No texto iniciado em 06
de junho de 2014. Na primeira semana refleti sobre a doença de meu pai e os
primeiros dias internado. A perplexidade com os cuidados (ou coma falta).
Ernande Valentin do Prado
No inicio do
quarto-dia fomos transferido de setor. Onde estávamos era maior, porém com
enfermarias com três leitos. Mas o paciente do lado tinha erisipela na perna
direita e a médica resolveu que não era bom o convívio dos dois: um debilitado
por problemas renais e outro com uma infecção razoavelmente grave e
potencialmente infectante. Despedimo-nos do ex-companheiro de quarto e fomos
embora para outro setor.
Não sei dizer
por que, mas colegas de quarto se apegam muito. Talvez seja o convívio forçado,
o infortúnio compartilhado. O rapaz ao lado, carcereiro de profissão, ficou
muito sentido em perder a companhia de meu pai. Visivelmente emocionado, com os
olhos cheios de lágrimas disse, desejou tudo de bom e disse que depois da alta
iria lhe visitar em casa. Fato que realmente aconteceu semanas depois da alta.
No mês de janeiro.
Será
que alguém já parou para ver quanta vida existe em uma enfermaria? Os
doentes se ajudam o tempo todo. Vigiam-se, cuidam-se. Envolvem-se com seus
dramas. Quem está melhor cuida do outro, dá de comer, beber, grita pela
Enfermeira, revolta-se pela demora. Coisas parecidas fazem os acompanhantes.
Esta com um, mas acabam adotando os outros.
É
impressionante como há mais vida em uma Enfermaria do que em quartos e
apartamentos individuais (ao menos para maioria).
Ao
chegar à nova ala a primeira impressão foi muito ruim. Um fluxo estranho com
entradas e saídas de todo lado e o posto de enfermagem no meio como se fosse um
corredor improvisado. Meu pai disse: “preferia ficar no outro setor”.
Passamos
a noite. Meu pai teve três ou quatro crises de “agonia” durante a madrugada e
não conseguiu dormir. Ai, pela manhã, entrou Samuel6... Pequeno, de
branco, acompanhado de um colega mais tímido. Tinha nas mãos uma prancheta com
as fichas de controle, uma caneta na outra mão, termômetro, estetoscópio em
volta do pescoço e o esfigmomanometro. Entrou discreto, mas logo estava fazendo
barulho entre os oito pacientes. Brincava com um, chamava o outro de porco por
não querer tomar banho, ameaçava tirar o bigode de outro na pinça, pedia o
relógio emprestado para um terceiro, tirava duvida de um quinto, animava um
acompanhante acanhado no canto. Falava alto com todos, convidava para festa de
aniversário de outro paciente “condenado” a ficar internado mais tempo.
Solicitava medicação para outro com sinais alterado. Contava para outro a
vez que foi assaltado no dia de natal.
No
leito do meu pai pediu a receita com todas as medicações, doses e horários que
tinha em casa. Disse-lhe que no outro setor não estavam dando nenhuma medicação
de casa, mas ele informou que a Enfermeira (do setor) iria querer saber, por
isso estava se adiantando. Pediu para eu conversar com ela, falar das
particularidades, da alimentação.
Samuel
conversou com meu pai, pergunto, falou, mediu, viu, fez piada. Elogiou a
presença da família e disse que isso é muito importante para o restabelecimento
do doente. Samuel deixou meu pai falar, ouviu minhas dúvidas e explicações, não
apresou os procedimentos, não teve pressa, não deu desculpas.
Com seu jeito
“amalucado”, Samuel cuidou daquela gente toda no quarto. E fiquei feliz, dentro
da tristeza de estar em um hospital, vendo a Enfermagem cuidando, tendo
consideração com o outro.
“A
recuperação dos pacientes parece ser mais rápida, e a experiência no hospital é
considerada mais agradável quando o relacionamento enfermeira-paciente é
percebido como terapêutico ou restaurador. Encontro de cuidado, em que existe
um relacionamento de proximidade, confiança e aceitação, envolvem crescimento,
esperança e amor.
No posto de
Enfermagem, aquele que parece um corredor, vi a Enfermeira do setor sentada por
uns 15 segundo. Discutia com um profissional que parecia ser um médico
residente. Depois levantou ágil, apesar do tamanho e disse: “pode usar o
telefone, mas não demora, tem que ser rapidinho”. Quando terminei a ligação,
ela já estava debruçada sobre o leito de alguém de outra enfermaria.
Voltei para o
leito de meu pai e daí a pouco entra a Enfermeira acompanhada de um médico
muito alto. Ficaram conversando com um paciente. Falaram sobre uma cirurgia que
teria de fazer. Ela participava do assunto, não apenas ouvindo, mas
esclarecendo, explicando os procedimentos, estando disponível. A Enfermeira não
se omitia ou limitava a repassar as responsabilidades. Ela cuidava com
responsabilidade. Antes de sair olha para todo lado e diz, agora fale com
aquele ali, apontando para outra pessoa.
Na hora do
almoço entrou o auxiliar... Ficaram batendo papo, fazendo piada, dando atenção
para todo mundo.
Não sei se é
ou vai ser sempre assim, mas as Enfermeiras deste setor não se omitem, não
entram na enfermaria apenas para serem vistas, apesar de ser tão bonitas e
elegantes quanto a do outro setor. Alias todas as Enfermeiras e Auxiliares ou
Técnicas de Enfermagem deste hospital são muito elegantes. É importante frisar que a Enfermeira do
plantão noturno teve o mesmo comportamento. Estudou o prontuário, verificou os
exames, tirou dúvidas, examinou o corpo, o psicológico e o espírito de meu pai
e deu o diagnóstico. Cuidou. E o mesmo comportamento seguiu-se com os
Auxiliares.
Esse
comportamento visto neste novo setor faz pensar que talvez os Auxiliares e Técnicos
tanto este quanto os outros, apenas respondem ao estímulo da coordenação.
Coordenação fascista, auxiliares fascistas. Coordenação participativa,
auxiliares dedicados e motivados.
O sistema de
serviço aqui também é o “linha de montagem do cuidado”, porém não é
tão ruim quanto o outro. Aqui o cuidado não é negado em nome dos registros, mas
os registros fazem parte dos cuidados. Realizando cuidados integrais, com a
consideração que estes dois membros da Enfermagem já demonstraram ter, poderia
ser bem melhor, tenho certeza, mas já não é tão revoltante quando antes.
NINGUÉM FICA DOENTE SOZINHO
Ninguém fica
doente sozinho. Ou fica, mas só se já vivia sozinho antes.
Meu pai nunca
teve tempo de ficar doente. Apesar de tudo que o MAC Gyver saber ter
aprendido com ele, meu pai nunca foi um homem que soubesse ganhar dinheiro.
Muito pelo contrario, sempre conseguia perder dinheiro em seus negócios. Por
uma série de questões ligadas ao seu temperamento, nunca foi de trabalhar muito
tempo em um mesmo emprego. A satisfação pessoal tinha que existir para ele. Ele
gosta de ser o “gênio” que é, mesmo não ganhando dinheiro.
Meu pai não
escreve bem, nem lê. Nem anda vendo tão bem quanto antes. Toda vida trabalhou
demais. Tinha hora para começar a trabalhar, mas não para parar. Nem para
comer, o que irrita muito minha mãe, diga-se.
Nos últimos
meses tem trabalhado como pedreiro, carpinteiro, azulejista, enfim, faz o que
aparece. Faz apenas para pagar as contas e ir vivendo. Sonha em viver de
pesca. Quer se aposentar e morar em uma cidade a beira do Rio “Paranazão”. Só
pescar todo dia.
Os
preparativos estavam sendo feitos para isso. O tratamento para eliminar o tumor
de seio de minha mãe estava terminando quando ele caiu doente. Agora ele esta
na cama aqui do meu lado. Esta dormindo, calmo, sem estar inventando nada, sem
estar com as mãos ocupadas, sem contar uma história qualquer. Isso é muito
difícil de ver, ouvir e sentir. Mas é assim que estamos vendo meu pai agora.
Ele não é mais o “super-homem”, não é mais super-resistente a tudo. Parei de me
chocar o vendo chorar. Minha irmã não. Ela ainda fica extremamente abalada.
Chora junto, fica mais doente que ele. A mesma coisa pode ser dita de minha
mãe.
Meu pai
doente... Minha família toda doente. Minhas irmãs, minha mãe. Minha tia, irmã
dele, meu tio, cunhado dele, amigo e companheiro de pesca. O plano era viver de
pesca juntos. Os sobrinhos estão em casa. Os netos. Algumas irmãs de minha mãe,
sobrinhos, estão todos lá, todos ressaltados com as noticias, todos com medo
quando o telefone toca. E o telefone toca o tempo todo. São amigos, parentes,
conhecidos que ligam para saber notícias. Acompanham passa a passo o
drama.
Se na
experiência de Nelson Rodrigues o Mineiro só é solidário no
câncer[2],
ao menos na minha, que sou de família mineira, vejo que estão todos muito
solidários. Todos muito unidos em torno da dor, da dificuldade, da tristeza de
ver um parente, uma amigo, uma lenda torna-se humana e tão falível quanto
todos.
Mas essa
história não termina aqui...
[Ernande Valentin do Prado publica na
Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Continua.
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