Estou deitada numa
cama. As luzes do quarto estão apagadas, mas não está totalmente escuro. Do meu
lado tem uma menina, uma adolescente sem cabelos. Ela dorme. Ouço o barulho da
maçaneta da porta sendo girada, como em um sonho, longe, longe, muito longe.
Minha cabeça sabe
disso, a mensagem chega no cérebro, mas as pernas não obedecem, os braços ficam
inertes, jogados.
- Será que a
enfermeira entrou no quarto, me viu aqui?
Preciso levantar,
não posso deixar que me veja aqui deitada, já me alertou várias vezes:
- não pode deitar
na cama da paciente.
Isso fica
martelando na minha cabeça o tempo todo:
- não pode deitar
na cama da paciente.
Por tudo essa gente
faz drama.
Mas não tenho
forças, deixou ficar. Na minha cabeça eu levanto, espero a enfermeira em pé, alerta,
bem-disposta, vigilante, cumpridora de minhas obrigações com a menina que
parece muito doente, talvez até em fase terminal.
- Quem será ela?
O giro da maçaneta
se completa. Fico preparada para ouvir a enfermeira dizer, com um falso
carinho, uma falsa pena na voz melodiosa:
- mãezinha, não
pode deitar na cama da paciente.
Quem é essa menina,
é o que eu deveria estar me perguntando, mas tenho vergonha até de pensar. Sinto
que deveria saber sozinha quem é ela.
A enfermeira abre a
porta, não entra. Talvez não queira brigar comigo. Não hoje ou talvez eu só
tenha sonhado.
Acho que não sei
mais diferenciar o que são realidade, sonho, lembranças, fantasias, delírios.
As lembranças veem e vão em fleches, sem que eu consiga entender, compreender,
dar sentido. Como se fossem sonhos mesmos.
Quem é essa menina
na cama? Por que não tem cabelo, porque há soros em sua veia, fios e monitores
ligados nela? Por que estou cuidado dela? Por que a enfermeira me chamou de
mãezinha? Sou a mãe desta menina ou enfermeiras chamam todo mundo de mãezinha?
Por que não me sinto, melhor, por que me sinto tão incompleta?
Não sei quando isso
começou. Não. Não lembro.
Muitas vezes não
sei, como agora, o que são sonhos, o que são lembranças. E, quando sei que são
lembranças, não sei se são minhas. Nosso cérebro é capaz de lembrar o que
vivemos e o que nos contaram, o que lemos, soubemos de algum modo, então como
vou saber que lembranças são minhas e quais são só coisas que sei de ouvir dos
outros, de buscar no Google?
Li, mas não sei
onde e nem quando nem porque, não pergunte, que a memória é uma, entre as
diversas funções cognitivas do cérebro humano. Dizem que é através da memória,
da associação de lembranças, de fatos, de sentimentos, emoções, coisas simples,
concretas, abstratas, coisas complexas, reais, fantasiosas, com e sem
importância, enfim, é pelo todo que sabemos e sabemos que sabemos ou não,
porque tem coisa que sabemos, mas não sabemos que sabemos, nosso subconsciente
é tão poderoso...
- Não consigo me
concentrar...
São muitos
pensamentos ao mesmo tempo e... algumas perguntas não tenho coragem de fazer,
porque talvez não aguente saber a resposta sem desabar.
- não sei se sou
assim, se minha imaginação é do tipo flutuante, com pensamentos delirantes que
não se fixam em nada ou se isso também não sou eu, não sou quem fui?
Deixa eu tentar
ordenar meus pensamentos: a memória é uma função complexa e fica ainda mais
complexa por causa da linguagem...
- Foi assim que li.
...aprendemos coisas
novas pela associação entre o que já sabemos e o que descobrimos, imaginamos,
conseguimos deduzir, inferir. Quanto mais sabemos, mais capacidade de continuar
aprendendo, combinando coisas em nossa cabeça, dar sentido e originalidade.
Isso é bom.
- Não. Nem sempre é
bom saber, lembrar.
Será que quero
mesmo saber quem é a menina na minha lembrança, que leito é esse, quando? Será
que quero mesmo saber se isso é uma memória ou um sonho?
- Pensar nisso me
dá uma tristeza, uma agonia, um desespero. Tenho vontade sair correndo, ir para
bem longe, não ouvir, não ver, não falar com ninguém que saiba a resposta.
Se essas são
lembranças, estão em minha memória, então serei capaz, mais cedo ou mais tarde,
de recuperá-las, foi o que disse o médico antes de assinar a alta.
- Memórias são tão
difíceis de apagar que até quando se apaga um hd, ainda é possível recuperar as
informações supostamente deletadas. Com nosso cérebro não é diferente, as
memórias podem e são recuperáveis, assim como nos hd de computadores.
Explicou o médico.
Eu no centro, do meu lado outras pessoas. Parentes, amigos, gente que se
importa comigo. Disseram.
- ...mas para
isso...
Continuou o homem,
que usava um estetoscópio no pescoço. Todas as vezes que o vi estava com esse
estetoscópio, mas nunca o vi usando. Estranho. A sua expressão estava bem
séria. Olhou diretamente em meus olhos, como que querendo indagar: você quer?
Mas não disse nada. Só falou:
- ...é necessário
querer recupera-las”.
A dificuldade para
apagar definitivamente uma memória é verdade, tanto para as memórias orgânicas,
que é essa capacidade de guardar, lembrar, armazenar e evocar informações
disponíveis em nosso cérebro, quanto para os hd de computadores, que são as
memórias artificiais.
Então parece que
não tenho escolha. Mais cedo o mais tarde vou lembrar quem é essa menina, que
hospital é esse, que dor é essa que sinto quando penso nela. Olhos claros,
tristes... Deus do céu... que sensação de culpa é essa que sinto por não
lembrar?
- Quem é ela?
O telefone toca.
Não reconheço o número de quem chama. Será que tem importância? Devo atender?
Como sei que isso
que faz barulho é um telefone, que do outro lado tem uma pessoa querendo se
comunicar comigo? Claro, se não for engano, se não for o telemarketing (tenho a
impressão que só quem quer vender coisas me liga). A gente pode até se esquecer
de quem é, mas o telemarketing não te esquece jamais.
Como sei que esse
número é meu ou foi meu?
Como não consigo
lembrar dessa vida, destas pessoas que parecem saber quem sou eu, quem é ela?
Tentam me contar. Tentaram várias vezes, disseram, mostraram fotos, vídeos, mas
não sinto que seja verdade, não faz sentido. Tão logo contam, esqueço. Só fica
essa sensação de que falta algo muito importante, algo sem o qual não estou
completa. Até nos momentos de sossego fica essa sensação de ausência.
Mas não devo me
preocupar, disse o médico.
Será verdade, será
que não preciso me preocupar?
Se não preciso me
preocupar...
- Quando estiver preparada
vai lembrar...
...então porque a
expressão séria, quase acusatória em seu rosto?
Esqueci parte de
minha vida, parte de quem sou, passado e presente e não guardo novas
informações... ou melhor, como diz o médico: recuso-me a recordar, a aceitar...
mas ainda sei falar, consigo pensar, andar.
Como ainda sei
ligar o chuveiro, lavar os cabelos com shampoo, como sei que gosto de sabonete
com cheiro de limão siciliano? Como esquecemos certas coisas e outras não?
Isso eu sei que
sei: a memória tem a função de promover a nossa adaptação ao mundo e é por essa
adaptação que sobrevivemos. Sem memórias, sem as lembranças, que é essa
capacidade de evocar o passado, perdemos a qualidade de ser seres humanos.
- Dá para dizer que
ser humano é ter o dom de guardar o tempo que passou, guardas as nossas
experiências e as experiências alheias, dar-lhe significados.
E, se aprendemos,
se nos integramos como sujeitos e não apenas nos adaptamos ao mundo, isso se
faz pelo que sabemos, pelo que vivemos, pelo tempo que registramos como ontem,
hoje e assim podemos projetar o amanhã.
- O gato vive um
eterno presente, não tem consciência de sua história.
Como sei disso? Li
algum dia, em alguma vida que tive. Mas por que sei isso, por que lembro disso?
O que somos são as
histórias, as lembranças de sucessos e fracassos, de alegrias e tristezas, de
tudo que aprendemos e do que ainda precisamos aprender. Todas essas memórias
fazem o que somos e o que ainda vamos ser.
Será? E se perdemos
as memórias, se perdemos todas as nossas lembranças, deixamos de ser quem
somos? Se deixamos de ser quem somos ou quem fomos, será que podemos começar do
zero, ser outra pessoa?
Quem sou é
representado pelas minhas memórias, minhas lembranças e o significado que elas
têm para eu e para quem comigo as compartilhou, é isso?
Ter memórias boas e
ruins, honradas e vexatórias, é saber de fato quem sou? O eu é definido pelo
que sei de mim mesmo? E se o que sei de mim é o que foi contado por outros,
ainda assim o que sei é o quem sou?
Hoje sou só um
gato. E, na maior parte do tempo, é assim que gostaria de continuar. Mas há
lembranças, essas que veem e vão como um sonho e parecem formar nada mais do
que uma colcha de retalhos desconexa, sem combinação de tecidos, de cores.
- Até quando?
Sou a mãe daquela
menina morrendo? E se eu não quiser mais ser essa mãe, posso esquecer?
Esquecendo deixo de ser mãe de alguém? Tenho esse direito?
Não sei se aguento
continuar a ser essa colcha, esse gato, mesmo sentido que descobrir quem sou,
quem é a menina no hospital, vá me despedaçar mais ainda. Isso é insuportável.
Fico quietinha,
deixo o telefone tocar até a chamada se perder ou cair na caixa postal, o que
dá no mesmo. Não vou olhar. Quero ser esquecida, quero não mais existir do
mesmo jeito que as pessoas não mais existem em minha memória.
O médico disse que
isso é transitório, que minhas memórias vão voltar, mas não sei se quero que
voltem, não sei se quero lembrar. O pouco que estou recordando me faz sofrer de
um jeito que não sei se consigo suportar. Posso não lembrar? Tem um jeito
de me reinventar ou devo voltar a ser quem fui?
Lá fora as plantas
secam sem água nos vasos. Não me importo. Na cozinha a louça suja se acumula na
pia. Uma mulher, que diz ser minha irmã, falou com muita certeza que eu não
suportaria essa situação: louça suja, vasos com plantas morrendo por falta de
água, poeira acumulando sobre os móveis.
- Você não é assim.
Falou a minha irmã.
No fundo ela quis
dizer: nada disso é o que me lembro de você. Só existimos pelo que os outros
sabem e lembram da gente, pelo que nós deixamos que saibam da gente. E, como
ainda não inventaram um jeito de ler nossos pensamentos, só sabem o que nós contamos,
o que podem nos ver fazendo. De verdade mesmo só nós sabemos quem somos, porque
só nós podemos ler nossos pensamentos, nossos sentimentos mais profundos.
Nunca ninguém vai
saber.
Tem coisas que
sabemos de nós mesmos que não tem nem como traduzir em palavras ou atos. Por
isso só nós sabemos quem somos. E, sem memórias, sem saber o que fizemos, nem
nós sabemos quem somos realmente, do que somos e fomos capazes.
Quem garante
que eu não era do tipo que não me importava em limpar a casa, em cuidar de plantas?
Quem garante que eu não estava fingindo me importar?
- Pensamento
delirante, de novo, de novo e de novo.
Vontade perguntar
para alguém se eu era assim, delirante, sem foco, dada a filosofar. Mas eu
mesma pedi para ficar só, para não ser incomodada nestes primeiros dias de
volta.
Às vezes basta
alguém que nos conhece para nos orientar, para nos dar rumo, plumo. E agora, ao
menos agora, por agora, talvez eu realmente não queira saber de nada. Nem se eu
era capaz de suportar poeira sobre os móveis ou suportar outras dores bem
piores. Nada. Saber de nada.
Por isso essa
necessidade de ficar sozinha, de não falar com ninguém que me conhece, que sabe
quem eu fui, que se importe comigo. Nem com o homem que se diz meu marido, que
diz me amar e estar disposto a fazer tudo por mim, nem minha irmã, essa mulher
que liga todo dia, que insiste, que bate na minha porta.
- Deve ser ela de
novo.
Ouço as batidas na
porta, os cachorros dos vizinhos latindo. Não tenho vontade de atender. Deixo
batendo, vai acabar concluindo que não tem ninguém em casa ou que eu não quero
atender. Estou vazia. Durmo, foi orientação médica. Acho que por isso me
deixaram um pouco em paz.
Estou sozinha.
Agora os rostos aflitos não me acusam tanto. Durmo, acordo, volto a dormir.
Sonho. Sonho muito, sonho o tempo todo. E quando acordo não sei se são só
sonhos ou verdades, coisas que me contaram antes de eu dormir e que não esqueci
ou se são memórias mais antigas.
O sonho com a
menina no hospital, não foi o único. Talvez tenha sido o mais completo, mais
nítido, mas não o único. O tempo todo vêm fleches de sons, cores, cheiros,
músicas, imagens, situações. Alguns eu tento reter na memória, guardar,
acreditar que são memórias verdadeiras, porque são bons, despertam sentimentos
bons, saudades. Outros eu quero convencer-me que não podem ser verdades. Quero
voltar a dormir e esquecer que sonhei, esconder, esquecer, esquecer porque são
doloridos demais para eu aceitar como acontecidos, como sendo parte de quem
devo voltar a ser.
Em meus
pensamentos, só meus, vejo uma menina com longos cabeços claros e cacheados. Do
outro lado da rua ela acena. Também sorri, chama com as mãos e a boca, mas não
consigo ouvir, só vejo. Ela está feliz. Usa um vestido florido, sapatos
vermelhos. O dia está quente, penso em sorvete, tipo italiano, destes
baratinhos que tem em toda esquina. Vou até ela, que diz:
- eu também quero.
Adoro sorvete, adoro, adoro, adoro.
Acordo e fico
deitada muito tempo tentando guardar essa lembrança. Só pode ser uma lembrança,
um momento feliz que eu tinha esquecido. Meu coração se alegra, sinto um calor
brotar no meu peito, uma vontade de lembrar mais desta menina, saber quem eu
sou, quem é essa menina espontânea, falante, feliz que sai para chupa sorvete
ao meu lado com tanta intimidade.
Aí, sem mais nem
menos, lembro da outra menina, a adolescente sem cabelos no leito do hospital.
Será que são as mesmas meninas?
Deus, não permita
que essa menina alegre seja a outra, a que está deitada no leito do hospital...
não permita, meus Deus.
Tento não dormir,
não sonhar de novo, não voltar a sofrer com essa agonia. Mas ficar acordada não
é certeza de não sofrer, de não lembrar de nada, de não pensar em como a vida
pode ser bela e num instante se transformar num inferno, num mar de mágoas.
- O Google
diz que Freud explicava que quando a pessoa dorme a mente subconsciente
desperta. E quando acordamos, a mente consciente acorda e a subconsciente
adormece.
Freud também
concluiu que durante o sonho todos os nossos desejos frustrados, emoções, pensamentos
que não foram liberados durante o dia são libertados por nossa mente
inconsciente. E que isso são os nossos sonhos, segundo Freud.
- Mas há outras
interpretações, segundo Kabbalah...
Que não sei quem é
e nem nunca ouvi lar.
- ...Freud está
certo só em partes, porque há os sonhos espirituais e que através deles podendo
receber mensagens proféticas do mundo superior.
Não sei se acredito
nisso e nem se quero acreditar, nem em um e nem em outro. Freud e Kabbalah.
Só quero mesmo fica
aqui sozinha. Quando tenho um sonho bom, acordo feliz, com bons sentimentos.
Desperta percebo que o sentimento bom do sonho não dura muito. Tem sempre um
porém, tem sempre a imagem da menina no hospital e a dor é insuportável.
Às vezes quero
ficar o maior tempo possível acordada para não sonhar, para não lembrar de
nada, então vem os pensamentos confusos, rápidos, delirante, as reflexões, as
perguntas que não quero realmente encontrar a resposta.
Depois do almoço
não consegui ficar acordada. O sol estava muito quente, já estava há horas
acordada. Cochilei, coisa de oito minutos. Veio esse sonho:
Um homem alto, com
um grande bigode e jaleco branco. Lá do alto onde o vejo, diz:
- Infelizmente o
exame foi pior do que esperávamos.
Eu começo a chorar
instantaneamente. Sem controle. Ele sai da sala e eu fico sozinha. Agora estou
em um salão fazendo as unhas. É manhã, estou de mal humor de uma noite mal
dormida. Não quero conversar, mas a manicure não para de falar. Fala, fala,
fala de coisas que não quero saber, mas não faço nada, deixo ela continuar
falando, falando sem parar e finjo estar ouvindo. Ela não percebe a diferença.
Meus olhos estão lagrimejando enquanto ela lixa minhas unhas. Meu coração está
apertado. Entra correndo uma menina de cabeços cacheado, corre e se joga no meu
colo:
- Também quero
fazer as unhas...
Estou olhando o mar
em uma tarde. Águas verdes até onde vai a visão. O sol está quase se ponto nas
costas do mar de Tambaú. Ouço música enquanto miro o horizonte, lá onde o mar
não acaba e não se consegue ver mais. As ondas veem e vão, mas não ouço nada,
nem o barulho das pessoas que passam atrás fazendo caminhada, pedalando,
falando, rindo. Só ouço a música que está num volume bem alto. Sepultura:
Orgasmatron. Tão alto que sinto os tímpanos vibrando e provocando dor. Ainda
sinto o mesmo aperto no peito, uma agonia que vai aumentando à medida que
percebo que alguma coisa está errada. Orgasmatron nem combina com mar, alguém
está faltando. Tem algo muito errado neste cenário. Nem as ondas esmeraldas que
veem e vão conseguem me acalmar. Quero sumir. Melhor, quero que todos sumam e
só fique eu olhando aquele mar, mas sem essa música que não deixa eu ouvir o
barulho das ondas quebrando na paia.
Contando, os sonhos
parecem demorar, parece que durou uma noite toda. Felizmente ou infelizmente
não é assim. No sonho parece que horas se passaram, mas ao acordar o relógio
mostra que poucos minutos se passaram.
Entre um fleche e
outro acordo. Sono agitado. O corpo dolorido. As vezes são os cães latindo que
me acorda.
- Será que minha irmã
voltou?
Penso. Mas continuo
quietinha esperando não ouvir ninguém chamar, nenhuma batida na porta. Volto a
cochilar.
Ela levanta-se, as
pernas ainda bambas. Caminha até eu, sentada no sofá da sala. Um sofá vermelho
que não tenho mais.
Não tenho mais?
Segura a falda em
uma das mãos e tenta se equilibrar com gestos de quem segura o ar:
- Mãe, não preciso
mais.
O carro da frente
freou bruscamente. Bati. Coisa boba, uma lanterna quebrada. Um homem, vestido
com farda da PM saiu gritando, me chamando de louca, pergunta onde comprei a
carteira. Minha filha, no bando de trás fica assustada, começa a chorar. Ele
para ao ver a menina.
- Tenho uma
filha... sim, tenho uma filha. Onde ela está? Está precisando de mim? Como uma
mãe esquece a própria filha?
É manhã. A mesa do
café está posta, como dizem que eu gostava de fazer todos os dias. Estamos
tomando café. Minha filha anda de um lado para o outro. A mochila está nas
costas, está preparada para ir à escola. Tem nove, dez anos?
Meu Deus... como
pude ter esquecido disso?
Digo:
- Vem cá...
E ela vem. Seguro
seu rosto entre as minhas mãos. Olhos lindo, olhos verdes, olhos enormes.
Quando ela era menor, muito menor do que agora, eu não cansava de olhar esses
enormes olhos verdes e pensar:
- Olhos de mangá.
Minha filha tem
olhos enormes, verdes, lindos. Olhos de mangá.
Mas hoje tem alguma
coisa diferente. Os olhos verdes de mangá estão amarelos.
- O que será isso?
O que será é meu
último pensamento, antes de virar para o lado e o sonho de lugar, de tempo, de sensações.
Um sono tão leve
que até a respiração mais profundo me acorda. Dormindo a mente continua
trabalho. Sim. Algumas pessoas pensam que ao dormir o cérebro para, descansa,
mas não é assim que acontece. Dormindo resolvemos muitos problemas, que acordados
não conseguimos solução. Então viro para o lado e meu cérebro continua jogando
imagens que vão se sucedendo.
Duas horas da manhã
acordo assustada, a cama molhada. Acordo o homem deitado ao meu lado, ele está
sem camisa. Faz muito calor.
- A bolsa rompeu...
Ele levanta
assustado, veste rapidamente uma camiseta branca, amassada, pelo avesso.
- Não precisa
correr, tem tempo até ela nascer.
Será um sonho com o
dia do nascimento de minha filha? Que gostoso passar por tudo isso. É como se
estivesse revivendo tudo isso de novo. Não tenho mais como negar. Tenho uma
filha. Esses sonhos são lembrança de uma filha que tenho.
- Tive?
Fecho os olhos.
Quero continuar sonhando, sentindo essa coisa boa no meu peito.
A menina chora,
está muito triste. Diz:
- Eu sou nova demais
para morrer.
Choro também.
Compulsivamente, descontrolada. A enfermeira fala calmamente, insiste, depois
grita, uma, duas, três vezes:
- Mãe, se
controle... Mãe, se controle... Mãe, se controle ou saia do quarto, por favor.
Saio e me vejo em
uma rua toda arborizada. Um muro baixo longo, todo pintado com figuras
infantis. Minha filha...
- Qual o nome de
minha filha?
Ela caminha pela
calçada, em frente ao muro colorido. A professora espera no portão. Nas costas
uma mochila maior do que ela, mas carrega com dignidade. Recusa-se a ser
ajudada.
- Mãe, não precisa
entrar comigo, já sou adulta.
Seguro entre a mão
o teste. Não sei como contar. Esse não era o plano, não agora. Um filho em tão
pouco tempo. Como vai ser?
Estou numa praça
enorme. Tem criança para todo lado: correndo, andando de patins, patinete,
bicicleta, soltando pipa. Minha filha diz, olhando as rodinhas:
- Tira, mãe, já
estou muito grande para usar rodinhas.
Tiro. Ela sobe na
bicicleta e pedala, uma, duas, três vezes e cai. O meu coração bate mais forte,
senti ele na boca. Mas antes que eu pudesse correr para ampara-la, levanta-se,
ergue a bicicleta, olha para eu, ali sem conseguir me mexer. Sorri e sobe na
bicicleta. Sai pedalando de novo e não caiu mais.
Finalmente acordo.
Sei onde estão as
lembranças. Cada uma delas e nem estou falando das fotos nas paredes desta
casa, que só percebo agora. Nem do quarto ao lado, das gavetas, dos objetos
espalhados pela casa, cada um com pedaços de nossas vidas. Nem falo das
lembranças guardadas na memória dos que ainda rondam minha vida e se importam
com meu bem-estar. Sei que as lembranças, essas mesmas que me recusei a trazer
de volta, estão aqui, comigo. Sei que vou ter que lembrar. Lembrar de tudo, não
só dos momentos que fizeram minha vida mais feliz, mais completa.
Terei de lembrar da
menina de cabelo cacheado e da menina sem cabelo. Terei que descobrir o que
aconteceu com elas, porque estão todas aqui. Quero lembrar porque esse tempo,
registrado nestas lembranças, tanto as boas quanto as ruins, as desesperadoras,
trazem de volta uma parte de quem sou. Não ter lembranças é não ter uma filha.
E ter uma filha, mesmo que não esteja mais comigo, é parte de quem sou, de quem
quero ser.
Quero voltar a me
sentir completa, esquecer que um dia preferi esquecer que tive, que tenho uma
filha. Se vou me despedaçar em mil pedaços, por completar essas lembranças,
tudo bem.
- Depois vou me
juntar...
Lembrar tudo,
lembra de minha filha, guardar as lembranças...
E tem mais. Mas
hoje, só hoje quero pensar no quanto esse tempo ao lado de minha filha foi bom
e me tornou outra pessoa.
Lembro, sem dormir,
sem sonhar, dela levantando-se, lá de onde passou um longo tempo quietinha
pintando com giz de cera.
- Mãe, mãe, olha
mãe...
E estende uma folha
toda borrada com diferentes corres. No centro:
Luzia.
- Escrevi meu nome,
tá certo, mãe?