Mostrando postagens com marcador vida real. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador vida real. Mostrar todas as postagens

13 março 2019

Arroz



Ela me explicou sobre o erro médico e sobre humildade:
- Se eu que sou uma cozinheira de mão cheia às vezes queimo um arroz, um médico que é um médico também erra. Agora o melhor é reconhecer e acertar, eu não vou servir arroz queimado, ele não deve ser cabeça dura.


(21/01/19)

Abraços que pousam,
Mayara Floss

11 julho 2018

Atlântida

Ilustração: Pawel Kuczynski

- Quando a senhora começou a se sentir triste?
- Ih doutora, foi quando tive que vender as terras...
- E por que teve que vender as terras?
- Porque se não ia virar peixe.
- Como assim?
- Vinha a barragem para alagar nossas terras... Até hoje fico pensando onde era minha casinha e eu era feliz, mas agora afundou.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

16 maio 2018

Acesso


"Nós gastemo três safras no médico particular."

- Das dificuldades do dia-a-dia.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

06 dezembro 2017

Sangrando


- Posso comprar Citotec?
- Essa é uma escolha sua...
- Mas eu não tenho dinheiro, não tem como por um menino no mundo... Eu tenho dó, mas não tenho como sustentar, trabalho demais e já têm as duas meninas, me separei.

Balanço a cabeça e ela segue. 

- Um cara do Paraguai tem, é 400 reais, melhor agora que mesmo que não tenho do que não ter o que dar de comer pra frente.
...
- Doutora, você sabe se sangra muito?

Abraços que pousam,
Mayara Floss

06 setembro 2017

O Fim da Vontade de ser mais


Caratinga-MG

Antes de partir de Caratinga onde estagiei com cuidados paliativos, Mônica a médica me entregou um livro e uma bola escrito “medicina”. “Para te acompanhar”, olhei para ela com significado, segurando o livro “O último sopro de vida” que ela disse “Achei que você ainda não tivesse lido esse, tem cara de ser bom”. O livro conta a história de um neurocirurgião que está com um câncer terminal e até o último momento tenta dar um significado a sua existência na escrita do livro. Comecei a lembrar dos pacientes que tentam dar um sentido para a sua existência até os últimos momentos também. 

Certamente esse significado não é da pessoa é meu, da família e perpassa todo o ninho de cuidado. 

Nos últimos dias de uma senhora que foi uma estilista, dona de uma loja de tecidos, empoderadíssima, ela não queria mais que fizéssemos a transfusão de sangue, escondia até os sangramentos para não preocupar os filhos, aos poucos todos fomos aceitando sua despedida. Ela me entregou sua bíblia, e advertiu “É bíblia de avó, está rabiscada por mim e pelos meus netos”. 

O fim da vontade de ser mais, também apareceu com um senhor que sempre trabalhou na roça, morava no alto do morro com sua esposa próximo ao filho, a casa era simples, com pedaços de panos pendurados para colorir, mas sempre tinha um café passado. Até que um dia não teve, percebíamos que havia dificuldades financeiras na casa até que ele explicou: “Sabe doutor, é que eu fiz uma conta muito grande na farmácia e não tem dinheiro para a comida” – fruto de internações recorrentes para tratar o edema e amenizar o câncer, além da Pressão Alta e diabetes mal controladas, pois não sabia ler e a cada nova receita ele colava o papel na porta de entrada e comprava os medicamentos (quase sempre os mesmos) novamente para desta vez melhorar, como não sabia a posologia acabava perdendo o sentido ao chegar em casa. Combinamos que aquele mês ele poderia pagar a conta que nós iríamos ajudar na casa, fizemos a feira e levamos lá, ele, sempre irreverente, falou que podia ter mais café. Mas estava feliz e repleto.

Teve um paciente que já não respondia a nada, não se movia uma dessas doenças complicadas. A esposa cuidava dele com carinho, as filhas, certo dia descobriram que eu fazia auriculoterapia, aí pediram para fazer nele. Eu fiz com carinho nele e na família, a esposa dele disse: “agora ele está mais bem cuidado”. Ele faleceu alguns dias depois, calmo e tranquilo.

Um homem jovem que morava com sua companheira e seu pequeno cachorro após resolvermos um pouco das suas dores queríamos ajudar ele a voar de paraglider, pois ele era piloto de Paraglider e adorava falar do vento, dos morros e do céu, tínhamos um plano de conseguir fazer ele ter forças para voar. Mas fomos surpreendidos com ele planejando o casamento com a esposa, apesar da vergonha por estar muito magro e parecer muito doente de terno. 

O último desejo de uma senhora, que nem era bem um desejo mas uma vontade, nem nós sabíamos que era o último era comer pudim. Bastou ela ver o pudim e sorrir. Chegamos na casa dela algumas horas depois e ela havia partido como um sopro. 

O senhor que sentou na beira da cama e que fizemos uma oração para quebrar uma maldição que ela acreditava ser a causa do seu câncer terminal, conversamos um pouco sobre como ele poderia se libertar e nos dias seguintes o estado geral declinou, aos poucos era muita energia para conseguir respirar. 

Teve uma senhora rodeada pelas irmãs que só sorria quando chegávamos. Sorria segurava nossas mãos e dava umas batidinhas. Era um sorriso feliz e repleto, até um pouco irônico sem mostrar os dentes. Quase sempre com os olhos fechados ela dava uma espiada para ver nós chegando. Não vi ela morrer, mas tenho certeza que foi sorrindo. 

Essas gentes sabidas, vivem até o último momento nos ensinando a queimar até o último lampejo a capacidade de encontrar um sentido no fim, tanto para si quanto para aqueles que os cercam. Entre viver e persistir, a vontade de ser mais vai ficando suspensa na respiração, até ela ficar lenta, ninguém morre inspirando, não que eu tenha visto, e sim com o último suspiro. 

Apesar de ser o fim, a vontade de ser mais continua nos outros, na família, amigos e equipe de cuidado. Na mãe que mesmo que perdeu o filho, segue a vida seu caminho sua arte, no neto que ainda tem muito que crescer e “é mais” desenhando personagens de Dragon Ball, no irmão que segue pescando, na filha que volta ao trabalho. A vontade de ser mais termina, mas não para. 

Abraços que pousam, 
Mayara Floss

16 agosto 2017

Das pequenas alegrias - Dias de Igor


Para no posto de gasolina e eles oferecem desconto de 40 centavos no litro da gasolina, por causa do serviço prestado. Ao mesmo tempo, conta sobre o cartaz dos planetas com a filha. Quer fazer de material reciclável e descobriu que Plutão não existe mais e que ontem chegou tarde e as crianças já estavam dormindo. Vamos visitar uma paciente e ele diz “a gente nunca imagina que vai chegar o ponto de ter a comida que você mais gosta e não conseguir comer”. Ou reflete “sai tão ingênuo da universidade, achando que poderia fazer alguém parando de fumar, obedecer um medicamento”. Quase na hora do almoço corremos para levar um paciente do presídio que ele cuida voluntariamente no hospital, o paciente diz Trás um pipocão pra mim”, a resposta “Sim, pode deixar”. Após ir até a casa de um senhor lá bem no alto do morro em Caratinga, ele oferece carona para o filho que senta no banco da frente e eles conversam sobre o pai doente, sobre a situação da família. Vamos para o presídio e o paciente nos diz: “Ou você está para morrer ou para matar”. Uma história de uma paciente que apanhou por dias na cela e que ele disse que não ia mais atender ninguém até pararem de bater nela. À noite depois um dia extenso de finitudes, que começa antes das sete horas da manhã vamos rever o paciente ao colocar os pés na porta do hospital me olha “Ih, esquecemos do pipocão” eu emendo falando “Trazemos amanhã”, ele diz “Não, vamos lá buscar”. Entramos no carro, descemos o morro, fomos até o centro, atravessamos a rua, já passando das nove. Compramos o pipocão. Ele vai avaliar o paciente senta na cama ao lado dele e os dois comem pipoca, quase que em uma travessura. No final ele me diz: “Eu quero ver ele sem essa roupa do hospital azul horrível e sem o uniforme do presídio, queria ver ele vestido como gente”. 


Caratinga, 2017.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

09 agosto 2017

Vida fácil



- Você acha que traficar é fácil? Vocês podem até ficar cansados do plantão mas pior é não dormir com gente batendo na sua porta o tempo todo querendo que você venda droga que vale dez reais por oito. Eu não gosto de fazer dívida com o sujeito e se o sujeito não cobre o valor sobra a pra mim. Você acha que é fácil distribuir droga? Ter que lidar com quilos de drogas fugir da polícia e esconder dos bandidos? Garantir que todos recebam a sua parte? Não é fácil. Aqui pelo menos eu durmo.

- Mas se é tão difícil, quando sair daqui vai continuar?

- Agora é muito difícil sair. Minha vida está prometida.

- Você sabe o que é um gerente de logística?

- Não sei doutora, o que é?

- É uma pessoa que organiza a distribuição de um produto, só que em uma empresa. Controla o que entra e o que sai de mercadoria, pra onde vai, o que entra e o que sai de dinheiro, o transporte...

- Tem estudo pra isso? Eu aprendi na vida.

- O que aconteceu que você entrou no tráfico?

- No morro não tem opção, minha mãe não queria que eu estudasse.

- Você estudou até quando mesmo?

- Até a quarta.

Caratinga, abr/2017

Abraços que pousam,
Mayara Floss

26 julho 2017

Mundo



Aqui é assim, atravessa os pés, sobe ladeira e desce ladeira” – Agente Comunitária de Saúde

Minha mãe era técnica de enfermagem aqui na zona rural antes de ter médico, antes de ter enfermeiro. Ela fazia parto, fazia tudo.

Chegava caminhão de suplemento alimentar com feijão ela distribuía na comunidade, colocava comida para todas as gestantes.

Aí foi chegando enfermeira, médico, agente e fomos dividindo o trabalho. Mas ela cuidou de todo mundo.

Caruaru, fev/17

Abraços que pousam,
Mayara Floss

19 julho 2017

Cuidado


Desci no interior após alguns quilômetros de estrada de chão. Sentei embaixo do cedro em frente a casa da benzendeira, não sem antes pedir quem era o último da fila. Ali todos se organizavam, assim, calmamente a espera para uma benzedura leva de uma à quatro horas.  

Lá num lugar quieto só com o barulho do trator ao longe e uma ou outra conversa chegou de repente uma ambulância de uma cidade próxima. Uma ambulância que depois de sair do hospital, passou levar as pessoas até a benzedeira, como estava do lado de fora ajudei o motorista a manobrar e estacionar o carro grande demais para as estreitas ruas do interior.  

Quando puxou o freio de mão. Uma família desceu do carro devagar e sentaram na fila de espera. "Como é paciente de ambulância tem prioridade" explica a benzedeira que leva eles para o quarto onde benze. Saem sorrindo e voltam para a ambulância. O motorista diz que toda semana alguém pede para passar na benzedeira. 

Abraços que pousam,
Mayara 





28 junho 2017

Benzedura e sutura

Pântano do Sul
*Texto publicado no blog e site do Tainha na Rede do Pântano Sul pelo Fernando Alexandre entusiasta e fomentador da cultura da ilha de Santa Catarina.

“Deus te criou, eu que te benzo e deus te cura”.

Fui visitar uma benzedeira na casa dela no sul da ilha de Florianópolis. Mais de 100 anos de vida, conta-me que aprendeu a rezar com a mãe, mas não porque queria, porque ela quando jovem não queria benzer, queria mesmo é dançar. Dançava muito.

Um dia desses quando moça foi para Cachoeira e estava descansando quando uma mulher veio pedir para ela benzer um menino. Ela disse que não, que não benzia. A mulher disse: "deixa disso que eu sei que tu benze, tua mãe benze". Ela meio que sem graça disse que ia benzer, e assim fez sua primeira benzedura para mal olhado, mas logo avisou "não conta pra ninguém". O menino pegou jeito e logo já estava em todas as bocas. A mãe dela faleceu e ela que só sabe cinco rezas, a de cobreiro, zirpa, calor de figo, empiche e mal olhado. Cobreiro tem que benzer nove vezes e cruzar os pauzinho, adverte e reza. “Sabe o que é calor de figo? É quando desce uma aguaceira pelas canela, assim ó” – e gesticula com as mãos a água descendo das canelas. “Eu não sei benze fungado, mas tô benzendo e tá curando”. No “não conta para ninguém” a fama se espalhou de dançarina para benzedeira, rendeira, mas não parteira, nem macumbeira que ela avisa. O que eu não sei rezar minha mãe ajuda, ela que sabia todas as orações, já rezei até para espinha de peixe.

- E esse machucado na testa? – pergunto vendo o curativo grande na testa.

- Ah isso aqui eu cai e machuquei o joelho – ela levanta a calça com o joelho infeccionado e os pontos de sutura muito avermelhados.

- E não tá doendo? -.

- Não dói não. – eu examino com calor local, secreção. Ela me diz:

- O médico foi tão bonzinho que costurou, eu tava toda cheia de sangue ele não me deixou esperando, disse para eu voltar na sexta-feira para tirar os pontos, mas na última sexta-feira eu não fui, quero tirar só com ele -.

- Mas era importante tirar os pontos – comento mansamente.

- Mas ele disse que vai resolver o problema da minha pele – ela diz e aponta para o rosto - vou tirar os pontos só com ele -. Penso um pouco.

- Eu acho que está infeccionado -  ela logo me diz – mas eu já benzi, benzedura forte com zirpa, até vi uma rosa branca no meu quarto no final da tarde.

- Certo, quem sabe vamos fazer assim, eu tiramos aqui os pontos do joelho e na sexta-feira você tira os pontos da testa – que estavam limpos e cicatrizando.

- Bem que tô sentindo umas ferroada, não consigo dobrar o joelho assim ó – e ela tenta dobrar o joelho, e segue - Vai doer? – . 

- Menos que ter um filho – respondo, ela solta uma risada larga – se é menos que ter um filho eu aguento, tive oito -.

- Tá combinado? Acho que vamos ter que tomar um remédio por uns dias – explico e olho nos olhos de benzedura.

- Amanhã de manhã eu vou lá – e ela segue me contando e rindo das histórias de benzedeira.

Um dia ela estava passeando e uma comadre pediu para ela benzer a criança, “eu sei que hoje é domingo mas dá última vez que você benzeu minha filha deu tão certo”. “Domingo eu não benzo, tem muita missa” mas ela disse que “ia benzer escondidinho, por causa da distância”, logo alguém espalhou que ela estava benzendo e teve que benzer uma “porção de menino”. Até as benzeduras que ela não conhece ela já benzeu, “não sei benzer coluna, mas estou benzendo e está curando”. Mas se for mal de carne quebrada encaminho para o Seu Patrício – quase uma rede de benzeduras de plantão. “Vem aqui, benze aqui” e assim foi.

Ela também me adverte que não come peixe, mesmo vivendo na vila de pescadores. Só come frango e dá risada, mas distribui os peixes que ganha de presente quando reza para a pesca e o barco vem cheio. Já benzeu um padre, a Xuxa e o repórter que foi lá no último final de semana e ela estava muito  preocupada que apareceu na televisão benzendo com o curativo na testa.

Florianópolis 30/05/2017

Abraços que pousam,
Mayara Floss

21 junho 2017

Cobertura

Bolo com cobertura. Fonte da imagem.

Imagina aquele bolo bem gostoso com cobertura de chocolate. Aquele que derrete na boca, feito por mãos habilidosas.

É estranho um bolo desses, que é para ter 100% de cobertura, ficar com chocolate até a metade. "Peraí vou emendar depois". Ou uma cobertura com uma camada muito espessa em uma parte e sem nada do outro lado. Ou, mesmo na culinária moderna e os novos chamados bolos pelados, a ausência do preenchimento lateral permite o charme do recheio intenso. Mas tudo muito bem planejado, apesar do clássico bolo com cobertura de chocolate poder ser feito em todas as cidades do Brasil, com certamente deliciosas variações regionais. Além das adaptações conforme o freguês, pode bolo com cobertura sem glúten, vegano, de sabores variados. 

O confeiteiro não coloca a cobertura do bolo e depois tira umas partes no meio, para ficar "meio descoberto" ou "meio coberto", não seria honesto da confeitaria. Ou antes de entregar o bolo tira o bombom de cima, deixando um "buraco".  Você também não encontra um anúncio de um "bolo com cobertura de chocolate" e ele é vendido sem cobertura nenhuma, seria certamente um abuso sério no código do consumidor! Uma enganação! Muito menos algum familiar que anuncia que vai fazer um bolo com cobertura de chocolate e no antro da cozinha caseira apresenta um bolo sem cobertura.

Afinal, a base, de uma cobertura de chocolate é simples: cacau, água, açúcar e óleo. Certamente com variações como leite, creme de leite, chocolate, ou outras coisas que vão dar mais ou menos "consistência" e sabor. Mas enfim, os ingredientes são fáceis de encontrar e não podemos justificar a ausência de um ingrediente de fácil localização no mercado, se não, como todos sabem, a cobertura "desanda". Mas sempre é possível usar do recurso de pedir uma xícara de açúcar ou outros ingredientes emprestado para o vizinho, essa solidariedade que ainda acontece nas casas brasileiras. Para garantir que a cobertura fique íntegra e saborosa!

Se não funciona oferecer bolo com cobertura sem cobertura ou com coberturas esquisitas, porque é aceitável uma cobertura de atenção primária incompleta?

Abraços que pousam,
Mayara Floss

14 junho 2017

Fome




O último atendimento da manhã, já ao meio dia, dos dias de agenda cheia.

- Não vou mais amamentar, não tenho leite.

- Me conta mais sobre isso?

- Ah é isso, a criança chupa, chupa e não sai nada. Não saiu nem no hospital. E tem os pontos para você tirar.

- Certo, como você está alimentando ela?

- Ah com NAN né? Não é NAN?

- Sim, pode ser, e ela está se adaptando?

- Mais ou menos o cocô está muito duro, mas já comecei a dar NAN na maternidade.

- Entendi, vamos examinar? Posso examinar suas mamas também?

Durante o exame a criança começou a chorar, aquele choro incessante de fome. Era o choro dela e o meu estômago de fome também.

- Já que ela está chorando tanto, quer tentar dar o peito?

- Ué posso tentar, mas o leite não vai descer. Não desceu no meu outro menino.

- Vamos tentar?

Era a nossa fome. Fome de mamar, fome de amamentar, fome de paciência. Sentei, e nos próximos quarenta minutos ficamos ali aprendendo a dar de mamar, encontrando a melhor posição, fazendo as contas do leite artificial, conversando. O leite veio, devagar, descendo por dos os canalículos, calmo, manso, quente – matando essa fome de viver.

Rio Grande, Mai/2017

Abraços que pousam,
Mayara Floss

05 abril 2017

Seca

Caruaru-PE

Quebraram o vidro da Unidade de Saúde.
Não roubaram o computador, a cadeira, a mesa.
Vieram para roubar a caixa d’água.

Caruaru 02/17

Mayara Floss

01 março 2017

Cecílias




 Foto: Suzana Reis. As Cecílias na Barra.

As Cecílias.

O segundo nome da minha mãe e da minha irmã é Cecilia ou com uma pequena variação "Cicília", com "i". Além disso tem a mãe da Amélia que também é Cecília.

O Cecília surgiu da madrinha da minha mãe. Os padrinhos dela eram o médico e a sua esposa, ele fez o único parto hospitalar da minha avó. Minha mãe nasceu no hospital. A madrinha era Cecília um nome que já tinha passado de mãe para filha por cinco gerações. 

Quando o médico  foi examinar minha mãe ela fez careta e sorriu. Ele tinha tido cinco filhos homens pediu para a minha avó batizar minha mãe com o nome da esposa dele que tinha cinco gerações de Cecílias. Minha avó não quis, queria dar o nome de Luzia. Mas quando os vizinhos descobriram que o médico queria ser padrinho, ninguém mais quis batizar a minha mãe. Minha avó resoluta  foi até o médico dizendo que ia batizar minha mãe de Cecília. 

Ele ficou tão feliz que registrou a minha mãe no cartório. Logo em seguida, meu avô ficou tão feliz que registrou também minha mãe no cartório. 

Hoje ela tem, duas folhas de certidão de nascimento, a folha 61 e a folha 62. Duplamente Cecília.

As Cecílias.

Abraços que pousam,
Mayara

27/12/16

22 junho 2016

Olhinhos


O pai preocupado alguns minutos após o parto pergunta:
- porque ele ainda não abriu os olhinhos? - desato a explicar que não há pressa, que pode demorar um pouco... ele me interrompe e diz: - a irmã dele já nasceu com os olhos abertos.

Voam abraços,
Mayara Floss

11 maio 2016

Mudança II

De dentro do caminhão de mudanças

Para Ernande e todos que participaram das mudanças

Voltei.
O sofá não, nem a estante e alguns móveis não vão voltar, nem alguns pedaços meus que se foram com a partida, e outros que se construiram. Eu no vazio do apartamento meio emprestado com a mobília dos amigos. Outra cama, outra cozinha, muitas panelas, novidades gaveta a gaveta, outros livros. Aos poucos meus móveis emprestados vão voltando com novas advertências..
"a roda quebrou, mas calcei com um livro"
"Adorei essa forma de fazer bolos, usei muito"
"A estante foi muito boa"
"O aquecedor foi muito útil no inverno"
"Você está esquecendo do ventilador, vai fazer falta"
"A centrífuga parece o robô do Star Wars, quase colocamos os adesivos"
"Mayara, não aguento mais te ajudar nas mudanças"
"Obrigada por esse livro, salvou meu ano"
Perguntam-me: "Você é meio nômade, né?" - nem eu pensava assim, talvez sim.
Novos jantares, novas conchas de servir sopa. Vejo trazendo o móvel pela janela do novo apartamento. Se eu deixar que meus medos de voltar me impeçam de sonhar devo estar também envelhecendo. A mesma sensação de estar esquecendo alguma coisa me acompanha.
 Mas é preciso partir e voltar.


Abraços que pousam,
Mayara Floss

30 março 2016

Relógio de cebolas [Mayara]



- Quanto tempo a senhora demora para começar a sentir dor?
- O tempo de cortar uma cebola.
- Como assim?
- É doutora, o tempo de descascar e picar uma cebola.
- Hmmmm..
- Ontem mesmo, eu só consegui picar meia cebola e já me deu dor.
- Entendi, e a medicação está ajudando?

- Ajuda, dá tempo de três cebolas...

Voam abraços,
Mayara Floss

* Imagem http://www.freepik.com/  

02 março 2016

A culpa é das formigas



“Certo dia existia uma pequena vila na beira de um rio. Nesta vila as pessoas eram boas e a vida na vila era boa. Um dia um morador da vila viu uma criança no rio. Ele pulou na água e foi até a criança para salvá-la. Nos próximos dias mais e mais crianças apareceram descendo correnteza abaixo. Com o tempo a vila organizou equipes de resgate para descer o rio e salvar as crianças, lugares para aquecê-las e alimentá-las. Mas parecia que só piorava e tinha muitas crianças descendo rio abaixo e a vila passou a se contentar só com os que eles salvavam e o seu esquema de ajuda. E a vida da vila seguiu assim. Até que um morador ao invés de pular no rio para salvar decidiu subir o rio para descobrir quem (ou o que) que jogava as crianças rio abaixo. Quando outro morador viu ele subindo o rio ele esbravejou: ‘Onde você vai? Precisamos de todos aqui envolvidos para salvar essas crianças’ e o homem respondeu ‘Vou descobrir o que está jogando elas no rio’. Alguns moradores da vila não gostaram da ideia, falaram que ‘era muito arriscado’, e eles falaram ‘com o número de crianças descendo rio abaixo precisamos de mais apoio aqui’”. (Manchada, 2013)

Estava em mais um dia cansativo de atendimentos. Paciente atrás de paciente, história atrás de história, dias atrás de dias. Porém, no primeiro paciente da manhã começo a conversar com a mãe. Paciente com história de uma anomalia digestiva e que precisava para não precisar realizar novamente uma cirurgia de uma alimentação adequada, rica em fibras e que fosse garantir que ele defecasse com frequência. Na consulta acontecem todas essas explicações e orientações e olho para a mãe e pergunto: “você tem como conseguir comprar frutas?”. Ela balança timidamente a cabeça com um “não”. Abaixo a caneta, a anamnese, e começamos a conversar.

História doída. Moram no interior, sem energia elétrica, trabalham muito, ganham pouco. Muito amor no cuidado da criança, até leite com achocolatado todo o dia eles dão para criança - a pequena transgressão que o estreitamento financeiro permite. Mas frutas e verduras eles já tentaram plantar várias vezes, mamão, cenoura, maça e tudo mais. Porém, ataques subsequentes de formigas impedem a produção. “E ir para a cidade comprar fruta?”, nem pensar, cidade só uma vez a cada duas semanas. Diz ela que a criança adora bananas, compram um cacho uma vez a cada duas semanas para ele comer. Sem geladeira e eletricidade é mais difícil armazenar, ela me explica. Este cacho de bananas é a fruta, a fibra, o cuidado possível.

A criança não está bem, não está defecando tanto quanto deveria. A mãe sabe e me diz resoluta: “A culpa é das formigas” e desata a falar que vão destruir as formigas agora, que vão vencer as formigas - a vontade de ser mais do que as formigas. E que depois vão plantar mamão, manga, todas as frutas da fruteira. Olho para ela e me dá uma dor no peito, uma vontade de chorar. Mas ela é forte e me consola: “Eu sei que tá difícil e que ele tem que comer bem, nós faz o que pode”. O plano é exterminar as formigas e até já descobriram onde o formigueiro fica.

Volto para conversar com o preceptor, “então a orientação das frutas não vai dar muito certo...”. Optamos por uma medicação que ajude a criança a defecar, retorno e acompanhamento – e tapamos o sol com uma peneira. Mas o que a medicina pode fazer contra formigas?

É como a parábola do rio, as crianças aparecendo rio abaixo, aqui são como as formigas. Mas a culpa não é das formigas. A culpa é a falta de acesso a alimentação adequada, energia elétrica, saneamento básico, e tudo mais, a culpa, meu caro, está muito além das formigas é uma culpa econômica, política e social. É uma culpa da luta por direitos humanos e da falta de acesso aos direitos básicos como alimentação de qualidade. 

Porém, enquanto não conseguimos resolver as grandes culpas, aguardo o retorno e o desfecho das formigas. 


Referências:
Manchada R. The Upstream Doctors: Medical Innovators Track Sickness to Its Source. 38 ed.: TED Conferences; 2013. Diponível em: http://www.amazon.com/The-Upstream-Doctors-Innovators-Sickness-ebook/dp/B00D5WNXPE

Voam abraços,

Mayara Floss

10 fevereiro 2016

Incompatibilidade de signos

Orloj - o antigo relógio de Praga

Da série Internato

- Doutora, qual é o seu nome?
- Mayara.
- Nome indígena né?
- Sim, é indígena.
- Doutora, qual é o seu signo?
- Câncer.
- Mas assim a gente tem incompatibilidade.
- Pois é... Qual é o seu?
- Capricórnio, signo de fogo.
- E o seu ascendente?
- Eu acho que é a lua.
- A doutora nem sabe o ascendente. Vocês sabem do corpo, assim, eu quero dizer do funcionamento. Mas do espirito e dos signos a gente sabe.
- Que bom – e um sorriso.
- Você cuida do corpo, e eu cuido do mapa astral, talvez a gente dê certo. Assim né, médico paciente.

- Tudo bem, você alinha os signos, eu alinho o corpo. 
- Assim fica ótimo!


Voam abraços,
Mayara Floss

28 janeiro 2016

Sina



Que nome curioso!
O que significa?
Eu é que sei, pergunte para quem deu. Todas as mulheres terminam com ina e todos os homens com ino. Minha mãe quis assim.
Tá bem. Nunca procurou o significado?
Não, nunca procurei, mas agora estou curiosa!
Vou procurar e amanhã te digo!
Certo, vou ficar esperando.
E não é que o google não achava nenhum significado, procurei com “c” com “s” e no masculino, nem terminando em ino. O que iria dizer para ela? Descobri um parente distante do nome que significava: “carneiro”.
Cheguei no dia seguinte.
“E então, encontrou meu nome?”
Encontrei um significado meio bobo só.
O que é?
Significa carneiro. Mas eu queria dar um significado meu.
Ela sorri, e diz “carneiro”, gostei.
Eu digo, que bom.
Mas qual é o significado que você quer?
“Aquela que ilumina meus dias”
Ah venha cá menina, você que sempre alegra meus dias.

Ah se eu conseguisse resolver as depressões com dicionários de nomes. 


* Fonte da foto clique aqui.

Voam abraços,
Mayara Floss

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog