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21 outubro 2016

DEZ HISTÓRIAS SOBRE EQUIDADE

                                                                                                                                                                    Ernande Valentin do Prado
Destaque. Ernande, 2015

1

As oito horas ela atendeu a gestante que já estava agendada e a encaminhou para fazer os exames de sangue no laboratório do centro da cidade. Escreveu o endereço, explicou a hora de chegar e a preparação necessária.
As oito e quarenta e cinco atendeu outra gestante, também agendada. Encaminhou para fazer os mesmos exames no mesmo laboratório do centro da cidade. Escreveu o endereço, explicou a hora de chegar, que ônibus pegar detalhadamente e deu os vales-transportes. Falou sobre a preparação necessária.
As dez horas visitou Marina, com 36 semanas de gestação. Ela havia faltado a consulta. Em sua casa, depois de uma rápida conversa, concluiu que era preciso chamar o Samu. Quando a ambulância chegou, foi com ela para o hospital e acompanhou seu atendimento. Só voltou para Unidade de Saúde quando deixou Marina de volta em casa.

2

A enfermeira, da Estratégia Saúde da Família, diante da indagação do estudante, disse, sem rodeios:
- Não cuido de doido. Para isso tem o CAPS.
3
Na reunião em que se discutiu a divisão das tarefas necessárias para receber os recursos do incentivo financeiro do PMAQ, ele não apareceu. Disse que estava sentindo-se mal. Na reunião, realizada três meses depois, para comemorar o bom trabalho realizado por (quase) todos, ele compareceu e disse:
- A divisão não pode ser igual. Eu estudei mais, tenho mais responsabilidades. Acho que tenho direito a uma fatia maior.

4

Dona Conceição morava no morro do penteado, no tempo em que quem mandava era o Ladeira. Bom moço, nunca matou ninguém sem motivo, dizia ela.
Depois que os traficantes foram expulsos, chegou água encanada, saneamento básico, asfalto nas ruas e até uma loja das Casas Bahia e uma Agência da Caixa Econômica Federal. Algumas casas foram desapropriadas, na parte mais baixa e construíram praças, uma academia da terceira idade.
- Eu ia lá quase todo dia me exercitar. Disse ela.
Do lado de sua casa foi erguida a Unidade de Saúde, que tem o nome da mãe do governador, de quem Dona Conceição nunca ouviu falar que já tenha ido ao menos uma vez na comunidade.
Semana passada ela recebeu o primeiro carne do IPTU.
- Um luxo, nunca achei que ia ter que pagar IPTU de meu barraco.
Agora a favela tá urbanizada e, além do IPTU, tem a conta de água, esgoto e energia, que antes não tinha. Com o dinheiro da aposentadoria, sua única fonte de renda, ela acha que não vai conseguir dar conta de continuar morando no morro. 
- Dá dó, sempre morei aqui, mas acho que vou ter que vender minha casinha.
Dona Conceição ouviu falar de um Alemão que tá comprando tudo que acha por ali e fazendo hotel. Ele paga bem, lhe contaram.
- É triste, sempre morei aqui! Disse dona Conceição, olhando para o chão. Mas acho que vou ter que me mudar para mais longe, ouvi  dizer tão formando, lá para os arredores do rio, uma nova comunidade. Não tem rua para lá, nem transporte, mas aqui também não tinha, quando vim prá cá. Conforma-se Dona Conceição.

 5

- Para realizar festa não tem dinheiro, disse o coordenador.
Mas como as crianças mereciam, os profissionais se cotizaram e compraram bolo, material de decoração, presentes e contrataram uma banda de forró. As famílias e as crianças se divertiram a rodo. Os profissionais também. Até Dr. Fábio, sempre tão sério e distante, dançou com a presidente do conselho local de saúde.
Lá pelas 11 horas chegou a mulher do prefeito, toda elegante. Discursou e tirou foto com as crianças, com os servidores.
As fotos da festa que ela fez já estão nas redes sociais.

6

Na fila ele foi ouvindo as respostas da recepcionista da Unidade de Saúde do Bairro:
Para a senhora de cabelos grisalhos e vestido florido, ela disse:
- Não tem captopril. Volte semana que vem.
Para jovem senhora, de cabeços presos e shorts jeans, ela disse:
- Fazer preventivo não dá esse mês, tá faltando o material de coleta e já faz tempo.
Para gestante, um pouco acima do peso, vestido discreto até a canela, ela disse:
- Metildopa? Ih!, tadinha, acabou agorinha. Se eu soubesse que você vinha, tinha guardado para você.
Para a senhora, de cabelos pretos, bem pintados, óculos escuros, ela disse:
- Azatioprina. Nem sei que medicação é essa. Aqui não tem não.
Mas a mulher respondeu:
- Então se informa, minha filha. Eu sou desembargadora do estado e tenho uma ordem judicial para receber essa medicação agora.

7

- A gente recebeu uma doação de medicações, vem ver. Disse a Técnica de Enfermagem, enfiando a mão nas caixas de papelão.
- Veja isso aqui! Disse o colega: é super caro, nunca tem no SUS.  Vou levar, às vezes eu uso.
- Minha irmã usa esses aqui, vou levar também. Disse a outra.

8

Semana passada, o filho de seu Clovis, vendedor de frutas de porta em porta, foi julgado pela acusação de ter atropelado Silvia Maria, estudante de 15 anos em cima da faixa de pedestres e não prestar socorro.
Vai ficar preso por três anos.
Na mesma semana, o filho do Seu Ademar, da construtora Casa Forte, foi julgado pelo mesmo crime: atropelou Gorete, empregada doméstica de 42 anos em cima da calçada, na mesma rua. Também não prestou socorro. Testemunhas dizem que ele, antes de atropelar a mulher, ainda gritou: sai da frente, louca. O agravante:  ele não tinha carteira de motorista e estava embriagado, segundo três testemunhas diferentes.
Vai prestar serviços comunitários por seis meses.

9

Aqui não se discrimina ninguém, falou o homem vestido de banco e com ar de autoridade. E continuou seu discurso matinal: todo mundo vai ser atendido por ordem de chegada, até idosos, crianças e gestantes, por que não é justo passar ninguém na frente.

 10

- Sebastião Antenor de Souza. Gritou uma vez, bem alto, o médico de dentro do consultório. Ninguém se mexeu na sala de espera. Por isso ele gritou de novo:
- Sebastião Antenor de Souza.
- O que deu neste médico hoje, ele nunca foi de chamar ninguém, o próximo é que sempre entra por conta própria? Reparou Dona Raimunda e comentou com as Técnicas de Enfermagem, que rondavam ali pela recepção.
- Vou lá ver. Disse Amanda, a Técnica de Enfermagem. Mas antes de chegar no consultório ouviu de novo, agora mais alto ainda:
- Sebastião Antenor de Souza.

- Doutor, não tem nenhuma Sebastião aqui, só tem a Dona Raimunda e a Walleska, do salão de beleza, esperando atendimento. Disse a Técnica, mostrando uma folha com a lista de espera.  

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

30 setembro 2016

DEZ HISTÓRIAS SOBRE UNIVERSALIDADE

Folhas molhadas. Ernande, 2015.
Ernande Valentin do Prado

1

Dona Cleide acordou bem cedo na quarta-feira. Finalmente juntou todas as coragens necessárias: foi fazer o bendito exame Preventivo do Câncer de Colo de Útero.
Caminhou até a Unidade de Saúde de seu bairro, que não ficava longe. A moça da recepção, sem desviar o olhar da tela do computador, disse:
- Hoje não vai ter exame porque o ar condicionado da sala não tá funcionando.

2

Marilda passou a noite com dor de dente. Um siso insistia em rasgar sua gengiva. Fez febre e jura que teve alucinações com Freddy Krueger lhe perseguindo. O dia nem tinha amanhecido completamente quando chegou à Unidade de Saúde aonde sabia que poderia ser atendida como fora de área, já que morava em local descoberto, como eles diziam.
Viu quando a dentista chegou, por volta as oito e meia, já a conhecia de outros atendimentos. Até bom dia lhe respondeu. A odontóloga, moça bem novinha, parecendo recém formada, entrou no consultório e em alguns minutos saiu e anunciou:
- Hoje não vou atender ninguém: tá faltando touca de novo.
3
Luzia caminhou da Cohab 4 até o Centro de Saúde, puxando pela mão sua escadinha de crianças: Jeferson de 8 anos, Clarice de 6 anos, Simone de 4 anos e Renato de 3 anos. Uma fotografia linda de ver. Todos arrumadinhos, limpinhos e comportados. Ela vinha na frente, com um bolsa atravessada no peito.
Na recepção a moça perguntou:
- Cadê o cartão SUS das crianças?
Luzia procurou na bolsa, virou, revirou. Despejou todo o conteúdo no balcão e não achou.
- Sem cartão SUS não tem como achar o prontuário, mas pode voltar mais tarde, que tem vaga.
Luzia voltou para casa puxando sua escadinha bonita de ver, embora a moça da recepção não tenha notado, ocupada que estava tentando convencer o segurança da unidade a comprar-lhe um perfume do catálogo da Avon.

4

Domingo Dona Sônia acordou com um derrame no olho esquerdo. Só percebeu quando olhou no espelho e viu que a parte branca do olho estava toda tomada de vermelho. Assustada foi à Unidade de Saúde. A moça da recepção, ocupada selecionando os prontuários das pessoas que estavam agendadas, nem olhou em seu rosto e foi logo dizendo:
- Hoje não tem mais vaga.
Dona Sônia, que não era de insistir, voltou para casa. No dia seguinte, bem cedo, estava na unidade de saúde. Do portão foi despachada pela mocha responsável pela limpeza:
- Nem adianta insistir: hoje a médica só atende gestantes.
Foi para casa mais uma vez. No caminho passou à igreja e rezou um pai nosso e uma Ave Maria. No dia seguinte, ainda acreditando, foi à unidade de saúde. Ao chegar estranhou, não encontrou ninguém aguardando ser atendido. Na recepção só a moça do primeiro dia:
- Hoje a médica está fazendo visita domiciliar.
- Minha fia, disse calmamente Dona Sônia, eu tô precisando muito de ver a médica.
- Mas hoje é dia de visita domiciliar.
- Eu espero ela voltar, minha fia...
- Ela nem passa aqui hoje, vai direto de casa para as visitas e de lá vai embora.
- Não tem outra pessoa com quem eu falá?
- Não, a enfermeira vai junto com ela para as visitas e a Técnica de Enfermagem tá doente, não veio hoje.
Dona Sônia saiu, de novo, da unidade de saúde sem atendimento, por via das dúvidas, no caminho de casa, passou na igreja.

 5

Dona Esmeralda bateu à porta do Enfermeiro. Lá de dentro ouviu a voz:
- Pode entrar, tá aberta.
A mulher, de pele muito bronzeada, rugas ao redor dos olhos, mais de um metro e oitenta de altura, aparentando uns 45 anos, entrou tímida. Não sentou na cadeira a sua frente. Falou em pé.
- Eu queria fazer o preventivo de câncer.
- Nossa! Admirou-se o enfermeiro, exageradamente, talvez por já ser quase meio dia.  E acrescentou:
- Qual seu nome?
- Esmeralda.
- Eu acabei de terminar as coletas, já desmontei a sala. Agora só na próxima semana.
- Eu me atrasei. Ia vir de carona com o ônibus das crianças, mas não consegui e vim caminhando.
- Aonde a senhora mora? Questionou o Enfermeiro, ainda mais preocupado com a papelada que preenchia do que com a mulher à sua frente.
- Moro no distrito do Tuiuiú.
- Sei, lá não é nossa área. A senhora precisa procurar a Unidade de Saúde da Família da área rural.
- Eu sei, mas é que aqui eu soube que fazem o preventivo toda sexta-feira e é o dia que eu posso vir. Disse Dona Esmeralda.
- Mas a senhora pode procurar a outra unidade, eles lhe dão uma declaração de comparecimento, não vai perder o dia de trabalho.
- Tá bom, eu vou. Só vim mesmo porque tava sentido uma dor no pé da barriga.
Dona Esmeralda se despediu e saiu, dando as costas ao homem.
Esquecendo seus papeis, seus relatórios, sua sala desmontada, o enfermeiro deixou-se recostar na cadeira por alguns segundos, atormentado com o que tinha acabado de fazer: que inferno, pensou ele no seu íntimo. A necessidade não tem adstrição.
Saiu correndo pela Unidade de Saúde, já vazia àquela hora, alcançou Dona Esmeralda já na calçada, do outro lado da rua.
- Dona Esmeralda, gritou ele, arrumando o cabelo e o jaleco branco que enroscou no portão enferrujado da unidade, onde ficou pendurado um pedaço de pano branco e um botão.
- Pode voltar à minha sala? Vou dar um jeito de fazer seu exame, assim não vai ter perdido sua caminhada.

6

A moça na recepção riu nervosa, irritada, sentido o mal cheiro do homem. A moça da limpeza passou a vassoura em seus pés. Outras pessoas, que esperavam a vez de ser atendidas, taparam as narinas.
- O que o senhor quer? Disse a recepcionista.
- Tó com dor no pé da barriga, disse o homem em trajes maltrapilhos.
- Tá com o cartão SUS?
- Não tenho. Respondeu ele, instintivamente procurando nos bolsos.
- Qual seu endereço?
- Eu moro na Rua, durante o dia ando por aí, de noite durmo embaixo daquela marquise, onde a senhora me vê todo dia, quando vem trabalhar.
- Tem comprovante de endereço?
- Tenho. A senhora pode comprovar, já que me vê lá todo dia.
- Não é assim que funciona, tem que ter o papel, tem que ter Agente de Saúde que lhe visita uma vez por mês. Ironizou com um sorriso no canto da boca, a recepcionista, olhando para as usuárias, esperando apoio moral.
Elas riram desconcertados.
- Você não pode ser atendido aqui, disse a recepcionista. Precisa procurar o consultório de Rua. Pode ir lá no Centro, na Secretaria de Saúde, e procurar saber aonde eles atendem.
- Mas eu moro aqui, moça, e tô com muita dor. Insistiu o homem.
- Aqui a gente só faz saúde da família e o senhor não tem família, tem?

7

- O seu atendimento, meu senhor, será feito no CAIS Mangabeira. Disse a assistente administrativa da Unidade de Saúde.
- Cais, não sei onde é, eu moro faz pouco tempo por aqui. Pode por favor me explicar onde é e o que é?
- Não sei explicar. O senhor procura, disse a mulher, já virando-se para atender à próxima pessoa.
- Então não precisa explicar, só escreve aqui o endereço que eu acho. Disse conformando-se o rapaz.
- Eu não sei o endereço e nem tenho tempo de procurar. O senhor que dê um jeito. Não tenho que fazer mais que isso.

8

A enfermeira da Estratégia de Saúde da Família disse, referindo-se a mulher que andava pela cidade enrolada em um colchão velho:
- Eu não conheço esse caso.
O Conselheiro tutelar afirmou, sem nem ao menos sentar:
- É caso de interdição, não sei mais o que fazer com essa senhora.
A diretora do Centro de Assistência Psicossocial, referindo-se ao mesmo caso, disse:
- Já conheço a situação faz anos. A paciente não adere ao tratamento. Não tem nada que o CAPS possa fazer.
A assistente social, muito consciente, enfatizou:
- Eu já fiz tudo que podia por ela. Agora só posso rezar.

9

Na reunião, o coordenador da equipe disse:
- Vamos fazer uma visita à delegacia. Parece que tem muita gente lá precisando de cuidados. E como tá em nossa área, vamos lá ver.
Ninguém questionou, ninguém estranhou, ninguém disse que “bandido bom é bandido morto”.
- Que dia vai ser? Perguntou a técnica de enfermagem, com a agenda na mão.
A nutricionista perguntou:
- Vamos só uma vez ou vamos voltar outros dias?
- Eu sempre achei que deveríamos visitar a delegacia, tem preso de todo lado lá, e a maioria nem família tem aqui na cidade. Disse o Agente de Saúde da microárea da delegacia.
Depois da reunião a Médica da equipe chamou o coordenador para conversar. Sozinhos em sua sala, ela disse:
- Tem tanta coisa para fazer e você ainda inventa mais isso? Desabafou deixando-se cair na cadeira, muito irritada.
- Por que não falou isso na frente de todos os outros?
- Não vou me expor na frente dessa gente.
- Esse é o nosso trabalho. Disse sem rodeios o coordenador, já abrindo a porta para sair da sala.

10

A nova enfermeira, contratada recentemente para substituir o colega que fora demitido por não fazer campanha eleitoral, vendo a programação da equipe para o mês, disse:
- Por que a reunião com as gestantes é feita no salão paroquial da igreja?
- As irmãs já tinham um grupo de gestantes, disse a Agente Comunitária de Saúde, e para não ter dois grupos, o enfermeiro achou melhor fazer os encontros junto com elas.
- Eu não vou fazer assim. Disse secamente a enfermeira. Vamos montar nosso próprio grupo.
Antes que a Agente de Saúde pudesse abrir a boca para argumentar, a enfermeira novata disse:
- Eu nem sou católica.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

29 agosto 2014

O CUIDADO

Ernande Valentin do Prado


O ser humano nem sempre apresenta um comportamento lógico. Suas atitudes não podem ser medidas, pesadas, quantificadas e no final obter-se uma resposta padrão. Cada ser humano é único e terá, consequentemente, comportamentos distintos para um número infinito de acontecimentos.
Há alguns anos li no Jornal Folha de São Paulo a seguinte notícia:

FEIRANTE É LEVADO PELA ENCHENTE APÓS SALVAR MULHER

Na noite de quarta-feira, o feirante Italo Cicero Mendonça do Carmo, 24, desapareceu na enxurrada, após resgatar uma mulher que estava com o carro preso na enchente em uma avenida da zona sul de SP. Até as 21h de ontem, os bombeiros não haviam localizado o feirante, que pode ser a 76ª vítima das chuvas de verão no Estado. De acordo com Aleph Mendonça Avelino, 16, sobrinho da vítima que estava no local, o tio teria tropeçado em um tronco de árvore submerso na água.

Na época era responsável pelas aulas de História de Enfermagem em um faculdade na Bahia e passei a utilizar esse texto como ponto de partida para discutir o cuidado.
Acho válido dizer que nem todos os seres humanos na mesma situação de Ítalo Cícero fariam a mesma coisa que ele fez, mas outra dezena faria. Para maioria talvez o mais básico seja preservar-se, pois em primeiro lugar vem à própria sobrevivência, até porque muito pouco se pode fazer estando morto. Mas ao ver uma mulher na rua correndo risco de vida Ítalo Cícero jogou-se a ajudá-la. Talvez não tenha percebido o risco que corria, talvez fosse alto autoconfiante demais para medir os riscos, talvez o amor ao próximo fosse maior e mais urgente que preservar-se. Mas será que neste momento essas explicações são tão importantes? Torralba (1998) in: Waldow (2008) diz que a natureza do comportamento humano só pode ser explicado pela Antropologia Filosófica. Collière in Oguisso (2007) diz que o cuidado destina-se a preservar e manter a vida, seja individual ou coletivamente. Isso pode explicar parte do comportamento de Ítalo: agiu para preservar a vida do próximo. Outra possibilidade que pode ter impulsionado Ítalo ao salvamento de uma desconhecida é a força interior que move o ser humano para o bem e o correto. Nas palavras de Boff (1999, p. 33) essa força interior é o cuidado. Segundo este autor o “cuidado é mais que um ato; é uma atitude.” Atitude esta que provavelmente impulsionou Ítalo. Haidegger (1889-1976) in: Boff (1999) diz que o cuidado é ainda anterior a atitude, pois se encontra na raiz do ser humano. Outra possibilidade, que não exclui as anteriores, mas apenas complementa, tem a ver com o que diz Waldow (2008) ao afirmar que o cuidador nem sempre escolher cuidar, mas é acionado por uma força moral. Força esta que Ítalo parecia ter em abundancia.
Essa ação moral é comum a todo ser humano. Alguns têm mais outros menos. Alguns conseguem enxergar mais possibilidades de exercer o cuidado outros menos, mas todos a possuem, mesmo que não a exerça com frequência. Embora muitos autores, como Waldow (1998, 2004, 2007,2008), Leininger (1991) Watson (2005) consideram o cuidado a essência da Enfermagem, não devemos esquecer que cuidado, como já frisado por Boff e haidegger, consideram todo ser humano capaz de cuidar. O que difere o cuidado de Enfermagem do cuidado humano em si é que a Enfermagem o exerce de forma profissional. Oguisso (2007) diz que o cuidado é o objeto da profissão. Collière in: Oguisso (2007) diz que o cuidado nem sempre pertenceu a Enfermagem ou a qualquer profissão, mas a todo ser capaz de cuidar. O Pequeno Príncipe diria que o Cuidado é invisível por ser essencial, uma vez que, concordando com Boff, Collière, Waldow, entre outros, o cuidado é essencial e “o essencial é invisível aos olhos.”
O cuidado pode ser exercido com os seres humano, com os animais, com a flora, com o planeta, envolvendo a dimensão material e espiritual. Boff (1999) fala que é necessário ter cuidado com a terra enquanto uma entidade viva, enquanto a casa da humanidade. Segundo ele se não cuidamos de nossa casa não estamos cuidando do homem. Quando a gente acaba a nossa toalete pela manhã, começa a fazer com cuidado a toalete do planeta, resume o Pequeno Príncipe. Boff ainda menciona a dimensão social ao enfatizar que o mundo passa por uma crise moral que leva crianças, idosos e etnias inteiras a fome e ao abandono. Prado, Santos e Cubas (2009) descreve essa mesma sensação ao discutir o cuidado com o próximo:

Hoje vivemos  um  tempo  em  que    o  descaso  está  generalizado,  seja  no  âmbito institucional  com  os  pobres  serviços  de  saúde  prestado  pelo  estado  ou  pelos  convênios médicos e  sua  filosofia do  lucro máximo com atenção mínima;  seja no âmbito da  família, com as milhares de crianças abandonadas logo ao nascer ou nos primeiros anos de vida ou ainda  com  os  idosos  internados  em  casas  de  repouso  e  nunca  visitados  pelos  filhos  e parentes. Ou ainda a violência generalizada, tanto por parte de facções criminosas, quanto por parte dos órgãos de segurança pública ou privada. Poderíamos ainda citar os inúmeros conflitos  armados  ao  redor do mundo ou  a exploração  sistemática da África pelos  países centrais,  deixando  para  trás  discursos  humanitários  e  deixando  um  rastro  de  sangue  e abandono.
  
Cuidar, embora seja a tarefa primeira da Enfermagem, como descrito por Waldow (2008), ainda deixa a desejar. Muitos profissionais confundem cuidar com executar procedimentos. Sendo cuidado mais que uma atitude moral, não pode ser confundido com “fazer” embora o fazer seja parte indissociável do cuidado de Enfermagem. Waldow (2006) in: Waldow (2008, p. 11) diz que “na verdade o cuidado é uma arte que pressupõe a técnica.” Pode se apreender disto que a técnica, o procedimento pode ser executado sem cuidado, apenas com o objetivo de sanar uma necessidade física e profissional, mas que isto nem sempre se traduz em cuidado, como pode ser visto no texto o estado das coisas. No filme o nome do Cuidado, um dos personagens diz “que não se cuida de quem não se conhece”, sentimento que Maturana também se refere ao discutir ética. Porém procedimentos podem ser executados em desconhecidos. “só cuida quem sabe o nome do cuidado.”  Prado, Falleiros e Mano (2011) dizem, para finalizar, que cuidado é escuta.
E para você, cuidado é o que? Qual sua explicação para o que fez Ítalo Cícero?

Referencias:
BOFF, Leonardo. Saber Cuidar, Ética do Humano - Compaixão Pela Terra. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

FOLHA DE SÃO PAULO. Feirante é levado pela enchente após salvar mulher. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1902201022.htm> Acessado em: 23 fev. 2009.

LAMA, Leo. O nome do cuidado (vídeo). 2019.

MATURANA, R. Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. 203p.

OGUISSO, Taka. (Org.) Trajetória histórica e legal da enfermagem. 2. Ed. Barueri-SP: Manole, 2007.

PRADO, E. V. D.; FALLEIRO, L. D. M.; MANO., M. A. Cuidado, promoção de saúde e educação popular – porque um não pode viver sem os outros. Rev APS, v. 14, n. 4, p. 464-471,  2011

PRADO, Ernande Valentin; SILVA, Adilson Lopes; CUBAS, Marcia Regina. Educação em saúde: utilizando rádio como estratégia. 1. ed. Curitiba : Editora CRV, 2009.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine. Pequeno Príncipe. São Paulo: Circulo do Livro, 1994.

WALDOW, Vera Regina. Bases e princípios do conhecimento e da arte da Enfermagem. Petrópolis: Vozes, 2008.


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 todas às 6tas]

20 junho 2014

SAMUEL[1]


Continuação de O ESTADO DAS COISAS
No texto iniciado em 06 de junho de 2014. Na primeira semana refleti sobre a doença de meu pai e os primeiros dias internado. A perplexidade com os cuidados (ou coma falta).

Ernande Valentin do Prado

No inicio do quarto-dia fomos transferido de setor. Onde estávamos era maior, porém com enfermarias com três leitos. Mas o paciente do lado tinha erisipela na perna direita e a médica resolveu que não era bom o convívio dos dois: um debilitado por problemas renais e outro com uma infecção razoavelmente grave e potencialmente infectante. Despedimo-nos do ex-companheiro de quarto e fomos embora para outro setor.
Não sei dizer por que, mas colegas de quarto se apegam muito. Talvez seja o convívio forçado, o infortúnio compartilhado. O rapaz ao lado, carcereiro de profissão, ficou muito sentido em perder a companhia de meu pai. Visivelmente emocionado, com os olhos cheios de lágrimas disse, desejou tudo de bom e disse que depois da alta iria lhe visitar em casa. Fato que realmente aconteceu semanas depois da alta. No mês de janeiro.
Será  que alguém já parou para ver quanta vida existe em uma enfermaria? Os doentes se ajudam o tempo todo. Vigiam-se, cuidam-se. Envolvem-se com seus dramas. Quem está melhor cuida do outro, dá de comer, beber, grita pela Enfermeira, revolta-se pela demora. Coisas parecidas fazem os acompanhantes. Esta com um, mas acabam adotando os outros. 
     É impressionante como há mais vida em uma Enfermaria do que em quartos e apartamentos individuais (ao menos para maioria).
     Ao chegar à nova ala a primeira impressão foi muito ruim. Um fluxo estranho com entradas e saídas de todo lado e o posto de enfermagem no meio como se fosse um corredor improvisado. Meu pai disse: “preferia ficar no outro setor”. 
     Passamos a noite. Meu pai teve três ou quatro crises de “agonia” durante a madrugada e não conseguiu dormir. Ai, pela manhã, entrou Samuel6... Pequeno, de branco, acompanhado de um colega mais tímido. Tinha nas mãos uma prancheta com as fichas de controle, uma caneta na outra mão, termômetro, estetoscópio em volta do pescoço e o esfigmomanometro. Entrou discreto, mas logo estava fazendo barulho entre os oito pacientes. Brincava com um, chamava o outro de porco por não querer tomar banho, ameaçava tirar o bigode de outro na pinça, pedia o relógio emprestado para um terceiro, tirava duvida de um quinto, animava um acompanhante acanhado no canto. Falava alto com todos, convidava para festa de aniversário de outro paciente “condenado” a ficar internado mais tempo. Solicitava medicação para outro com sinais alterado. Contava para outro a vez que foi assaltado no dia de natal.
 No leito do meu pai pediu a receita com todas as medicações, doses e horários que tinha em casa. Disse-lhe que no outro setor não estavam dando nenhuma medicação de casa, mas ele informou que a Enfermeira (do setor) iria querer saber, por isso estava se adiantando. Pediu para eu conversar com ela, falar das particularidades, da alimentação. 
Samuel conversou com meu pai, pergunto, falou, mediu, viu, fez piada. Elogiou a presença da família e disse que isso é muito importante para o restabelecimento do doente. Samuel deixou meu pai falar, ouviu minhas dúvidas e explicações, não apresou os procedimentos, não teve pressa, não deu desculpas. 
Com seu jeito “amalucado”, Samuel cuidou daquela gente toda no quarto. E fiquei feliz, dentro da tristeza de estar em um hospital, vendo a Enfermagem cuidando, tendo consideração com o outro. 
“A recuperação dos pacientes parece ser mais rápida, e a experiência no hospital é considerada mais agradável quando o relacionamento enfermeira-paciente é percebido como terapêutico ou restaurador. Encontro de cuidado, em que existe um relacionamento de proximidade, confiança e aceitação, envolvem crescimento, esperança e amor.
No posto de Enfermagem, aquele que parece um corredor, vi a Enfermeira do setor sentada por uns 15 segundo. Discutia com um profissional que parecia ser um médico residente. Depois levantou ágil, apesar do tamanho e disse: “pode usar o telefone, mas não demora, tem que ser rapidinho”. Quando terminei a ligação, ela já estava debruçada sobre o leito de alguém de outra enfermaria. 
Voltei para o leito de meu pai e daí a pouco entra a Enfermeira acompanhada de um médico muito alto. Ficaram conversando com um paciente. Falaram sobre uma cirurgia que teria de fazer. Ela participava do assunto, não apenas ouvindo, mas esclarecendo, explicando os procedimentos, estando disponível. A Enfermeira não se omitia ou limitava a repassar as responsabilidades. Ela cuidava com responsabilidade. Antes de sair olha para todo lado e diz, agora fale com aquele ali, apontando para outra pessoa. 
Na hora do almoço entrou o auxiliar... Ficaram batendo papo, fazendo piada, dando atenção para todo mundo. 
Não sei se é ou vai ser sempre assim, mas as Enfermeiras deste setor não se omitem, não entram na enfermaria apenas para serem vistas, apesar de ser tão bonitas e elegantes quanto a do outro setor. Alias todas as Enfermeiras e Auxiliares ou Técnicas de Enfermagem deste hospital são muito elegantes.  É importante frisar que a Enfermeira do plantão noturno teve o mesmo comportamento. Estudou o prontuário, verificou os exames, tirou dúvidas, examinou o corpo, o psicológico e o espírito de meu pai e deu o diagnóstico. Cuidou. E o mesmo comportamento seguiu-se com os Auxiliares.  
Esse comportamento visto neste novo setor faz pensar que talvez os Auxiliares e Técnicos tanto este quanto os outros, apenas respondem ao estímulo da coordenação. Coordenação fascista, auxiliares fascistas. Coordenação participativa, auxiliares dedicados e motivados. 
O sistema de serviço aqui também é o “linha de montagem do cuidado”, porém não é tão ruim quanto o outro. Aqui o cuidado não é negado em nome dos registros, mas os registros fazem parte dos cuidados. Realizando cuidados integrais, com a consideração que estes dois membros da Enfermagem já demonstraram ter, poderia ser bem melhor, tenho certeza, mas já não é tão revoltante quando antes. 

NINGUÉM FICA DOENTE SOZINHO 

Ninguém fica doente sozinho. Ou fica, mas só se já vivia sozinho antes.
Meu pai nunca teve tempo de ficar doente. Apesar de  tudo que o MAC Gyver saber ter aprendido com ele, meu pai nunca foi um homem que soubesse ganhar dinheiro. Muito pelo contrario, sempre conseguia perder dinheiro em seus negócios. Por uma série de questões ligadas ao seu temperamento, nunca foi de trabalhar muito tempo em um mesmo emprego. A satisfação pessoal tinha que existir para ele. Ele gosta de ser o “gênio” que é, mesmo não ganhando dinheiro. 
Meu pai não escreve bem, nem lê. Nem anda vendo tão bem quanto antes. Toda vida trabalhou demais. Tinha hora para começar a trabalhar, mas não para parar. Nem para comer, o que irrita muito minha mãe, diga-se. 
Nos últimos meses tem trabalhado como pedreiro, carpinteiro, azulejista, enfim, faz o que aparece.  Faz apenas para pagar as contas e ir vivendo. Sonha em viver de pesca. Quer se aposentar e morar em uma cidade a beira do Rio “Paranazão”. Só pescar todo dia. 
Os preparativos estavam sendo feitos para isso. O tratamento para eliminar o tumor de seio de minha mãe estava terminando quando ele caiu doente. Agora ele esta na cama aqui do meu lado. Esta dormindo, calmo, sem estar inventando nada, sem estar com as mãos ocupadas, sem contar uma história qualquer. Isso é muito difícil de ver, ouvir e sentir. Mas é assim que estamos vendo meu pai agora. Ele não é mais o “super-homem”, não é mais super-resistente a tudo. Parei de me chocar o vendo chorar. Minha irmã não. Ela ainda fica extremamente abalada. Chora junto, fica mais doente que ele. A mesma coisa pode ser dita de minha mãe.  
Meu pai doente... Minha família toda doente. Minhas irmãs, minha mãe. Minha tia, irmã dele, meu tio, cunhado dele, amigo e companheiro de pesca. O plano era viver de pesca juntos. Os sobrinhos estão em casa. Os netos. Algumas irmãs de minha mãe, sobrinhos, estão todos lá, todos ressaltados com as noticias, todos com medo quando o telefone toca. E o telefone toca o tempo todo. São amigos, parentes, conhecidos que ligam para saber notícias. Acompanham passa a passo o drama. 
Se na experiência de Nelson Rodrigues o  Mineiro só é  solidário no câncer[2], ao menos na minha, que sou de família mineira, vejo que estão todos muito solidários. Todos muito unidos em torno da dor, da dificuldade, da tristeza de ver um parente, uma amigo, uma lenda torna-se humana e tão falível quanto todos. 
Mas essa história não termina aqui...
 [Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Continua.



[1] Este nome é fictício
[2] Da peça Bonitinha mais ordinária.

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