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20 janeiro 2016

Alice

O gato de Alice - João Pessoa

Alice:
- Qual a cor dos seus olhos?
Mayara:
- Não sei, você que me diz, que cor você acha que é?
Alice:
- Hmmm... Deixa eu ver. Ao redor seu olho é escuro, tem uns riscos de verde bem clarinho, e azul no fundo, tem um pouco de amarelo e no meio tem uma bola preta.
Mayara:
- Então, no fim das contas, que cor é?
Alice:
- Cinza.

Voam abraços,
Mayara Floss

30 setembro 2015

Dez dias



10  dias e o contorno das mãos
"A sensação de tocar com os dedos
O que não tem realidade -
Uma pequena borboleta." - Yosa Buson

Foram dez longos dias, eu acordando e indo para o hospital na esperança que ela tinha conseguido passar mais uma noite. Foram dez dias de muita conversa e tentativa de negociação com os acessos venosos para a criança, com uma advertência: “na cabeça não!”. Como coordenar tudo e ainda garantir que aquele pequeno bebê não tivesse o acesso colocado na cabeça. Fui advertida: “não se meta no trabalho da enfermagem”. Mas fui falando aos poucos, explicando para todos que para ela era importante não colocar o acesso na cabeça. Todo o dia ela dizia, “eu vou embora, não aguento mais”. A criança perdia o acesso dia sim, dia não e cada vez eram menos opções. 

Mais do que isso, era o telefone que não parava de tocar - como tentar cuidar das outras crianças que estão na casa quando a “mãe adotiva” está no hospital? A mãe biológica das crianças estava presa, não tinha quem cuidasse e ela tinha os dito dez dias de medicação da criança no hospital. Tratamento “inadequado”. Como conversar todos os dias sobre a importância do tratamento quando você sabe também que a vida corre lá fora, as angústias, o marido preso e uma doença que “não aparece”, e filhos de outros, outras histórias para cuidar. Foram muitos abraços, cuidado, carinho. 

Passei muito tempo indo visitar, em geral os outros estudantes evitavam o quarto porque não se abria a janela e o quarto tinha “cheiro”. Fui nos meus horários livres, nos meus horários de plantão, enfim decidimos uma fazer parte da vida da outra. Um dia cheguei e ela estava chorando porque não podia enviar uma foto para o marido privado de liberdade, porque poderia “complicar” ele. Decidimos desenhar as mãos e os pés da criança, assim ele poderia “conhecer a sua filha” – meus olhos encheram de água. Um gesto tão simbólico, descobrimos como “escapar” das amarras e protocolos para o pai ficar mais perto da filha, ela poder ficar mais perto dele, aquela família ser um pouco mais família. Aproveitamos o momento para conversar sobre a importância de ter um tempo só dela com a criança, sobre poder pensar nela e dessa conversa ela me disse que gostava de ler. Como tinha recém chegado na universidade estava com poucos livros, perguntei aos amigos mais próximos se alguém tinha algum livro para doar chegou, não sei se por acaso ou destino o livro “Eu sou Malala” que conta a história da Paquistanesa que luta pela educação de crianças e jovens. 

Descobri que ela quer fazer Engenharia, que era do crime, mas já estava fora (só não se metesse com ela) e que dificilmente vou ver uma mãe tão afetuosa com a sua filha. Era a comunidade no quarto do hospital, a situação social, a vontade de ser mais. Ela começou a ler o livro e ficou triste, disse que a história era muito triste, mas conversamos sobre a vida, as chances de mudança. A pequena era tanta esperança. Era transcender todas as experiências. Era amamentar, cuidar, a renovação de uma nova vida de sonhos, novos sentidos para ela(s). Todo o dia que examinava a criança pensava no que vinha, nas lutas, nas dificuldades, mas nessa esperança de gente. Ela vai estudar, com certeza me disse antes de partir e me abraçou: “conseguimos os dez dias”. Não foi eu, nem ela, fomos nós, nessa redescoberta da medicina e da construção conjunta do tratamento. 

Voam abraços,
Mayara 

02 setembro 2015

A violenta vontade de ser mais



Fonte imagem: http://designist.ro/kinky/sa-inceapa-revolutia-de-designist/

Entro no quarto, mais uma manhã, mais um dia para conversar, auscultar, examinar, discutir, medicar, trocar... Quando eu entro no quarto corre a discussão: “Mata não, não precisa”. Eu olho para aquelas mulheres sem entender: “Matar o quê?”. Uma delas prontamente responde: “Uma mulher aí, que está precisando”. Fico pensando, quem precisa ser morto? Tento um tímido: “violência não resolve”, logo tenho uma resposta: “Resolve sim. As pessoas têm que respeitar”. A conversa segue, sem uma evolução muito favorável. Logo me explica: “tem que ser assim, bobeou morreu”. Tento falar sobre se colocar no lugar, tentar entender. Logo penso que eu posso ser a próxima, se o assunto seguir assim. 

Fico olhando para elas, e não consigo ver toda essa crueldade. Vejo por trás da violência, das tatuagens e cicatrizes uma vontade de ser mais. Uma vontade de ser mais travestida da violência, desviada, mas que ainda se manifesta, das formas mais agressivas para se ter voz. Ela diz:         “ninguém se mete comigo”. Eu concordo, mas ainda assim, vejo os sonhos que carregam aqueles olhos e palavras. De criar os filhos bem e até se organizar para estudar engenharia a noite.  

Quem sou eu para julgar? Em baixo do meu jaleco branco, só tive que estudar, não precisei sobreviver para comer, nem matar para ser mais. Sou tomada por uma terrível tristeza. Enquanto escuto uma estudante entre lágrimas dizendo que a criança perguntou: “você tem telhado em casa? Tem um quarto só seu?” . Penso nas vidas que correm por entre os dedos: será que ela teve telhado em casa? Ou um quarto só dela? Essa montanha-russa de sentimentos e experiências anda no meu peito e no peito da mulher, que hora quer matar, hora tem toda a gana de viver. Todo o conhecimento que tenho, não serviu para muito, não apartou a violência. Mas ainda assim, garantiu que durante a internação eu descobrisse que ela gostava de ler e eu levasse um livro.  

Esses saberes escondidos, essas gentes sabidas que gostam de ler e precisam matar. A violenta vontade de ser mais, que diz para mim: "livro triste doutora, muito violento, a mulher levou até bala... Ela morre no final?".

Abraços que pousam,
Mayara Floss

29 abril 2015

Quando eu descobri a linha da pobreza

Percentagem da população que vive com menos de US $ 1,25 por dia. Estimativa da ONU 2000-2007.

Não lembro bem quantos anos eu tinha. Quando vi a foto no meu livro de geografia de um menino na África e um texto falando que um bilhão de pessoas vivem com menos de um dólar por dia (linha da indigência) e dois bilhões com menos de dois dólares por dia – a linha da pobreza. 

Na época lembro que um dólar dava mais ou menos três reais e alguns centavos. Lembro também que o preço do pão tinha subido e custava mais ou menos quinze centavos e o Jornal Nacional passou quase um bloco inteiro mostrando vários pães franceses. Falavam sobre vender pão em quilo ou em unidade e discutiam sobre a inflação. Por aqueles dias meu pai pediu para eu comprar pão na padaria, algo raro para a minha casa onde quase sempre tivemos pão caseiro.  Lembro que fui comprar pão para a minha casa e meu pai me deu um real e cinquenta centavos para cerca de 8 pães. Comprei alguns chicletes com o troco, custavam cinco centavos cada um, 8 pães e 6 chicletes. 

Fui caminhando o caminho de casa e pensando nos três reais por dia. Fazia os cálculos pensando só na comida, não cabia ainda nas minhas contas a luz, o gás, o lazer e o conforto. Pensava que se você comesse 20 pãezinhos por dia não ia passar fome. E começava a calcular 8 pães e 1 pastel para passar o dia. Fiz várias possibilidades aritméticas e imaginava se eu tivesse três reais para comer todo o dia como iria fazer – será que iria sobrar para os chicletes?

Quando transformei no cálculo do mês pensava nos 90 reais da sobrevivência. Calculava o que era essencial para minha infância: quanto custava um lápis? Um caderno? Será que eu poderia ter um violão? Esquecia do botijão de gás, do fogo, da saúde… Não incluía na minha conta a conta da higiene, esquecia muitas coisas nas minhas contas. Mas no final das contas chegava na mesma conclusão, que basicamente só dava para o pão (e alguns pastéis, talvez). 

Sento na cadeira da universidade na Irlanda para estudar direitos humanos e de repente a mesma tal da linha da pobreza volta a me encontrar. E os cálculos de infância não ficam tão diferentes, mais coisas incluídas na conta, mas o final é o mesmo, não sobraria dinheiro para o chiclete, nem para viver. O pior, é que a linha não diminuiu de fato desde que era pequena e cresci, parece que a pouca redução foi quase como crescer comigo e com ela várias pessoas que mal podem comprar pão.

Novos conceitos de pobreza relativa e a conversa roda sobre os determinantes da saúde e a importância de diminuir a lacuna da próxima geração (Veja: Documento da ONU Redução das desigualdades no período de uma geração). Mas a lacuna parece que só fica maior, e se eu era (sou?) a próxima geração então caímos no discurso falido da próxima e próxima geração. E talvez em algum outro espaço-tempo uma mesma menina esteja abrindo o seu livro de geografia e descobrindo a linha da pobreza.

Voam abraços,
Mayara Floss

05 março 2014

Distância


Caminho entre Dublin e Galway, lembra-me o caminho para a Barra

     Sempre acreditei que a distância aguça os sentidos. Agora vivendo do outro lado do Atlântico percebo que faço parte de uma pequena cidade do interior irlandês, assim como ela faz parte de mim.

      Porém, com meu coração que é do mundo, mas também brasileiro visito a comunidade da Barra repetidamente, caminho pelo Hospital Universitário e vou as reuniões da Liga de Educação em Saúde contando as histórias que vivi para as pessoas daqui. 

     A alma pescadora vê no mar de Galway os barcos da comunidade da Barra no Brasil. E penso com carinho nas pessoas especiais que mesmo distantes também fazem parte de mim. E assim vamos virando essa misturança de experiências, sabe aquela "alma de mundo"? Em algum momento a costura das vivências se tornou mais intensa que a sutura do corpo, aprendo sobre gente, não apenas sobre corpos.

     O ar frio entra nas minhas narinas e a lua no céu não parece tão distante das pessoas queridas. Toco com palavras a comunidade e mesmo distante as artesãs continuam a me ensinar.


Voam abraços,

Mayara Floss

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

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