30 setembro 2015

Dez dias



10  dias e o contorno das mãos
"A sensação de tocar com os dedos
O que não tem realidade -
Uma pequena borboleta." - Yosa Buson

Foram dez longos dias, eu acordando e indo para o hospital na esperança que ela tinha conseguido passar mais uma noite. Foram dez dias de muita conversa e tentativa de negociação com os acessos venosos para a criança, com uma advertência: “na cabeça não!”. Como coordenar tudo e ainda garantir que aquele pequeno bebê não tivesse o acesso colocado na cabeça. Fui advertida: “não se meta no trabalho da enfermagem”. Mas fui falando aos poucos, explicando para todos que para ela era importante não colocar o acesso na cabeça. Todo o dia ela dizia, “eu vou embora, não aguento mais”. A criança perdia o acesso dia sim, dia não e cada vez eram menos opções. 

Mais do que isso, era o telefone que não parava de tocar - como tentar cuidar das outras crianças que estão na casa quando a “mãe adotiva” está no hospital? A mãe biológica das crianças estava presa, não tinha quem cuidasse e ela tinha os dito dez dias de medicação da criança no hospital. Tratamento “inadequado”. Como conversar todos os dias sobre a importância do tratamento quando você sabe também que a vida corre lá fora, as angústias, o marido preso e uma doença que “não aparece”, e filhos de outros, outras histórias para cuidar. Foram muitos abraços, cuidado, carinho. 

Passei muito tempo indo visitar, em geral os outros estudantes evitavam o quarto porque não se abria a janela e o quarto tinha “cheiro”. Fui nos meus horários livres, nos meus horários de plantão, enfim decidimos uma fazer parte da vida da outra. Um dia cheguei e ela estava chorando porque não podia enviar uma foto para o marido privado de liberdade, porque poderia “complicar” ele. Decidimos desenhar as mãos e os pés da criança, assim ele poderia “conhecer a sua filha” – meus olhos encheram de água. Um gesto tão simbólico, descobrimos como “escapar” das amarras e protocolos para o pai ficar mais perto da filha, ela poder ficar mais perto dele, aquela família ser um pouco mais família. Aproveitamos o momento para conversar sobre a importância de ter um tempo só dela com a criança, sobre poder pensar nela e dessa conversa ela me disse que gostava de ler. Como tinha recém chegado na universidade estava com poucos livros, perguntei aos amigos mais próximos se alguém tinha algum livro para doar chegou, não sei se por acaso ou destino o livro “Eu sou Malala” que conta a história da Paquistanesa que luta pela educação de crianças e jovens. 

Descobri que ela quer fazer Engenharia, que era do crime, mas já estava fora (só não se metesse com ela) e que dificilmente vou ver uma mãe tão afetuosa com a sua filha. Era a comunidade no quarto do hospital, a situação social, a vontade de ser mais. Ela começou a ler o livro e ficou triste, disse que a história era muito triste, mas conversamos sobre a vida, as chances de mudança. A pequena era tanta esperança. Era transcender todas as experiências. Era amamentar, cuidar, a renovação de uma nova vida de sonhos, novos sentidos para ela(s). Todo o dia que examinava a criança pensava no que vinha, nas lutas, nas dificuldades, mas nessa esperança de gente. Ela vai estudar, com certeza me disse antes de partir e me abraçou: “conseguimos os dez dias”. Não foi eu, nem ela, fomos nós, nessa redescoberta da medicina e da construção conjunta do tratamento. 

Voam abraços,
Mayara 

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