Mostrando postagens com marcador Cuidado. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Cuidado. Mostrar todas as postagens

29 agosto 2018

Bergamotas e o nascer, cuidar e morrer em casa*

Bergamotas e o cuidado


Nos últimos tempos tive a oportunidade e o privilégio de como ser humano e médica vivenciar o nascer, o cuidar e o morrer em casa. Vivenciando a casa, a família e as suas possibilidades e potências como espaço de cuidado. A mesma humanidade que saiu das suas casas para as clínicas, unidades, hospitais entre outros, volta para dentro das suas casas, das suas comunidades. 


A família que cuida do idoso até o último respirar, os pais que acariciam o filho jovem muito adoecido até a última contração do coração, a primeira mamada no parto feito na cama de casa, com as três gerações (avó, filha e neta) participando. Nascer a muitos olhos pode ser poético, a “celebração da vida”, mas morrer também pode ser esta celebração. Envelhecer é um sinal do tempo, apenas os privilegiados em viver podem envelhecer. E a cada dia o cuidar no núcleo da casa, familiar e comunitário faz mais sentido. É um privilégio muitas vezes dentro da carga de trabalho poder respirar nestes ambientes. 

Participei do cuidado de um senhor em uma casa muito simples, não tinha chão, algumas janelas não existiam (só os cortes no concreto), quando chegamos a familiar muito simples não tinha café para oferecer – um clássico mineiro – mas fez o que pode espremendo algumas tangerinas (ou bergamotas). A maior alegria foi a equipe tomar a sua limonada e nós podermos fazer o cuidado em um quartinho improvisado até o último minuto, foram semanas cuidando da família e olhando pelos cortes do concreto a comunidade e a visão privilegiada do cemitério, segundo ela, sabia melhor do que ninguém quem vivia e que morria na comunidade. 

Nascer também, após finalmente a dequitação (saída da placenta) poder tomar um chimarrão, cobrir a parturiente, levar café da manhã na cama. Saborear a primeira mamada, a primeira troca de roupas, o primeiro “xixi”, o primeiro sono. Assim como nascer em casa é um sinal de empoderamento - cuidar e morrer também.  Nunca esquecerei quando estava sentada na mesa da cozinha fazendo o atestado de óbito, também triste, respirando a partida e vendo (mais ouvindo) o choro da família de longe que uma senhora, a vizinha percebeu que eu estava lá triste e rapidamente serviu um copo de refrigerante de laranja para mim: “toma doutora”. Era o que tinha e o que ela sentia que poderia me cuidar. 

Outro dia, um senhor que já não podia viver na sua casa na zona rural pois os filhos tinham que trabalhar na cidade, acabou mudando-se para a cidade e estava morando com um deles. Eu, no meio do caminho, de uma outra visita domiciliar passei na frente da sua casa e colhi as bergamotas da bergamoteira do quintal. A grande vantagem de trabalhar com isso e na Atenção Primária a Saúde é que os cachorros já te conhecem, apesar de sempre ser um risco levar uma mordida no interior rural. Levei as bergamotas para ele na cidade, a consulta pouco o interessou, já cansado, mas as bergamotas essas eu vi ele rapidamente pegar uma bacia para acomodar as bergamotas. O cuidado em casa carrega esse senso de comunidade, de quintais e bergamoteiras. Bergamotas que levei também como presente para a mãe ainda grávida na volta do trabalho e que comi depois que o parto terminou. 

A casa em si não é o tocante, por definição “um espaço destinado a moradia”, mas o humano da casa que cuida, alimenta, acaricia e divide bergamotas. Esse sim faz o nascer, o viver, o cuidar e o morrer em casa ter sentido. 

*Bergamota: conhecida em outras regiões como tangerina ou mixirica.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

02 maio 2018

Porque os sinos dobram



“Preocupar-se é tão mau como ter medo. Só serve para tornar as coisas mais difíceis.” - Ernest Hemingway

- Doutora você já sentiu o cheiro da morte?
- ... Por que?
- Eu senti bem pouquinho na mãe mas depois foi embora. Mas agora está vindo de novo.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

18 abril 2018

Sororidade


- Mayara, quem me operou foi uma mulher, uma médica bem jovem, pequena e magrinha.
- Aé?
- Eu tenho medo que não operou direito meu câncer, queria uma segunda opinião de um médico.
- Por que?
- Acho que ela era residente, não era muito experiente.
- Será? Ela está trabalhando no hospital, você está com uma boa recuperação.
- É verdade.
- Certamente ela estudou e está trabalhando lá por mérito e esforço.
- Você acha?
- Também sou uma jovem, médica, pequena e magrinha, isso não quer dizer que não sabemos operar ou cuidar. Conheço ótimas cirurgiãs mulheres.
- Pois é, verdade, não tinha pensado nisso.


Abraços que pousam,
Mayara Floss


02 março 2018

LEMBRANÇAS E MEMÓRIAS

Imagem captada na intenet, 2018.
Ernande Valentin do Prado
Estou deitada numa cama. As luzes do quarto estão apagadas, mas não está totalmente escuro. Do meu lado tem uma menina, uma adolescente sem cabelos. Ela dorme. Ouço o barulho da maçaneta da porta sendo girada, como em um sonho, longe, longe, muito longe.
Minha cabeça sabe disso, a mensagem chega no cérebro, mas as pernas não obedecem, os braços ficam inertes, jogados.
- Será que a enfermeira entrou no quarto, me viu aqui?
Preciso levantar, não posso deixar que me veja aqui deitada, já me alertou várias vezes:
- não pode deitar na cama da paciente.
Isso fica martelando na minha cabeça o tempo todo:
- não pode deitar na cama da paciente.
Por tudo essa gente faz drama.
Mas não tenho forças, deixou ficar. Na minha cabeça eu levanto, espero a enfermeira em pé, alerta, bem-disposta, vigilante, cumpridora de minhas obrigações com a menina que parece muito doente, talvez até em fase terminal.
- Quem será ela?
O giro da maçaneta se completa. Fico preparada para ouvir a enfermeira dizer, com um falso carinho, uma falsa pena na voz melodiosa:
- mãezinha, não pode deitar na cama da paciente.
Quem é essa menina, é o que eu deveria estar me perguntando, mas tenho vergonha até de pensar. Sinto que deveria saber sozinha quem é ela.
A enfermeira abre a porta, não entra. Talvez não queira brigar comigo. Não hoje ou talvez eu só tenha sonhado.
Acho que não sei mais diferenciar o que são realidade, sonho, lembranças, fantasias, delírios. As lembranças veem e vão em fleches, sem que eu consiga entender, compreender, dar sentido. Como se fossem sonhos mesmos.
Quem é essa menina na cama? Por que não tem cabelo, porque há soros em sua veia, fios e monitores ligados nela? Por que estou cuidado dela? Por que a enfermeira me chamou de mãezinha? Sou a mãe desta menina ou enfermeiras chamam todo mundo de mãezinha? Por que não me sinto, melhor, por que me sinto tão incompleta?
Não sei quando isso começou. Não. Não lembro.
Muitas vezes não sei, como agora, o que são sonhos, o que são lembranças. E, quando sei que são lembranças, não sei se são minhas. Nosso cérebro é capaz de lembrar o que vivemos e o que nos contaram, o que lemos, soubemos de algum modo, então como vou saber que lembranças são minhas e quais são só coisas que sei de ouvir dos outros, de buscar no Google?
Li, mas não sei onde e nem quando nem porque, não pergunte, que a memória é uma, entre as diversas funções cognitivas do cérebro humano. Dizem que é através da memória, da associação de lembranças, de fatos, de sentimentos, emoções, coisas simples, concretas, abstratas, coisas complexas, reais, fantasiosas, com e sem importância, enfim, é pelo todo que sabemos e sabemos que sabemos ou não, porque tem coisa que sabemos, mas não sabemos que sabemos, nosso subconsciente é tão poderoso...
- Não consigo me concentrar...
São muitos pensamentos ao mesmo tempo e... algumas perguntas não tenho coragem de fazer, porque talvez não aguente saber a resposta sem desabar.
- não sei se sou assim, se minha imaginação é do tipo flutuante, com pensamentos delirantes que não se fixam em nada ou se isso também não sou eu, não sou quem fui?
Deixa eu tentar ordenar meus pensamentos: a memória é uma função complexa e fica ainda mais complexa por causa da linguagem...
- Foi assim que li.
...aprendemos coisas novas pela associação entre o que já sabemos e o que descobrimos, imaginamos, conseguimos deduzir, inferir. Quanto mais sabemos, mais capacidade de continuar aprendendo, combinando coisas em nossa cabeça, dar sentido e originalidade. Isso é bom.
- Não. Nem sempre é bom saber, lembrar. 
Será que quero mesmo saber quem é a menina na minha lembrança, que leito é esse, quando? Será que quero mesmo saber se isso é uma memória ou um sonho?
- Pensar nisso me dá uma tristeza, uma agonia, um desespero. Tenho vontade sair correndo, ir para bem longe, não ouvir, não ver, não falar com ninguém que saiba a resposta.
Se essas são lembranças, estão em minha memória, então serei capaz, mais cedo ou mais tarde, de recuperá-las, foi o que disse o médico antes de assinar a alta.
- Memórias são tão difíceis de apagar que até quando se apaga um hd, ainda é possível recuperar as informações supostamente deletadas. Com nosso cérebro não é diferente, as memórias podem e são recuperáveis, assim como nos hd de computadores.
Explicou o médico. Eu no centro, do meu lado outras pessoas. Parentes, amigos, gente que se importa comigo. Disseram.
- ...mas para isso...
Continuou o homem, que usava um estetoscópio no pescoço. Todas as vezes que o vi estava com esse estetoscópio, mas nunca o vi usando. Estranho. A sua expressão estava bem séria. Olhou diretamente em meus olhos, como que querendo indagar: você quer? Mas não disse nada. Só falou:
- ...é necessário querer recupera-las”.
A dificuldade para apagar definitivamente uma memória é verdade, tanto para as memórias orgânicas, que é essa capacidade de guardar, lembrar, armazenar e evocar informações disponíveis em nosso cérebro, quanto para os hd de computadores, que são as memórias artificiais.
Então parece que não tenho escolha. Mais cedo o mais tarde vou lembrar quem é essa menina, que hospital é esse, que dor é essa que sinto quando penso nela. Olhos claros, tristes... Deus do céu... que sensação de culpa é essa que sinto por não lembrar?
- Quem é ela? 
O telefone toca. Não reconheço o número de quem chama. Será que tem importância? Devo atender?
Como sei que isso que faz barulho é um telefone, que do outro lado tem uma pessoa querendo se comunicar comigo? Claro, se não for engano, se não for o telemarketing (tenho a impressão que só quem quer vender coisas me liga). A gente pode até se esquecer de quem é, mas o telemarketing não te esquece jamais.
Como sei que esse número é meu ou foi meu?
Como não consigo lembrar dessa vida, destas pessoas que parecem saber quem sou eu, quem é ela? Tentam me contar. Tentaram várias vezes, disseram, mostraram fotos, vídeos, mas não sinto que seja verdade, não faz sentido. Tão logo contam, esqueço. Só fica essa sensação de que falta algo muito importante, algo sem o qual não estou completa. Até nos momentos de sossego fica essa sensação de ausência.
Mas não devo me preocupar, disse o médico.
Será verdade, será que não preciso me preocupar?
Se não preciso me preocupar...
- Quando estiver preparada vai lembrar...
...então porque a expressão séria, quase acusatória em seu rosto?
Esqueci parte de minha vida, parte de quem sou, passado e presente e não guardo novas informações... ou melhor, como diz o médico: recuso-me a recordar, a aceitar... mas ainda sei falar, consigo pensar, andar.
Como ainda sei ligar o chuveiro, lavar os cabelos com shampoo, como sei que gosto de sabonete com cheiro de limão siciliano? Como esquecemos certas coisas e outras não?
Isso eu sei que sei: a memória tem a função de promover a nossa adaptação ao mundo e é por essa adaptação que sobrevivemos. Sem memórias, sem as lembranças, que é essa capacidade de evocar o passado, perdemos a qualidade de ser seres humanos.
- Dá para dizer que ser humano é ter o dom de guardar o tempo que passou, guardas as nossas experiências e as experiências alheias, dar-lhe significados.
E, se aprendemos, se nos integramos como sujeitos e não apenas nos adaptamos ao mundo, isso se faz pelo que sabemos, pelo que vivemos, pelo tempo que registramos como ontem, hoje e assim podemos projetar o amanhã.
- O gato vive um eterno presente, não tem consciência de sua história.
Como sei disso? Li algum dia, em alguma vida que tive. Mas por que sei isso, por que lembro disso?
O que somos são as histórias, as lembranças de sucessos e fracassos, de alegrias e tristezas, de tudo que aprendemos e do que ainda precisamos aprender. Todas essas memórias fazem o que somos e o que ainda vamos ser.
Será? E se perdemos as memórias, se perdemos todas as nossas lembranças, deixamos de ser quem somos? Se deixamos de ser quem somos ou quem fomos, será que podemos começar do zero, ser outra pessoa?
Quem sou é representado pelas minhas memórias, minhas lembranças e o significado que elas têm para eu e para quem comigo as compartilhou, é isso?
Ter memórias boas e ruins, honradas e vexatórias, é saber de fato quem sou? O eu é definido pelo que sei de mim mesmo? E se o que sei de mim é o que foi contado por outros, ainda assim o que sei é o quem sou?
Hoje sou só um gato. E, na maior parte do tempo, é assim que gostaria de continuar. Mas há lembranças, essas que veem e vão como um sonho e parecem formar nada mais do que uma colcha de retalhos desconexa, sem combinação de tecidos, de cores.
- Até quando?
Sou a mãe daquela menina morrendo? E se eu não quiser mais ser essa mãe, posso esquecer? Esquecendo deixo de ser mãe de alguém? Tenho esse direito?
Não sei se aguento continuar a ser essa colcha, esse gato, mesmo sentido que descobrir quem sou, quem é a menina no hospital, vá me despedaçar mais ainda. Isso é insuportável.
Fico quietinha, deixo o telefone tocar até a chamada se perder ou cair na caixa postal, o que dá no mesmo. Não vou olhar. Quero ser esquecida, quero não mais existir do mesmo jeito que as pessoas não mais existem em minha memória.
O médico disse que isso é transitório, que minhas memórias vão voltar, mas não sei se quero que voltem, não sei se quero lembrar. O pouco que estou recordando me faz sofrer de um jeito que não sei se consigo suportar.  Posso não lembrar? Tem um jeito de me reinventar ou devo voltar a ser quem fui?
Lá fora as plantas secam sem água nos vasos. Não me importo. Na cozinha a louça suja se acumula na pia. Uma mulher, que diz ser minha irmã, falou com muita certeza que eu não suportaria essa situação: louça suja, vasos com plantas morrendo por falta de água, poeira acumulando sobre os móveis.
- Você não é assim.
Falou a minha irmã.
No fundo ela quis dizer: nada disso é o que me lembro de você. Só existimos pelo que os outros sabem e lembram da gente, pelo que nós deixamos que saibam da gente. E, como ainda não inventaram um jeito de ler nossos pensamentos, só sabem o que nós contamos, o que podem nos ver fazendo. De verdade mesmo só nós sabemos quem somos, porque só nós podemos ler nossos pensamentos, nossos sentimentos mais profundos.
Nunca ninguém vai saber.
Tem coisas que sabemos de nós mesmos que não tem nem como traduzir em palavras ou atos. Por isso só nós sabemos quem somos. E, sem memórias, sem saber o que fizemos, nem nós sabemos quem somos realmente, do que somos e fomos capazes.
 Quem garante que eu não era do tipo que não me importava em limpar a casa, em cuidar de plantas? Quem garante que eu não estava fingindo me importar?
- Pensamento delirante, de novo, de novo e de novo.
Vontade perguntar para alguém se eu era assim, delirante, sem foco, dada a filosofar. Mas eu mesma pedi para ficar só, para não ser incomodada nestes primeiros dias de volta.
Às vezes basta alguém que nos conhece para nos orientar, para nos dar rumo, plumo. E agora, ao menos agora, por agora, talvez eu realmente não queira saber de nada. Nem se eu era capaz de suportar poeira sobre os móveis ou suportar outras dores bem piores. Nada. Saber de nada.
Por isso essa necessidade de ficar sozinha, de não falar com ninguém que me conhece, que sabe quem eu fui, que se importe comigo. Nem com o homem que se diz meu marido, que diz me amar e estar disposto a fazer tudo por mim, nem minha irmã, essa mulher que liga todo dia, que insiste, que bate na minha porta.
- Deve ser ela de novo.
Ouço as batidas na porta, os cachorros dos vizinhos latindo. Não tenho vontade de atender. Deixo batendo, vai acabar concluindo que não tem ninguém em casa ou que eu não quero atender. Estou vazia. Durmo, foi orientação médica. Acho que por isso me deixaram um pouco em paz.
Estou sozinha. Agora os rostos aflitos não me acusam tanto. Durmo, acordo, volto a dormir. Sonho. Sonho muito, sonho o tempo todo. E quando acordo não sei se são só sonhos ou verdades, coisas que me contaram antes de eu dormir e que não esqueci ou se são memórias mais antigas.
O sonho com a menina no hospital, não foi o único. Talvez tenha sido o mais completo, mais nítido, mas não o único. O tempo todo vêm fleches de sons, cores, cheiros, músicas, imagens, situações. Alguns eu tento reter na memória, guardar, acreditar que são memórias verdadeiras, porque são bons, despertam sentimentos bons, saudades. Outros eu quero convencer-me que não podem ser verdades. Quero voltar a dormir e esquecer que sonhei, esconder, esquecer, esquecer porque são doloridos demais para eu aceitar como acontecidos, como sendo parte de quem devo voltar a ser.
Em meus pensamentos, só meus, vejo uma menina com longos cabeços claros e cacheados. Do outro lado da rua ela acena. Também sorri, chama com as mãos e a boca, mas não consigo ouvir, só vejo. Ela está feliz. Usa um vestido florido, sapatos vermelhos. O dia está quente, penso em sorvete, tipo italiano, destes baratinhos que tem em toda esquina. Vou até ela, que diz:
- eu também quero. Adoro sorvete, adoro, adoro, adoro.
Acordo e fico deitada muito tempo tentando guardar essa lembrança. Só pode ser uma lembrança, um momento feliz que eu tinha esquecido. Meu coração se alegra, sinto um calor brotar no meu peito, uma vontade de lembrar mais desta menina, saber quem eu sou, quem é essa menina espontânea, falante, feliz que sai para chupa sorvete ao meu lado com tanta intimidade.
Aí, sem mais nem menos, lembro da outra menina, a adolescente sem cabelos no leito do hospital. Será que são as mesmas meninas?
Deus, não permita que essa menina alegre seja a outra, a que está deitada no leito do hospital... não permita, meus Deus.
Tento não dormir, não sonhar de novo, não voltar a sofrer com essa agonia. Mas ficar acordada não é certeza de não sofrer, de não lembrar de nada, de não pensar em como a vida pode ser bela e num instante se transformar num inferno, num mar de mágoas.
- O Google  diz que Freud explicava que quando a pessoa dorme a mente subconsciente desperta. E quando acordamos, a mente consciente acorda e a subconsciente adormece.
Freud também concluiu que durante o sonho todos os nossos desejos frustrados, emoções, pensamentos que não foram liberados durante o dia são libertados por nossa mente inconsciente. E que isso são os nossos sonhos, segundo Freud.
- Mas há outras interpretações, segundo Kabbalah...
Que não sei quem é e nem nunca ouvi lar.
- ...Freud está certo só em partes, porque há os sonhos espirituais e que através deles podendo receber mensagens proféticas do mundo superior.
Não sei se acredito nisso e nem se quero acreditar, nem em um e nem em outro. Freud e Kabbalah.
Só quero mesmo fica aqui sozinha. Quando tenho um sonho bom, acordo feliz, com bons sentimentos. Desperta percebo que o sentimento bom do sonho não dura muito. Tem sempre um porém, tem sempre a imagem da menina no hospital e a dor é insuportável.
Às vezes quero ficar o maior tempo possível acordada para não sonhar, para não lembrar de nada, então vem os pensamentos confusos, rápidos, delirante, as reflexões, as perguntas que não quero realmente encontrar a resposta.
Depois do almoço não consegui ficar acordada. O sol estava muito quente, já estava há horas acordada. Cochilei, coisa de oito minutos. Veio esse sonho:
Um homem alto, com um grande bigode e jaleco branco. Lá do alto onde o vejo, diz:
- Infelizmente o exame foi pior do que esperávamos.
Eu começo a chorar instantaneamente. Sem controle. Ele sai da sala e eu fico sozinha. Agora estou em um salão fazendo as unhas. É manhã, estou de mal humor de uma noite mal dormida. Não quero conversar, mas a manicure não para de falar. Fala, fala, fala de coisas que não quero saber, mas não faço nada, deixo ela continuar falando, falando sem parar e finjo estar ouvindo. Ela não percebe a diferença. Meus olhos estão lagrimejando enquanto ela lixa minhas unhas. Meu coração está apertado. Entra correndo uma menina de cabeços cacheado, corre e se joga no meu colo:
- Também quero fazer as unhas...
Estou olhando o mar em uma tarde. Águas verdes até onde vai a visão. O sol está quase se ponto nas costas do mar de Tambaú. Ouço música enquanto miro o horizonte, lá onde o mar não acaba e não se consegue ver mais. As ondas veem e vão, mas não ouço nada, nem o barulho das pessoas que passam atrás fazendo caminhada, pedalando, falando, rindo. Só ouço a música que está num volume bem alto. Sepultura: Orgasmatron. Tão alto que sinto os tímpanos vibrando e provocando dor. Ainda sinto o mesmo aperto no peito, uma agonia que vai aumentando à medida que percebo que alguma coisa está errada. Orgasmatron nem combina com mar, alguém está faltando. Tem algo muito errado neste cenário. Nem as ondas esmeraldas que veem e vão conseguem me acalmar. Quero sumir. Melhor, quero que todos sumam e só fique eu olhando aquele mar, mas sem essa música que não deixa eu ouvir o barulho das ondas quebrando na paia.
Contando, os sonhos parecem demorar, parece que durou uma noite toda. Felizmente ou infelizmente não é assim. No sonho parece que horas se passaram, mas ao acordar o relógio mostra que poucos minutos se passaram.
Entre um fleche e outro acordo. Sono agitado. O corpo dolorido. As vezes são os cães latindo que me acorda.
- Será que minha irmã voltou?
Penso. Mas continuo quietinha esperando não ouvir ninguém chamar, nenhuma batida na porta. Volto a cochilar.
Ela levanta-se, as pernas ainda bambas. Caminha até eu, sentada no sofá da sala. Um sofá vermelho que não tenho mais.
Não tenho mais?
Segura a falda em uma das mãos e tenta se equilibrar com gestos de quem segura o ar:
- Mãe, não preciso mais.
O carro da frente freou bruscamente. Bati. Coisa boba, uma lanterna quebrada. Um homem, vestido com farda da PM saiu gritando, me chamando de louca, pergunta onde comprei a carteira. Minha filha, no bando de trás fica assustada, começa a chorar. Ele para ao ver a menina.
- Tenho uma filha... sim, tenho uma filha. Onde ela está? Está precisando de mim? Como uma mãe esquece a própria filha?
É manhã. A mesa do café está posta, como dizem que eu gostava de fazer todos os dias. Estamos tomando café. Minha filha anda de um lado para o outro. A mochila está nas costas, está preparada para ir à escola. Tem nove, dez anos?
Meu Deus... como pude ter esquecido disso?
Digo:
- Vem cá...
E ela vem. Seguro seu rosto entre as minhas mãos. Olhos lindo, olhos verdes, olhos enormes. Quando ela era menor, muito menor do que agora, eu não cansava de olhar esses enormes olhos verdes e pensar:
- Olhos de mangá.
Minha filha tem olhos enormes, verdes, lindos. Olhos de mangá.
Mas hoje tem alguma coisa diferente. Os olhos verdes de mangá estão amarelos.
- O que será isso?
O que será é meu último pensamento, antes de virar para o lado e o sonho de lugar, de tempo, de sensações.
Um sono tão leve que até a respiração mais profundo me acorda. Dormindo a mente continua trabalho. Sim. Algumas pessoas pensam que ao dormir o cérebro para, descansa, mas não é assim que acontece. Dormindo resolvemos muitos problemas, que acordados não conseguimos solução. Então viro para o lado e meu cérebro continua jogando imagens que vão se sucedendo.
Duas horas da manhã acordo assustada, a cama molhada. Acordo o homem deitado ao meu lado, ele está sem camisa. Faz muito calor.
- A bolsa rompeu...
Ele levanta assustado, veste rapidamente uma camiseta branca, amassada, pelo avesso.
- Não precisa correr, tem tempo até ela nascer.
Será um sonho com o dia do nascimento de minha filha? Que gostoso passar por tudo isso. É como se estivesse revivendo tudo isso de novo. Não tenho mais como negar. Tenho uma filha. Esses sonhos são lembrança de uma filha que tenho.
- Tive?
Fecho os olhos. Quero continuar sonhando, sentindo essa coisa boa no meu peito.
A menina chora, está muito triste. Diz:
- Eu sou nova demais para morrer.
Choro também. Compulsivamente, descontrolada. A enfermeira fala calmamente, insiste, depois grita, uma, duas, três vezes:
- Mãe, se controle... Mãe, se controle... Mãe, se controle ou saia do quarto, por favor.
Saio e me vejo em uma rua toda arborizada. Um muro baixo longo, todo pintado com figuras infantis. Minha filha...
- Qual o nome de minha filha?
Ela caminha pela calçada, em frente ao muro colorido. A professora espera no portão. Nas costas uma mochila maior do que ela, mas carrega com dignidade. Recusa-se a ser ajudada.
- Mãe, não precisa entrar comigo, já sou adulta.
Seguro entre a mão o teste. Não sei como contar. Esse não era o plano, não agora. Um filho em tão pouco tempo. Como vai ser?
Estou numa praça enorme. Tem criança para todo lado: correndo, andando de patins, patinete, bicicleta, soltando pipa. Minha filha diz, olhando as rodinhas:
- Tira, mãe, já estou muito grande para usar rodinhas.
Tiro. Ela sobe na bicicleta e pedala, uma, duas, três vezes e cai. O meu coração bate mais forte, senti ele na boca. Mas antes que eu pudesse correr para ampara-la, levanta-se, ergue a bicicleta, olha para eu, ali sem conseguir me mexer. Sorri e sobe na bicicleta. Sai pedalando de novo e não caiu mais.
Finalmente acordo.
Sei onde estão as lembranças. Cada uma delas e nem estou falando das fotos nas paredes desta casa, que só percebo agora. Nem do quarto ao lado, das gavetas, dos objetos espalhados pela casa, cada um com pedaços de nossas vidas. Nem falo das lembranças guardadas na memória dos que ainda rondam minha vida e se importam com meu bem-estar. Sei que as lembranças, essas mesmas que me recusei a trazer de volta, estão aqui, comigo. Sei que vou ter que lembrar. Lembrar de tudo, não só dos momentos que fizeram minha vida mais feliz, mais completa.
Terei de lembrar da menina de cabelo cacheado e da menina sem cabelo. Terei que descobrir o que aconteceu com elas, porque estão todas aqui. Quero lembrar porque esse tempo, registrado nestas lembranças, tanto as boas quanto as ruins, as desesperadoras, trazem de volta uma parte de quem sou. Não ter lembranças é não ter uma filha. E ter uma filha, mesmo que não esteja mais comigo, é parte de quem sou, de quem quero ser.
Quero voltar a me sentir completa, esquecer que um dia preferi esquecer que tive, que tenho uma filha. Se vou me despedaçar em mil pedaços, por completar essas lembranças, tudo bem. 
- Depois vou me juntar...
Lembrar tudo, lembra de minha filha, guardar as lembranças...
E tem mais. Mas hoje, só hoje quero pensar no quanto esse tempo ao lado de minha filha foi bom e me tornou outra pessoa.
Lembro, sem dormir, sem sonhar, dela levantando-se, lá de onde passou um longo tempo quietinha pintando com giz de cera.
- Mãe, mãe, olha mãe...
E estende uma folha toda borrada com diferentes corres. No centro:
Luzia.
- Escrevi meu nome, tá certo, mãe?


 [Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
COLEÇÃO: ALÉM DA ARREBENTAÇÃO


24 maio 2017

Tanger

Foto: Karen Raquel


 Aprender a cuidar é como tocar violão. Como pode-se aprender saúde sem vivenciar? É como assistir vídeo aulas no YouTube de violão e achar que após um curso completo de ritmos brasileiros você vai saber tocar um samba sem nunca ter encostado em um violão. 


Não se aprende a dedilhar as cordas, afinar o tom sem um violão. Não existe curso de humanidades sem sentir o cheiro da madeira a melodia da música tocada nos consultórios, nas casas, nas comunidades.

Ler a partitura é apenas uma parte dos sinais vitais musicais, tocar a alma ultrapassa as notas pretas do papel. Traduzir a teoria para a música, eis que reside o mistério. A teoria protocolar de remediar, curar e salvar é tinta e papel. Cuidar  é conhecer a música no escuro, por dentro, saber o local dos trastes, o espaço das cordas, o caminho da melodia, o espaço e o timbre do som. As vezes será preciso improvisar, respirar fundo, seguir tocando.

Experimentar diferentes violões, diferentes ritmos, encontrar aquele que cabe na sua mão, que o braço é do tamanho certo, que reverbera na frequência certa para o profissional de saúde. Alguns vão sentir-se confortáveis com todos, vão tocar  de tudo, são ecléticos. Quase não há música que não reconheçam, pelo menos um pequeno trecho. Se não souberem adaptam-se rapidamente a nova a afinação, escutam com curiosidade.

Aprender saúde deve ser de repertório vasto, ritmos diferentes, cenários diferentes. Tocar apenas no  hospital é como aprender um só estilo musical. O ritmo do beep beep dos aparelhos pode transformar-se em uma melodia, tocada  com emoção e profundamente mas os outros sons, ritmos e melodias talvez fiquem intocados. Não ressoem.

Sair da partitura, da paredes do hospital e das clínicas e colocar os pés no chão da seca, na viagem longínqua pelos interiores, é vivenciar diferentes palcos, ouvir diferentes músicas , conhecer outras melodias carregadas de histórias, timbres, pausas, emoções e silêncios. É aprender música sentindo o vibrar da madeira, o vibrar da seca, é fazer chover em melodia. 

Viver é tanger as cordas do cuidado - sentidos e sentimentos na ponta dos dedos.



Abraços que pousam,
Mayara Floss

02 setembro 2016

PERDA

O luto é roxo? Ernande, 2016.
Ernande Valentin do Prado

Ela chegou
acompanhada do marido
entrou direto no consultório.

Perguntou se podia ver sua pressão.

Sentou
estendeu o braço esquerdo
tentou esconder as lágrimas

Você está bem?
perguntei

Não
respondeu
chorou

Ela recebeu uma notícia ruim
agora
disse o marido

Pode chorar
eu disse
abraçando-a

Quer falar de seu pai?
Perguntei
Ela disse: acho que não consigo

Chora
então
Chorar faz bem

Ela chorou
soluçou
chorou mais.

Ela olhava para o chão
abaixei-me
olho no olho

Segurei suas mãos
enquanto falava
respira no meu ritmo

Ela respirou
respirou
acalmou

Agora vamos ver a pressão
eu disse
Ela estendeu o braço

Tudo isso vai passar
disse na porta
Volte quando quiser

se achar que precisa.

E ela se foi
acompanhada do Marido
como chegou.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

22 julho 2016

LUTA DE CLASSES: UMA OUTRA MORTE

Ernande Valentin do Prado

Em 05 de novembro de 2015, quando ocorreu o rompimento da barragem de rejeitos de minério de ferro, eu estava em Mariana, no Brasil. Você era, nesta época, um dos maiores acionistas individuais da Mineradora Samarco, fundada por seu pai em 1975 e incorporada a Vale do Rio Doce e a Australiana BHP. Entre 2010 e 2014 o lucro de sua empresa foi de 13,3 bilhões, o que lhe proporcionava uma vida de luxo e ostentação que humilhava a existência de pessoas como eu, meus familiares e amigos. Nossas vidas, para você e sua gente, não significava nada além de um incomodo ou benefício, dependendo do momento. Mas, de fato, não precisa de todos nós, apenas alguns bastavam.
Desta vez não morri de exaustão, morri antes de chegar a ser um trabalhador explorado. Não fui esmagado, esfaqueado, assassinado e amarrado no fundo de um rio, nem devorado por animais selvagens, mas nem por foi uma morte natural. Foi, como sempre, outra vítima de sua ganância cega, cruel, devastadora e indiferente. Morri aos poucos, durante 10 anos, desajustado, traumatizado, sem poder ouvir barulho de trovão sem ter uma crise nervosa, sem pai, sem mãe, só com um tio, tão desesperado quanto eu. A vida que deveria ter foi soterrada por 40 bilhões de litros de lama tóxica que escorreram sobre o vale do córrego Santarém, no caminho de minha casa, de minha vida, encobrindo as possibilidades que nunca conheci.
Eu, meu pai e minha mãe, morávamos no povoado de Bento Rodrigues, um lugarejo localizado abaixo da Barragem de fundão. Toda vila tinha pouco mais de 500 pessoas, todos trabalhadores explorados pela ganancia do ferro, uma vida de escravos do luxo alheio. Mas só hoje vejo isso, naquele tempo não tinha noção de nada, era apenas uma criança de seis anos, preocupada em brincar com os amigos da rua, cuidar de meu cachorro, pescar e nadar no córrego que passava nos fundos de casa.
Você disse, na imprensa, com olhos vermelho, que avisou os moradores por telefone, mas na rua de minha casa raramente tinha sinal de telefone. As sirenes de emergência não tocaram, ninguém veio avisar. Quando ouvimos o estrondo da tsanme de barro rompendo tudo que havia pela frente, já era tarde pra correr. Meu pai conseguiu tirar-me do fundo do quintal, onde brincava com meu cachorro, mas foi arrastando pela lama enquanto eu corria com meu tio.
Passei três semanas em um abrigo público, vivendo de doações de estranhos. Distraia-me com brinquedos doados, com a agitação de centenas de pessoas amontadas no mesmo lugar. No começo tudo era divertido, novo, fiz novos amigos, ganhei roupas novas, tomava agua mineral, tinha atenção. Mas aos poucos fui percebendo que minha mãe não voltava, que meu pai estava demorando demais a retornar, que meu irmão deveria estar com eles, mas que também não voltaria. Meu tio era o rosto mais conhecido, mas nem parecia mais ele. No seu rosto via o mesmo medo que via quando me olhada no espelho.
Um dia apareceram umas mulheres da mineradora, falaram com o tio, trouxeram roupas escuras. Fui vestido com uma camisa preta, calça e sapatos e levado para o enterro, coisa que nunca tinha visto antes. Disseram que meu pai, minha mãe e meu irmão nunca mais voltariam, que tinham ido morar no céu.
Depois nos mudamos para uma casa alugada pela sua empresa. Disseram que cuidariam da gente. Duas moças loiras, bem jovens e engraçadas conversaram comigo, fizeram um monte de perguntas sobre como eu me sentia, sobre o que pensava de meus pais estarem no céu, o que gostava de comer, se gostava da escola, de meu tio, de ver tv.
Não era só de meus pais que sentia falta. Queria ir pra casa, dormir em meu quarto, conversar com meu cachorro, subir nas arvores da rua, caminhar de tênis pela rua poeirenta até a escola. Onde estavam meus amigos, a tia da escola, a moça que servia merenda gostosa?
Vi na tv a casa coberta de barro até o telhado. Não tinha mais as ruas aonde andava, não tinha mais arvores, nem rio, nem escola, nem o campinho de terra aonde os moleques mais velhos não me deixava jogar futebol. Não tinha para onde voltar. Isso deu uma tristeza tão grande quanto a morte de pai, de mãe. Olhei o rosto de meu tio, mordendo sem vontade um pão com mortadela e descobri de onde vinha tanta tristeza, tanta falta de esperança de que ainda tinha uma vida pra gente.
Perdi a fome, sentei ao lado de meu tio, de frente para tv que mostrava as imagens da represa se rompendo e arrasando tudo em sua frente, mais uma vez, e outra e outra e outra vez. Um espetáculo de horror. Segurei a mão dele, sem falar nada. Não precisava.
Foi aí que lhe vi de terno e gravata, consternado, dizendo que faria tudo que fosse possível para devolver a dignidade para as pessoas que perderam suas casas, suas vidas.
Primeiro acreditei, afinal, como alguém poderia mentir numa situação dessas?
Mas o tempo foi passando, as coisas não acontecendo.
Arrumaram uma escola pra eu ir, trouxeram cadernos, lápis de cor novos, mochila. Mas na escola não conseguia me concentrar no que a professora falava, sentia sono o tempo todo, mas em casa não conseguia dormir e quando dormia acordava assustado imaginando que a lama estava, de novo, invadindo meu quarto, entrando pelo meu nariz, minha boca e me sufocando. As tarefas que a professora dava não conseguia terminar. No meio da aula, sem motivo, sentia vontade chorar. As outras crianças riam, tiravam sarro. As vezes não conseguia reagir, achava-me incapaz, um coitado, outras vezes reagia: uma vez bati em um colega mais novo até tirar sangue. A professora, no começo tinha paciência, depois foi perdendo, colocou-me no castigo, ameaçou suspensão. Depois fui trocado de sala. Depois de novo e de novo. No fim do ano, deste e de outros, fui aprovado, mas sem conseguir aprender o que tentavam me ensinar.
- Coitadinho, diziam as professoras, não consegue aprender.
Até que um dia desistiram: aluno especial, disseram.
Da sala dos especiais fui internado pela primeira vez:
Agressividade excessiva, disse a diretora pro médico.
- O que você pensa de sua vida, perguntou o médico?
- Penso em morrer e encontrar minha família no céu, respondi.
Passei três meses internado, tomava vários comprimidos por dia e não tinha forças pra nada. O corpo doía. A primeira vez que acordei de verdade, joguei-me do terceiro andar, quebrei os dois braços, e a bacia. Na cama, sem me mexer, sem poder ir ao banheiro, passava quase todo dia sujo, cheirando mal. Babava e balbuciava coisas que ninguém entendia nem queria ouvir.
Em pouco tempo abriu uma ferida nas costas, que aumentou, infeccionou, cheirava cada dia pior. A enfermeira dizia:
- Tem que fazer mudança de decúbito.
Aí me viram para um lado e deixavam o dia todo. Abriu outra ferida na coxa esquerda e aumentou, depois na coxa direita e passei a ficar de bruços, babando no chão.
- Meu tio, único parente que ainda estava vivo, veio me ver uma vez. A enfermeira, novinha, com uma cara de tristeza pior do que a minha e de meu tio, disse:
- Se não tirar ele desse hospital, vai morrer. Suspirou fundo e acrescentou: é só uma criança, não é justo.
Meu tio pareceu não entender. Passou a visita toda sentado em frente à tv. Tentou acender um cigarro, disseram que era proibido, mas que poderia fumar lá fora. Ele foi e a gente nunca mais se viu.
Não é justo, a vida não é justa com a maioria de nós. Mas você, sua gente, vivem em outro mundo, justificam seus luxos como um direito de nascença, igualzinho em qualquer tempo, em qualquer monarquia.
Morri sozinho, de madrugada, na ala infantil do hospital psiquiátrico. A enfermeira só descobriu meu corpo, morto, no dia seguinte. Vi quando rolou uma lágrima pela sua face rosada e lembrei-me que essa não foi a primeira vez que me matou. A nossa história era muito longa.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog