bem cedo na quarta-feira.
Finalmente juntou todas as coragens necessárias: foi fazer o bendito exame
Preventivo do Câncer de Colo de Útero.
Caminhou até a Unidade de Saúde de seu bairro,
que não ficava longe. A moça da recepção, sem desviar o olhar da tela do
computador, disse:
- Hoje não vai ter exame porque o ar
condicionado da sala não tá funcionando.
2
Marilda passou a noite com dor de dente. Um
siso insistia em rasgar sua gengiva. Fez febre e jura que teve alucinações com
Freddy Krueger lhe perseguindo. O dia nem tinha amanhecido completamente quando
chegou à Unidade de Saúde aonde sabia que poderia ser atendida como fora de
área, já que morava em local descoberto, como eles diziam.
Viu quando a dentista chegou, por volta as oito
e meia, já a conhecia de outros atendimentos. Até bom dia lhe respondeu. A
odontóloga, moça bem novinha, parecendo recém formada, entrou no consultório e
em alguns minutos saiu e anunciou:
- Hoje não vou atender ninguém: tá faltando
touca de novo.
3
Luzia caminhou da Cohab 4 até o Centro de
Saúde, puxando pela mão sua escadinha de crianças: Jeferson de 8 anos, Clarice
de 6 anos, Simone de 4 anos e Renato de 3 anos. Uma fotografia linda de ver.
Todos arrumadinhos, limpinhos e comportados. Ela vinha na frente, com um bolsa
atravessada no peito.
Na recepção a moça perguntou:
- Cadê o cartão SUS das crianças?
Luzia procurou na bolsa, virou, revirou.
Despejou todo o conteúdo no balcão e não achou.
- Sem cartão SUS não tem como achar o
prontuário, mas pode voltar mais tarde, que tem vaga.
Luzia voltou para casa puxando sua escadinha
bonita de ver, embora a moça da recepção não tenha notado, ocupada que estava
tentando convencer o segurança da unidade a comprar-lhe um perfume do catálogo
da Avon.
4
Domingo Dona Sônia acordou com um derrame no
olho esquerdo. Só percebeu quando olhou no espelho e viu que a parte branca do
olho estava toda tomada de vermelho. Assustada foi à Unidade de Saúde. A moça
da recepção, ocupada selecionando os prontuários das pessoas que estavam
agendadas, nem olhou em seu rosto e foi logo dizendo:
- Hoje não tem mais vaga.
Dona Sônia, que não era de insistir, voltou
para casa. No dia seguinte, bem cedo, estava na unidade de saúde. Do portão foi
despachada pela mocha responsável pela limpeza:
- Nem adianta insistir: hoje a médica só atende
gestantes.
Foi para casa mais uma vez. No caminho passou à
igreja e rezou um pai nosso e uma Ave Maria. No dia seguinte, ainda
acreditando, foi à unidade de saúde. Ao chegar estranhou, não encontrou ninguém
aguardando ser atendido. Na recepção só a moça do primeiro dia:
- Hoje a médica está fazendo visita domiciliar.
- Minha fia, disse calmamente Dona Sônia, eu tô
precisando muito de ver a médica.
- Mas hoje é dia de visita domiciliar.
- Eu espero ela voltar, minha fia...
- Ela nem passa aqui hoje, vai direto de casa
para as visitas e de lá vai embora.
- Não tem outra pessoa com quem eu falá?
- Não, a enfermeira vai junto com ela para as
visitas e a Técnica de Enfermagem tá doente, não veio hoje.
Dona Sônia saiu, de novo, da unidade de saúde
sem atendimento, por via das dúvidas, no caminho de casa, passou na igreja.
5
Dona Esmeralda bateu à porta do Enfermeiro. Lá
de dentro ouviu a voz:
- Pode entrar, tá aberta.
A mulher, de pele muito bronzeada, rugas ao
redor dos olhos, mais de um metro e oitenta de altura, aparentando uns 45 anos,
entrou tímida. Não sentou na cadeira a sua frente. Falou em pé.
- Eu queria fazer o preventivo de câncer.
- Nossa! Admirou-se o enfermeiro,
exageradamente, talvez por já ser quase meio dia. E acrescentou:
- Qual seu nome?
- Esmeralda.
- Eu acabei de terminar as coletas, já
desmontei a sala. Agora só na próxima semana.
- Eu me atrasei. Ia vir de carona com o ônibus
das crianças, mas não consegui e vim caminhando.
- Aonde a senhora mora? Questionou o
Enfermeiro, ainda mais preocupado com a papelada que preenchia do que com a
mulher à sua frente.
- Moro no distrito do Tuiuiú.
- Sei, lá não é nossa área. A senhora precisa
procurar a Unidade de Saúde da Família da área rural.
- Eu sei, mas é que aqui eu soube que fazem o
preventivo toda sexta-feira e é o dia que eu posso vir. Disse Dona Esmeralda.
- Mas a senhora pode procurar a outra unidade,
eles lhe dão uma declaração de comparecimento, não vai perder o dia de trabalho.
- Tá bom, eu vou. Só vim mesmo porque tava
sentido uma dor no pé da barriga.
Dona Esmeralda se despediu e saiu, dando as
costas ao homem.
Esquecendo seus papeis, seus relatórios, sua
sala desmontada, o enfermeiro deixou-se recostar na cadeira por alguns
segundos, atormentado com o que tinha acabado de fazer: que inferno, pensou ele
no seu íntimo. A necessidade não tem adstrição.
Saiu correndo pela Unidade de Saúde, já vazia
àquela hora, alcançou Dona Esmeralda já na calçada, do outro lado da rua.
- Dona Esmeralda, gritou ele, arrumando o
cabelo e o jaleco branco que enroscou no portão enferrujado da unidade, onde
ficou pendurado um pedaço de pano branco e um botão.
- Pode voltar à minha sala? Vou dar um jeito de
fazer seu exame, assim não vai ter perdido sua caminhada.
6
A moça na recepção riu nervosa, irritada,
sentido o mal cheiro do homem. A moça da limpeza passou a vassoura em seus pés.
Outras pessoas, que esperavam a vez de ser atendidas, taparam as narinas.
- O que o senhor quer? Disse a recepcionista.
- Tó com dor no pé da barriga, disse o homem em
trajes maltrapilhos.
- Tá com o cartão SUS?
- Não tenho. Respondeu ele, instintivamente procurando
nos bolsos.
- Qual seu endereço?
- Eu moro na Rua, durante o dia ando por aí, de
noite durmo embaixo daquela marquise, onde a senhora me vê todo dia, quando vem
trabalhar.
- Tem comprovante de endereço?
- Tenho. A senhora pode comprovar, já que me vê
lá todo dia.
- Não é assim que funciona, tem que ter o
papel, tem que ter Agente de Saúde que lhe visita uma vez por mês. Ironizou com
um sorriso no canto da boca, a recepcionista, olhando para as usuárias,
esperando apoio moral.
Elas riram desconcertados.
- Você não pode ser atendido aqui, disse a
recepcionista. Precisa procurar o consultório de Rua. Pode ir lá no Centro, na
Secretaria de Saúde, e procurar saber aonde eles atendem.
- Mas eu moro aqui, moça, e tô com muita dor.
Insistiu o homem.
- Aqui a gente só faz saúde da família e o
senhor não tem família, tem?
7
- O seu atendimento, meu senhor, será feito no
CAIS Mangabeira. Disse a assistente administrativa da Unidade de Saúde.
- Cais, não sei onde é, eu moro faz pouco tempo
por aqui. Pode por favor me explicar onde é e o que é?
- Não sei explicar. O senhor procura, disse a
mulher, já virando-se para atender à próxima pessoa.
- Então não precisa explicar, só escreve aqui o
endereço que eu acho. Disse conformando-se o rapaz.
- Eu não sei o endereço e nem tenho tempo de
procurar. O senhor que dê um jeito. Não tenho que fazer mais que isso.
8
A enfermeira da Estratégia de Saúde da Família
disse, referindo-se a mulher que andava pela cidade enrolada em um colchão
velho:
- Eu não conheço esse caso.
O Conselheiro tutelar afirmou, sem nem ao menos
sentar:
- É caso de interdição, não sei mais o que
fazer com essa senhora.
A diretora do Centro de Assistência
Psicossocial, referindo-se ao mesmo caso, disse:
- Já conheço a situação faz anos. A paciente
não adere ao tratamento. Não tem nada que o CAPS possa fazer.
A assistente social, muito consciente,
enfatizou:
- Eu já fiz tudo que podia por ela. Agora só
posso rezar.
9
Na reunião, o coordenador da equipe disse:
- Vamos fazer uma visita à delegacia. Parece
que tem muita gente lá precisando de cuidados. E como tá em nossa área, vamos
lá ver.
Ninguém questionou, ninguém estranhou, ninguém
disse que “bandido bom é bandido morto”.
- Que dia vai ser? Perguntou a técnica de
enfermagem, com a agenda na mão.
A nutricionista perguntou:
- Vamos só uma vez ou vamos voltar outros dias?
- Eu sempre achei que deveríamos visitar a
delegacia, tem preso de todo lado lá, e a maioria nem família tem aqui na
cidade. Disse o Agente de Saúde da microárea da delegacia.
Depois da reunião a Médica da equipe chamou o
coordenador para conversar. Sozinhos em sua sala, ela disse:
- Tem tanta coisa para fazer e você ainda
inventa mais isso? Desabafou deixando-se cair na cadeira, muito irritada.
- Por que não falou isso na frente de todos os
outros?
- Não vou me expor na frente dessa gente.
- Esse é o nosso trabalho. Disse sem rodeios o
coordenador, já abrindo a porta para sair da sala.
10
A nova enfermeira, contratada recentemente para
substituir o colega que fora demitido por não fazer campanha eleitoral, vendo a
programação da equipe para o mês, disse:
- Por que a reunião com as gestantes é feita no
salão paroquial da igreja?
- As irmãs já tinham um grupo de gestantes,
disse a Agente Comunitária de Saúde, e para não ter dois grupos, o enfermeiro
achou melhor fazer os encontros junto com elas.
- Eu não vou fazer assim. Disse secamente a
enfermeira. Vamos montar nosso próprio grupo.
Antes que a Agente de Saúde pudesse abrir a
boca para argumentar, a enfermeira novata disse:
- Eu nem sou católica.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa
das 10 às 6tas-feiras]
29 agosto 2014
O CUIDADO
Ernande Valentin do Prado
O ser
humano nem sempre apresenta um comportamento lógico. Suas atitudes não podem
ser medidas, pesadas, quantificadas e no final obter-se uma resposta padrão.
Cada ser humano é único e terá, consequentemente, comportamentos distintos para
um número infinito de acontecimentos.
Há alguns anos li no
Jornal Folha de São Paulo a seguinte notícia:
FEIRANTE É
LEVADO PELA ENCHENTE APÓS SALVAR MULHER
Na noite de quarta-feira, o feirante
Italo Cicero Mendonça do Carmo, 24, desapareceu na enxurrada, após resgatar uma
mulher que estava com o carro preso na enchente em uma avenida da zona sul de
SP. Até as 21h de ontem, os bombeiros não haviam localizado o feirante, que
pode ser a 76ª vítima das chuvas de verão no Estado. De acordo com Aleph
Mendonça Avelino, 16, sobrinho da vítima que estava no local, o tio teria
tropeçado em um tronco de árvore submerso na água.
Na
época era responsável pelas aulas de História de Enfermagem em um faculdade na
Bahia e passei a utilizar esse texto como ponto de partida para discutir o
cuidado.
Acho válido
dizer que nem todos os seres humanos na mesma situação de Ítalo Cícero fariam a
mesma coisa que ele fez, mas outra dezena faria. Para maioria talvez o mais
básico seja preservar-se, pois em primeiro lugar vem à própria sobrevivência,
até porque muito pouco se pode fazer estando morto. Mas ao ver uma mulher na
rua correndo risco de vida Ítalo Cícero jogou-se a ajudá-la. Talvez não tenha
percebido o risco que corria, talvez fosse alto autoconfiante demais para medir
os riscos, talvez o amor ao próximo fosse maior e mais urgente que
preservar-se. Mas será que neste momento essas explicações são tão importantes?
Torralba (1998) in: Waldow (2008) diz que a natureza do comportamento humano só
pode ser explicado pela Antropologia Filosófica. Collière in Oguisso (2007) diz
que o cuidado destina-se a preservar e manter a vida, seja individual ou
coletivamente. Isso pode explicar parte do comportamento de Ítalo: agiu para
preservar a vida do próximo. Outra possibilidade que pode ter impulsionado
Ítalo ao salvamento de uma desconhecida é a força interior que move o ser
humano para o bem e o correto. Nas palavras de Boff (1999, p. 33) essa força
interior é o cuidado. Segundo este autor o “cuidado é mais que um ato; é uma
atitude.” Atitude esta que provavelmente impulsionou Ítalo. Haidegger
(1889-1976) in: Boff (1999) diz que o cuidado é ainda anterior a atitude, pois
se encontra na raiz do ser humano. Outra possibilidade, que não exclui as
anteriores, mas apenas complementa, tem a ver com o que diz Waldow (2008) ao
afirmar que o cuidador nem sempre escolher cuidar, mas é acionado por uma força
moral. Força esta que Ítalo parecia ter em abundancia.
Essa
ação moral é comum a todo ser humano. Alguns têm mais outros menos. Alguns
conseguem enxergar mais possibilidades de exercer o cuidado outros menos, mas
todos a possuem, mesmo que não a exerça com frequência. Embora muitos autores,
como Waldow (1998, 2004, 2007,2008), Leininger (1991) Watson (2005) consideram
o cuidado a essência da Enfermagem, não devemos esquecer que cuidado, como já
frisado por Boff e haidegger, consideram todo ser humano capaz de cuidar. O que
difere o cuidado de Enfermagem do cuidado humano em si é que a Enfermagem o
exerce de forma profissional. Oguisso (2007) diz que o cuidado é o objeto da
profissão. Collière in: Oguisso (2007) diz que o cuidado nem sempre pertenceu a
Enfermagem ou a qualquer profissão, mas a todo ser capaz de cuidar. O Pequeno
Príncipe diria que o Cuidado é invisível por ser essencial, uma vez que,
concordando com Boff, Collière, Waldow, entre outros, o cuidado é essencial e
“o essencial é invisível aos olhos.”
O
cuidado pode ser exercido com os seres humano, com os animais, com a flora, com
o planeta, envolvendo a dimensão material e espiritual. Boff (1999) fala que é
necessário ter cuidado com a terra enquanto uma entidade viva, enquanto a casa
da humanidade. Segundo ele se não cuidamos de nossa casa não estamos cuidando
do homem. Quando a gente acaba a nossa toalete pela manhã, começa a fazer com
cuidado a toalete do planeta, resume o Pequeno Príncipe. Boff ainda menciona a dimensão social ao enfatizar que o mundo passa por uma crise moral
que leva crianças, idosos e etnias inteiras a fome e ao abandono. Prado, Santos
e Cubas (2009) descreve essa mesma sensação ao discutir o cuidado com o próximo:
Hoje
vivemos um tempo
em que o
descaso está generalizado,
seja no âmbito institucional com
os pobres serviços
de saúde prestado
pelo estado ou
pelos convênios médicos e sua
filosofia do lucro máximo com
atenção mínima; seja no âmbito da família, com as milhares de crianças
abandonadas logo ao nascer ou nos primeiros anos de vida ou ainda com
os idosos internados
em casas de
repouso e nunca
visitados pelos filhos
e parentes. Ou ainda a violência generalizada, tanto por parte de facções
criminosas, quanto por parte dos órgãos de segurança pública ou privada.
Poderíamos ainda citar os inúmeros conflitos
armados ao redor do mundo ou a exploração
sistemática da África pelos
países centrais, deixando para
trás discursos humanitários
e deixando um
rastro de sangue
e abandono.
Cuidar,
embora seja a tarefa primeira da Enfermagem, como descrito por Waldow (2008),
ainda deixa a desejar. Muitos profissionais confundem cuidar com executar
procedimentos. Sendo cuidado mais que uma atitude moral, não pode ser
confundido com “fazer” embora o fazer seja parte indissociável do cuidado de
Enfermagem. Waldow (2006) in: Waldow (2008, p. 11) diz que “na verdade o
cuidado é uma arte que pressupõe a técnica.” Pode se apreender disto que a
técnica, o procedimento pode ser executado sem cuidado, apenas com o objetivo
de sanar uma necessidade física e profissional, mas que isto nem sempre se
traduz em cuidado, como pode ser visto no texto o estado das coisas. No filme o nome do Cuidado, um dos personagens
diz “que não se cuida de quem não se conhece”, sentimento que Maturana também
se refere ao discutir ética. Porém procedimentos podem ser executados em
desconhecidos. “só cuida quem sabe o nome do cuidado.” Prado, Falleiros e Mano (2011) dizem, para
finalizar, que cuidado é escuta.
E
para você, cuidado é o que? Qual sua explicação para o que fez Ítalo Cícero?
Referencias:
BOFF, Leonardo. Saber Cuidar, Ética do Humano - Compaixão Pela Terra. 4.
ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
FOLHA DE SÃO PAULO.
Feirante é levado pela enchente após
salvar mulher. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1902201022.htm> Acessado em:
23 fev. 2009.
LAMA, Leo. O nome do cuidado (vídeo).
2019.
MATURANA, R. Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. 203p.
OGUISSO, Taka. (Org.) Trajetória histórica e legal da enfermagem. 2. Ed.
Barueri-SP: Manole, 2007.
PRADO, E. V. D.; FALLEIRO, L. D. M.; MANO., M. A. Cuidado, promoção de
saúde e educação popular – porque um não pode viver sem os outros. Rev APS, v.
14, n. 4, p. 464-471, 2011
PRADO, Ernande Valentin; SILVA, Adilson
Lopes; CUBAS, Marcia
Regina. Educação em saúde: utilizando rádio como estratégia. 1. ed. Curitiba :
Editora CRV, 2009.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine. Pequeno Príncipe.
São Paulo: Circulo do Livro, 1994.
WALDOW, Vera Regina. Bases e princípios do conhecimento e da
arte da Enfermagem. Petrópolis: Vozes, 2008.
[Ernande
Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 todas às 6tas]
20 junho 2014
SAMUEL[1]
No texto iniciado em 06
de junho de 2014. Na primeira semana refleti sobre a doença de meu pai e os
primeiros dias internado. A perplexidade com os cuidados (ou coma falta).
Ernande Valentin do Prado
No inicio do
quarto-dia fomos transferido de setor. Onde estávamos era maior, porém com
enfermarias com três leitos. Mas o paciente do lado tinha erisipela na perna
direita e a médica resolveu que não era bom o convívio dos dois: um debilitado
por problemas renais e outro com uma infecção razoavelmente grave e
potencialmente infectante. Despedimo-nos do ex-companheiro de quarto e fomos
embora para outro setor.
Não sei dizer
por que, mas colegas de quarto se apegam muito. Talvez seja o convívio forçado,
o infortúnio compartilhado. O rapaz ao lado, carcereiro de profissão, ficou
muito sentido em perder a companhia de meu pai. Visivelmente emocionado, com os
olhos cheios de lágrimas disse, desejou tudo de bom e disse que depois da alta
iria lhe visitar em casa. Fato que realmente aconteceu semanas depois da alta.
No mês de janeiro.
Será
que alguém já parou para ver quanta vida existe em uma enfermaria? Os
doentes se ajudam o tempo todo. Vigiam-se, cuidam-se. Envolvem-se com seus
dramas. Quem está melhor cuida do outro, dá de comer, beber, grita pela
Enfermeira, revolta-se pela demora. Coisas parecidas fazem os acompanhantes.
Esta com um, mas acabam adotando os outros.
É
impressionante como há mais vida em uma Enfermaria do que em quartos e
apartamentos individuais (ao menos para maioria).
Ao
chegar à nova ala a primeira impressão foi muito ruim. Um fluxo estranho com
entradas e saídas de todo lado e o posto de enfermagem no meio como se fosse um
corredor improvisado. Meu pai disse: “preferia ficar no outro setor”.
Passamos
a noite. Meu pai teve três ou quatro crises de “agonia” durante a madrugada e
não conseguiu dormir. Ai, pela manhã, entrou Samuel6... Pequeno, de
branco, acompanhado de um colega mais tímido. Tinha nas mãos uma prancheta com
as fichas de controle, uma caneta na outra mão, termômetro, estetoscópio em
volta do pescoço e o esfigmomanometro. Entrou discreto, mas logo estava fazendo
barulho entre os oito pacientes. Brincava com um, chamava o outro de porco por
não querer tomar banho, ameaçava tirar o bigode de outro na pinça, pedia o
relógio emprestado para um terceiro, tirava duvida de um quinto, animava um
acompanhante acanhado no canto. Falava alto com todos, convidava para festa de
aniversário de outro paciente “condenado” a ficar internado mais tempo.
Solicitava medicação para outro com sinais alterado. Contava para outro a
vez que foi assaltado no dia de natal.
No
leito do meu pai pediu a receita com todas as medicações, doses e horários que
tinha em casa. Disse-lhe que no outro setor não estavam dando nenhuma medicação
de casa, mas ele informou que a Enfermeira (do setor) iria querer saber, por
isso estava se adiantando. Pediu para eu conversar com ela, falar das
particularidades, da alimentação.
Samuel
conversou com meu pai, pergunto, falou, mediu, viu, fez piada. Elogiou a
presença da família e disse que isso é muito importante para o restabelecimento
do doente. Samuel deixou meu pai falar, ouviu minhas dúvidas e explicações, não
apresou os procedimentos, não teve pressa, não deu desculpas.
Com seu jeito
“amalucado”, Samuel cuidou daquela gente toda no quarto. E fiquei feliz, dentro
da tristeza de estar em um hospital, vendo a Enfermagem cuidando, tendo
consideração com o outro.
“A
recuperação dos pacientes parece ser mais rápida, e a experiência no hospital é
considerada mais agradável quando o relacionamento enfermeira-paciente é
percebido como terapêutico ou restaurador. Encontro de cuidado, em que existe
um relacionamento de proximidade, confiança e aceitação, envolvem crescimento,
esperança e amor.
No posto de
Enfermagem, aquele que parece um corredor, vi a Enfermeira do setor sentada por
uns 15 segundo. Discutia com um profissional que parecia ser um médico
residente. Depois levantou ágil, apesar do tamanho e disse: “pode usar o
telefone, mas não demora, tem que ser rapidinho”. Quando terminei a ligação,
ela já estava debruçada sobre o leito de alguém de outra enfermaria.
Voltei para o
leito de meu pai e daí a pouco entra a Enfermeira acompanhada de um médico
muito alto. Ficaram conversando com um paciente. Falaram sobre uma cirurgia que
teria de fazer. Ela participava do assunto, não apenas ouvindo, mas
esclarecendo, explicando os procedimentos, estando disponível. A Enfermeira não
se omitia ou limitava a repassar as responsabilidades. Ela cuidava com
responsabilidade. Antes de sair olha para todo lado e diz, agora fale com
aquele ali, apontando para outra pessoa.
Na hora do
almoço entrou o auxiliar... Ficaram batendo papo, fazendo piada, dando atenção
para todo mundo.
Não sei se é
ou vai ser sempre assim, mas as Enfermeiras deste setor não se omitem, não
entram na enfermaria apenas para serem vistas, apesar de ser tão bonitas e
elegantes quanto a do outro setor. Alias todas as Enfermeiras e Auxiliares ou
Técnicas de Enfermagem deste hospital são muito elegantes. É importante frisar que a Enfermeira do
plantão noturno teve o mesmo comportamento. Estudou o prontuário, verificou os
exames, tirou dúvidas, examinou o corpo, o psicológico e o espírito de meu pai
e deu o diagnóstico. Cuidou. E o mesmo comportamento seguiu-se com os
Auxiliares.
Esse
comportamento visto neste novo setor faz pensar que talvez os Auxiliares e Técnicos
tanto este quanto os outros, apenas respondem ao estímulo da coordenação.
Coordenação fascista, auxiliares fascistas. Coordenação participativa,
auxiliares dedicados e motivados.
O sistema de
serviço aqui também é o “linha de montagem do cuidado”, porém não é
tão ruim quanto o outro. Aqui o cuidado não é negado em nome dos registros, mas
os registros fazem parte dos cuidados. Realizando cuidados integrais, com a
consideração que estes dois membros da Enfermagem já demonstraram ter, poderia
ser bem melhor, tenho certeza, mas já não é tão revoltante quando antes.
NINGUÉM FICA DOENTE SOZINHO
Ninguém fica
doente sozinho. Ou fica, mas só se já vivia sozinho antes.
Meu pai nunca
teve tempo de ficar doente. Apesar de tudo que o MAC Gyver saber ter
aprendido com ele, meu pai nunca foi um homem que soubesse ganhar dinheiro.
Muito pelo contrario, sempre conseguia perder dinheiro em seus negócios. Por
uma série de questões ligadas ao seu temperamento, nunca foi de trabalhar muito
tempo em um mesmo emprego. A satisfação pessoal tinha que existir para ele. Ele
gosta de ser o “gênio” que é, mesmo não ganhando dinheiro.
Meu pai não
escreve bem, nem lê. Nem anda vendo tão bem quanto antes. Toda vida trabalhou
demais. Tinha hora para começar a trabalhar, mas não para parar. Nem para
comer, o que irrita muito minha mãe, diga-se.
Nos últimos
meses tem trabalhado como pedreiro, carpinteiro, azulejista, enfim, faz o que
aparece. Faz apenas para pagar as contas e ir vivendo. Sonha em viver de
pesca. Quer se aposentar e morar em uma cidade a beira do Rio “Paranazão”. Só
pescar todo dia.
Os
preparativos estavam sendo feitos para isso. O tratamento para eliminar o tumor
de seio de minha mãe estava terminando quando ele caiu doente. Agora ele esta
na cama aqui do meu lado. Esta dormindo, calmo, sem estar inventando nada, sem
estar com as mãos ocupadas, sem contar uma história qualquer. Isso é muito
difícil de ver, ouvir e sentir. Mas é assim que estamos vendo meu pai agora.
Ele não é mais o “super-homem”, não é mais super-resistente a tudo. Parei de me
chocar o vendo chorar. Minha irmã não. Ela ainda fica extremamente abalada.
Chora junto, fica mais doente que ele. A mesma coisa pode ser dita de minha
mãe.
Meu pai
doente... Minha família toda doente. Minhas irmãs, minha mãe. Minha tia, irmã
dele, meu tio, cunhado dele, amigo e companheiro de pesca. O plano era viver de
pesca juntos. Os sobrinhos estão em casa. Os netos. Algumas irmãs de minha mãe,
sobrinhos, estão todos lá, todos ressaltados com as noticias, todos com medo
quando o telefone toca. E o telefone toca o tempo todo. São amigos, parentes,
conhecidos que ligam para saber notícias. Acompanham passa a passo o
drama.
Se na
experiência de Nelson Rodrigues o Mineiro só é solidário no
câncer[2],
ao menos na minha, que sou de família mineira, vejo que estão todos muito
solidários. Todos muito unidos em torno da dor, da dificuldade, da tristeza de
ver um parente, uma amigo, uma lenda torna-se humana e tão falível quanto
todos.
Mas essa
história não termina aqui...
[Ernande Valentin do Prado publica na
Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Continua.
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