Em um
mundo cada vez mais parecido com as grandes ficções científicas distópicas,
parece cada vez mais plausível culpar a vítima por tudo de errado que lhe é
infligido. Se a mulher é estuprada, a culpa é dela por ser atraente, não do
doente incentivado pela sociedade. Se o aposentado é obrigado a conviver com
uma aposentadoria insignificante, a culpa é dele por não ter enriquecido quando
jovem. Se a criança não chega a faculdade, é culpa dela, porque poderia ter se
esforçado mais. Mentalidade dos vencedores, mas transplantada para as vítimas,
numa espécie de síndrome de Estocolmo sinistra.
Mas
algumas pessoas exageram. Vai vendo...
Dias destes, em uma rede de
rádio que toca notícias, um Ministro do Tribunal Eleitoral, afirmou que o povo
não é vítima, mas culpado da existência dos maus políticos. Alguma semelhança
com a introdução deste texto, não é mera coincidência.
Será que esse senhor, com
tanto poder, tanto estudo, tanto dinheiro, privilégios e mordomias pagas com o
dinheiro que poderia ser mais bem aproveitado se aplicado na melhoria da vida
do povo, está fazendo algo mais do que jogar areia em olhos já tão embotados?
Dizer que o povo é culpado
pelos maus políticos poderia ser uma baboseira sem tamanho, uma demonstração de
ignorância contumaz, cegueira diante do “obvio ululante”, se não fosse uma
estratégia astuta de culpabilizar a vítima, assim como faz alguns profissionais
de saúde ao dizer que a responsabilidade por estar doente é do indiviso que
sofre, é o mesmo que culpar a mulher estuprada e não o facínora machista que a estuprou.
Parece que a intenção deste ministro
ao afirmar o absurdo, está clara para quem se beneficia do esquema, assim como
o estuprador sabe o que significa ser inocentado (por seus parceiros machos)
por ser um doente violento, perigoso e covarde, porém o que dizer das vítimas
da injúria? Será que não acabam se convencendo que são responsáveis por cair na
armadilha?
Se o povo é realmente culpado
da existência de tantos políticos covardes, criminosos comuns, charlatões,
mentirosos, safados, integrantes de quadrilhas, como diria os titãs: “filho-da-puta,
corrupto, ladrão”, poderia ele reclamar pelo
modo como é roubado, vilipendiado, humilhado, destratado pela maioria dos
políticos, dos juízes e até pelos servidores públicos?
Se ele é culpado por sua
tragédia, só lhe restaria escolher melhor, não é isso?
Fica parecendo que o sistema é
bom, que funciona e possibilita boas escolhas. Será que é assim o nosso sistema
eleitoral?
Será que senhores, como esse
ministro e outros da mesma laia dele, (de terno e gravata, com o bolso e a
barriga cheias a custo do estado), quando dizem que o povo não escolhe bem, não
estão simplesmente querendo dizer que o povo não está escolhendo quem eles
gostariam que fossem escolhidos? Será que eles se importam com a escolha de
pessoas honestas, honradas, decentes?
Qual administração na história do Brasil investiu realmente em promover os
menos endinheirados? Será que ministros, juízes, promotores, deputados,
senadores e todos esses têm condições morais de julgar as escolhas populares?
Será que quem faz do Brasil uma monarquia retrograda, corrupta, violenta e
indigna não são essa gente que deixam soltos, e se candidatando com aval da lei
ridícula da ficha limpa, gente como Maluf, Cunha, Sarney, entres dezenas de outras
famílias que fazem inveja a Don Vito Andolini Corleone?
Um ministro dizer que a
sociedade é culpada pelos maus políticos não é ignorância, não é burrice, nem
miopia, essa gente não tem direito a ser ignorante. Esse ministro e os
jornalistas que não ofereceram contraditórios às afirmações ridículas, agem de
má fé, possivelmente em conluio, mas pode ser apenas que não sabem, não possam
dizer a verdade, não queiram, tenham se acostumado a mentir, por dever
profissional e colaboracionismo.
Só em fevereiro de 2016, em
apenas um estado brasileiro, a Paraíba, 180 prefeituras foram arroladas em
denúncias de desvio de verbas. No estado de São Paulo estão desviando dinheiro
da merenda escolar, da construção do metro (que não pode ser investigada por 50
anos). Em Minas Gerais aeroportos são construídos com dinheiro público em
terras de parentes do ex-governador, quase todas as grandes empresas que fazem
negócio com o estado estão envolvidas com pagamento de propinas, órgãos de
imprensa e personalidade públicas estão envolvidas em sonegação de impostos,
grandes infratores multados por órgãos ambientais não pagam as multas
milionárias fictícias, se o presidente da câmara dos deputados é um
canalha convicto e chantagista (que lavou dinheiro até na Igreja de um
conhecido pastor boca aberta, que segundo o Boechat, deveria procurar uma rola), se
o presidente do senado é réu de dezenas de processos e o judiciário, com seu
aparato técnico, financeiro, moral, não consegue fazer nada, por que o povo
conseguiria?
A justiça não consegue (ou não
quer fazer nada), não consegue punir ninguém (a menos que a punição lhe
interesse de alguma forma), e pessoas envolvidas com tudo isso, em qualquer
eleição, são candidatas com aval da lei da ficha-limpa (ridícula demais), a
culpa é do povo?
Se o judiciário, com todo seu
aparato jurídico, leis, normas, verbas, não consegue fazer nada, como o povo
pode conseguir. Posso entender que a justiça não quer fazer nada e que o
Ministro está sugerindo que o povo deveria linchar os corruptos?
Será que o povo, vítima deste
sistema montado pelas classes dirigentes: politica, financeira e culturalmente,
pode ser responsável por não conseguir escolher corretamente entre o canalha da
hora e o ladrão do patrimônio público de sempre?
Quem permite que esse sistema
eleitoral (que não parece ser mais do que uma armadilha) continue funcionando,
quem decide quem poderá ser ou não candidato, quem escolhe financiar esse ou
aquele candidato, não são os verdadeiros responsáveis pela eleição dessa gente
e faz do povo o bode expiatório perfeito de sempre?
Se os deputados, senadores, empresários,
ministros, juízes, promotores e todos os outros, não fazem nada para mudar a
lei (armadilha eleitoral) que garante a eleição, a reeleição de pai para filho,
a culpa é do povo que não faz as leis, que não tem como obrigar que as leis já
feitas sejam cumpridas com bom senso?
Qual o mecanismo que possibilita a sociedade
punir o procurador de justiça que engaveta denúncias contra seus aliados de
classe?
Qual a ferramenta pública que possibilita ao
cidadão de bem punir o juiz que abusa do poder, que ganha acima do teto do
estado, que usufrui de auxílio moradia, mesmo tendo casa onde está lotado, que
emprega seus familiares juntos aos políticos e órgãos de imprensa, que faz
consultoria para grandes empresas interessadas em fazer negócios com o estado
ou se livrar de multas?
Como o povo pode, por sua iniciativa, destituir
um prefeito, um governador, um presidente, um vereador, um deputado ou senador
inútil, corruptos e que lhe enganou durante as eleições?
Qual o mecanismo público (que funciona) obriga
o Ministro da Saúde a cumprir o que o conselho de saúde delibera?
Qual o mecanismo público que possibilita ao
cidadão comum denunciar e demitir um servidor público incompetente, que atende
mal, que causa prejuízo ao interesse público e que quase nunca vai trabalhar?
Qual o mecanismo que dá poder ao povo para confiscar os bens das empresas envolvidas em corrupção, em proibi-las de fazer novos negócios com o estado?
Qual o mecanismo que dá poder ao povo para confiscar os bens das empresas envolvidas em corrupção, em proibi-las de fazer novos negócios com o estado?
Vamos ser sinceros, o povo não tem poder, a não
ser na retórica (quando interessa) de alguém que deseja tapar o sol com
a peneira. A suposta democracia representativa, o sistema eleitoral e as
possibilidades de escolha nada mais são do que farsas bem montadas que
possibilita que outros (endinheirados) continuem governando, como sempre foi,
desde o império português.
Partidos decidem quem vão filiar e poderá ser
candidato à um cargo público, quase sempre os partidos, representado por meia
dúzia de gente, opta pelo que há de pior entre as possibilidades, como fala José Padilha.
Para completar, quem decide quem, entre as
escolhas dos partidos, vai ganhar as eleições, são os financiadores de
campanha, geralmente grandes empresas, como essas envolvidas na Lava Jato. Elas
fazem isso porque querem o controle do estado (e controlam), querem fazer
negócios milionários, e não se importam em pagar propina, roubar, mutilar a
nação.
Se o ministro vê nisso democracia e transparência
e que o povo, sem pegar em armas, tem condições de mudar a situação, é bobo ou
quer culpar a vítima pelo estupro.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa
das 10 às 6tas-feiras]
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