BE SOMEONE
Porque a gente também sabia que só os absurdos enriquecem a poesia.
Manoel de Barros
Era 1987. Eu tinha 15 anos, lia tudo da biblioteca e anotava as melhores frases em um caderno grosso que tinha vindo como “brinde” de uma máquina de escrever antiga, Olivetti. Estamos nós três, irmãs, recém chegadas a nossa nova casa ainda em construção na zona rural do interior do Ceará. Em um quarto com as paredes “no preto”, somente com reboco, insistíamos em um contato com um “mundo moderno” lá fora a partir da sintonia difícil e custosa do rádio FM. Escutar, de repente, Tracy Chapman cantando Fast Car era um sinal de que podíamos alcançar este mundo distante, mesmo que por breves minutos. Podíamos também ouvir as mesmas músicas que as meninas de 15 anos da cidade, “da capital”, ouviam. Quantas coisas ainda nos aconteceriam? Quantas mudanças!
Era 1997 e estava na faculdade de medicina, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Havia comprado com a bolsa do CNPQ um pequeno rádio gravador com CD em 12 prestações de 10 reais, na época! Daí já sintonizava bem na FM local e gravava as músicas que gostava em fitas K7. Elas ficavam meio “sem início” e às vezes eram interrompidas. Quando as fitas estavam prontas eu as decorava – a capinha de plástico - com uma paisagem ou uma ilustração e mais uma frase, um poema tirado do cadernão da Olivetti que era meu companheiro. Imagem e palavras, algo que tivesse a ver com aquelas músicas gravadas ou com como eu me sentia naquele momento. Ainda pedia emprestado os CDs de uma amiga e passava gravando as músicas que amava. Ela tinha Tracy Chapman e gravei!
Em 2000 comprei meu primeiro computador. Em 2007 já morava em Porto Alegre. Médica, já tinha meu canto alugado e um emprego estável. 20 anos se passaram desde aquelas noites em busca de sintonia, conexões com o mundo que não conhecíamos, que ansiávamos, que nos desafiava em tempo, espaço, inocência e esperanças. Agora, também, tenho o CD da Tracy Chapman e posso assisti-la no youtube cantando para Nelson Mandela, no aniversário dele de 70 anos, em 1988. Já buscava muitos mundos, mas sem me preocupar se eram vistos ou ouvidos por alguém distante, mais “moderno” que eu. Mas se, sim, eu os conseguia identificar e valorizar em meio aos ruídos dos tempos, das pressas, das dores, dos acontecimentos, das distâncias, dos desafios, das despedidas, dos reencontros...
Em 2013 reencontrei amigos de adolescência, no Ceará. Dançamos juntos como se tivéssemos 15 anos e de fato, tínhamos. Mais velhos, mais histórias, mas mais coisas reais e válidas com que pudéssemos partilhar um tempo que ainda nos convida a brincar com a vida e recomeçar. Encontro-os no facebook e vejo seus filhos e alguns, até, netos. Oportunidades ímpares de encontros que nos tornam conectados com a história que fizemos, os caminhos que trilhamos, as pessoas que dividimos momentos. Mas os 15 anos se foram para todos nós. Mandela também se foi. Muitos poetas, os que copiei poemas no cadernão Olivetti, também já se despediram. Outros surgiram e ainda encantam. Meu rádio gravador com CD, valioso, se quebrou, mas já tenho um cantinho pra chamar de meu.
Começamos 2015. Ainda leio com um lápis na mão para marcar as frases e passagens que me tocam. Meu novo lápis é listrado e meu sobrinho de 7 anos chama de lápis-pijama. Agora, nós três, irmãs, nos encontramos com música compartilhada e dançada com os filhos delas. Seleciono canções para minha mana do meio ouvir quando dirige, mesmo sabendo que pode usar qualquer tecnologia melhor que CD. Minha mana caçula prefere baixar músicas pela internet. Mas CD dá para colocar figuras e frases na capa... Ainda manias... Sim, manias, o cadernão Olivetti ainda existe e é referência de frases e textos lidos, mas já precisei de outro. Ainda tenho as fitas guardadas, todas. Meu novo aparelho de som tem K7. Ainda danço sozinha na minha salinha Talkin' Bout A Revolution em algum sábado e rio. Ainda boba, achando graça de alguma revolução sempre por nascer...
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