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Caratinga-MG |
Antes de partir de Caratinga onde estagiei com cuidados paliativos, Mônica a médica me entregou um livro e uma bola escrito “medicina”. “Para te acompanhar”, olhei para ela com significado, segurando o livro “O último sopro de vida” que ela disse “Achei que você ainda não tivesse lido esse, tem cara de ser bom”. O livro conta a história de um neurocirurgião que está com um câncer terminal e até o último momento tenta dar um significado a sua existência na escrita do livro. Comecei a lembrar dos pacientes que tentam dar um sentido para a sua existência até os últimos momentos também.
Certamente esse significado não é da pessoa é meu, da família e perpassa todo o ninho de cuidado.
Nos últimos dias de uma senhora que foi uma estilista, dona de uma loja de tecidos, empoderadíssima, ela não queria mais que fizéssemos a transfusão de sangue, escondia até os sangramentos para não preocupar os filhos, aos poucos todos fomos aceitando sua despedida. Ela me entregou sua bíblia, e advertiu “É bíblia de avó, está rabiscada por mim e pelos meus netos”.
O fim da vontade de ser mais, também apareceu com um senhor que sempre trabalhou na roça, morava no alto do morro com sua esposa próximo ao filho, a casa era simples, com pedaços de panos pendurados para colorir, mas sempre tinha um café passado. Até que um dia não teve, percebíamos que havia dificuldades financeiras na casa até que ele explicou: “Sabe doutor, é que eu fiz uma conta muito grande na farmácia e não tem dinheiro para a comida” – fruto de internações recorrentes para tratar o edema e amenizar o câncer, além da Pressão Alta e diabetes mal controladas, pois não sabia ler e a cada nova receita ele colava o papel na porta de entrada e comprava os medicamentos (quase sempre os mesmos) novamente para desta vez melhorar, como não sabia a posologia acabava perdendo o sentido ao chegar em casa. Combinamos que aquele mês ele poderia pagar a conta que nós iríamos ajudar na casa, fizemos a feira e levamos lá, ele, sempre irreverente, falou que podia ter mais café. Mas estava feliz e repleto.
Teve um paciente que já não respondia a nada, não se movia uma dessas doenças complicadas. A esposa cuidava dele com carinho, as filhas, certo dia descobriram que eu fazia auriculoterapia, aí pediram para fazer nele. Eu fiz com carinho nele e na família, a esposa dele disse: “agora ele está mais bem cuidado”. Ele faleceu alguns dias depois, calmo e tranquilo.
Um homem jovem que morava com sua companheira e seu pequeno cachorro após resolvermos um pouco das suas dores queríamos ajudar ele a voar de paraglider, pois ele era piloto de Paraglider e adorava falar do vento, dos morros e do céu, tínhamos um plano de conseguir fazer ele ter forças para voar. Mas fomos surpreendidos com ele planejando o casamento com a esposa, apesar da vergonha por estar muito magro e parecer muito doente de terno.
O último desejo de uma senhora, que nem era bem um desejo mas uma vontade, nem nós sabíamos que era o último era comer pudim. Bastou ela ver o pudim e sorrir. Chegamos na casa dela algumas horas depois e ela havia partido como um sopro.
O senhor que sentou na beira da cama e que fizemos uma oração para quebrar uma maldição que ela acreditava ser a causa do seu câncer terminal, conversamos um pouco sobre como ele poderia se libertar e nos dias seguintes o estado geral declinou, aos poucos era muita energia para conseguir respirar.
Teve uma senhora rodeada pelas irmãs que só sorria quando chegávamos. Sorria segurava nossas mãos e dava umas batidinhas. Era um sorriso feliz e repleto, até um pouco irônico sem mostrar os dentes. Quase sempre com os olhos fechados ela dava uma espiada para ver nós chegando. Não vi ela morrer, mas tenho certeza que foi sorrindo.
Essas gentes sabidas, vivem até o último momento nos ensinando a queimar até o último lampejo a capacidade de encontrar um sentido no fim, tanto para si quanto para aqueles que os cercam. Entre viver e persistir, a vontade de ser mais vai ficando suspensa na respiração, até ela ficar lenta, ninguém morre inspirando, não que eu tenha visto, e sim com o último suspiro.
Apesar de ser o fim, a vontade de ser mais continua nos outros, na família, amigos e equipe de cuidado. Na mãe que mesmo que perdeu o filho, segue a vida seu caminho sua arte, no neto que ainda tem muito que crescer e “é mais” desenhando personagens de Dragon Ball, no irmão que segue pescando, na filha que volta ao trabalho. A vontade de ser mais termina, mas não para.
Abraços que pousam,
Mayara Floss