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10 dias e o contorno das mãos |
"A sensação de tocar com os dedos
O que não tem realidade -
Uma pequena borboleta." - Yosa Buson
Foram dez longos dias, eu
acordando e indo para o hospital na esperança que ela tinha conseguido passar mais
uma noite. Foram dez dias de muita conversa e tentativa de negociação com os
acessos venosos para a criança, com uma advertência: “na cabeça não!”. Como
coordenar tudo e ainda garantir que aquele pequeno bebê não tivesse o acesso
colocado na cabeça. Fui advertida: “não se meta no trabalho da enfermagem”. Mas
fui falando aos poucos, explicando para todos que para ela era importante não
colocar o acesso na cabeça. Todo o dia ela dizia, “eu vou embora, não aguento
mais”. A criança perdia o acesso dia sim, dia não e cada vez eram menos opções.
Mais do que isso, era o telefone
que não parava de tocar - como tentar cuidar das outras crianças que estão na
casa quando a “mãe adotiva” está no hospital? A mãe biológica das crianças estava
presa, não tinha quem cuidasse e ela tinha os dito dez dias de medicação da
criança no hospital. Tratamento “inadequado”. Como conversar todos os dias
sobre a importância do tratamento quando você sabe também que a vida corre lá
fora, as angústias, o marido preso e uma doença que “não aparece”, e filhos de
outros, outras histórias para cuidar. Foram muitos abraços, cuidado, carinho.
Passei muito tempo indo visitar,
em geral os outros estudantes evitavam o quarto porque não se abria a janela e
o quarto tinha “cheiro”. Fui nos meus horários livres, nos meus horários de
plantão, enfim decidimos uma fazer parte da vida da outra. Um dia cheguei e ela
estava chorando porque não podia enviar uma foto para o marido privado de
liberdade, porque poderia “complicar” ele. Decidimos desenhar as mãos e os pés
da criança, assim ele poderia “conhecer a sua filha” – meus olhos encheram de
água. Um gesto tão simbólico, descobrimos como “escapar” das amarras e
protocolos para o pai ficar mais perto da filha, ela poder ficar mais perto
dele, aquela família ser um pouco mais família. Aproveitamos o momento para
conversar sobre a importância de ter um tempo só dela com a criança, sobre
poder pensar nela e dessa conversa ela me disse que gostava de ler. Como tinha
recém chegado na universidade estava com poucos livros, perguntei aos amigos mais
próximos se alguém tinha algum livro para doar chegou, não sei se por acaso ou
destino o livro “Eu sou Malala” que conta a história da Paquistanesa que luta
pela educação de crianças e jovens.
Descobri que ela quer fazer
Engenharia, que era do crime, mas já estava fora (só não se metesse com ela) e
que dificilmente vou ver uma mãe tão afetuosa com a sua filha. Era a comunidade
no quarto do hospital, a situação social, a vontade de ser mais. Ela começou a
ler o livro e ficou triste, disse que a história era muito triste, mas
conversamos sobre a vida, as chances de mudança. A pequena era tanta esperança.
Era transcender todas as experiências. Era amamentar, cuidar, a renovação de
uma nova vida de sonhos, novos sentidos para ela(s). Todo o dia que examinava a
criança pensava no que vinha, nas lutas, nas dificuldades, mas nessa esperança
de gente. Ela vai estudar, com certeza me disse antes de partir e me abraçou:
“conseguimos os dez dias”. Não foi eu, nem ela, fomos nós, nessa redescoberta
da medicina e da construção conjunta do tratamento.
Voam abraços,
Mayara