Mostrando postagens com marcador eleições. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador eleições. Mostrar todas as postagens

07 julho 2017

ABSURDO?

Absurso? Imagem capturada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado
Li em um livro de Clifford Geertz que em uma vila na Indonésia o poder era exercido em forma de rodizio.  Não se tratava de um direito apenas, mas de obrigação social. Talvez nem se tratasse de poder, mas de serviço, como deveria ser o exercício da política. Todos, sem exceção, deveriam ocupar a liderança da vila quando chegasse sua vez e efetivamente chegava a de cada um.
Agora vi que existe a ideia de que representantes populares podem ser escolhidos através de sorteio. Segundo quem defende, esse método é mais justo e democrático do que as tradicionais eleições. Difícil de acreditar ou difícil é acreditar que ainda insistimos em eleições viciadas que privilegiam majoritariamente as mesmas pessoas viciadas em fazer o que não interessa à maioria das pessoas?
Também relembrei que uma constituição foi escrita utilizando-se de redes sociais. Isso aconteceu na Suécia e pouco se falou, por que será?
Ao contrário do que parece, talvez o sorteio seja realmente mais democrático e estatisticamente mais confiável, mais representativo do que nossa forma tosca de eleições em que o voto popular nada mais é do que detalhe.

Maluquice?

Maluquice mesmo parecer ser continuar insistindo em eleições com partidos viciados que só nos oferecem pessoas mal-intencionadas para votar; com seus financiamentos privados divididos em caixa 1 e caixa 2 (ambos imorais), que elege majoritariamente homens brancos, cristão, heterossexuais, que têm na corrupção o modus operandi, representantes do poder econômico e apenas por descuido uma ou outra pessoa decente.
Essa forma representativa coloca homens brancos, cristão, heterossexuais, donos de terras, em sua maioria, representando homens e mulheres negras, homossexuais, adeptos de diversas religiões que não a cristã, e em sua maioria sem-terra, para representar gente que com as quais não tem nenhuma identificação, nem obrigação de lealdade, mesmo que lealdade fosse possível neste sistema político.

Isso tem como dar certo?

Que representatividade é essa? Parece mais usurpação do poder, de direitos, ditadura de alguns contra outros. E ainda querem nos fazer crer que isso é democracia, que ser contra isso é ser antidemocrático, que estamos sendo representados de forma honesta e justa, que todos têm chances neste sistema. Numa país onde a maioria vive em franca pobreza, como pode os seus representantes serem majoritariamente da classe dominante? Será que um dominado pode ser representado por um dominante e ainda assim a democracia representativa ser válida? 
O IBGE, em 2015, divulgou que a população de negros e pardos no Brasil é de 54%, as mulheres são 51,4%, segundo o IBGE, em publicação de 2013. Como então não temos 54% de negros ou 51,4% de mulheres representando essa parcela da população?
Isso não quer dizer que até essa forma de eleições representativas nada mais são do que fraudes, enganação, no mínimo ineficientes, para dizer o mínimo?
Esses homens brancos, cristãos, heterossexuais, donos de terras ou de empresas ou a serviço do capital, não me representam e acredito que não representam a maioria da população. Então essa democracia não é nem imperfeita, é ridícula.

E essa justiça eleitoral que não vê nada disso?

Numa democracia, mesmo que farsante, mesmo que de aparência, se um congresso é majoritariamente a favor do que a maioria da população é contra, como no caso da reforma da previdência, deveria haver deposição em massa, mas aqui é natural os representantes ter posições radicalmente diferentes às posições dos representados. Isso não é democracia imperfeita, isso não é democracia, isso é usurpação, isso é ditadura e é preciso que reconheçamos, mesmo à custa de nossa saúde mental.
A democracia representativa, no Brasil, parece dar razão às ditaduras. Se está assim, mesmo que em aparência, mesmo que na cabeça de gente desesperada, não significa que não está funcionando?
Talvez o caminho para democracia passe por criar mecanismos de democracia participativa usando a internet, as redes sociais e outros mecanismos que ainda podemos criar. Isso é difícil, entre outros motivos, porque interessa aos políticos, as autoridades, aos acadêmicos, aos estudiosos, aos que detém o poder, desacreditar que outras formas de se organizar, que não essas que estão aí, sejam possíveis.
A forma representativa de hoje, que elege um corruto após o outro e um congresso que faz exatamente o que a maioria da população não quer, não está funcionando (é preciso reconhecer) porque quase ninguém tem interesse ou capacidade de representar ninguém, ao menos no modelo atual.
Claramente essa forma de escolha, através de eleições, não possibilita que a sociedade, como um todo, com as suas particularidades, seja realmente representada. A grande maioria da população nunca terá a chance de ser eleita, mas apenas alguns poucos escolhidos por esse sistema corrompido.
Parece que um executivo forte, capaz de executar o deliberado pela maioria é necessário para manter escolas, ruas, serviços de saúde, água, esgoto, energia elétrica, comunicações funcionando, porém legislativo não é necessário mais. As leis que regem a sociedade podem e devem ser feitas pela população e hoje isso já é possível. Por exemplo, por que são os vereadores ou o executivo que devem decidir por onde passar uma linha de ônibus que maioria deles nunca vão usar?
Por que são deputados e não os professores, os pais e os estudantes que decidem o que se deve aprender numa escola?
Por que não é a população quem decide quanto quer pagar de imposto, com quantos anos deve se aposentar e se quer ou não bancar as mordomias absurdas para os membros do judiciário, do legislativo, dos servidores públicos de alto escalão?
Vamos começar a pensar em outras soluções?

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

11 março 2016

A CULPA, AS ESTRELAS E A BOCA ABERTA DO MINISTRO

Figura 1: Nada a declarar. Fonte: microvip.com.br
Ernande Valentin do Prado

Em um mundo cada vez mais parecido com as grandes ficções científicas distópicas, parece cada vez mais plausível culpar a vítima por tudo de errado que lhe é infligido. Se a mulher é estuprada, a culpa é dela por ser atraente, não do doente incentivado pela sociedade. Se o aposentado é obrigado a conviver com uma aposentadoria insignificante, a culpa é dele por não ter enriquecido quando jovem. Se a criança não chega a faculdade, é culpa dela, porque poderia ter se esforçado mais. Mentalidade dos vencedores, mas transplantada para as vítimas, numa espécie de síndrome de Estocolmo sinistra.
Mas algumas pessoas exageram. Vai vendo...
Dias destes, em uma rede de rádio que toca notícias, um Ministro do Tribunal Eleitoral, afirmou que o povo não é vítima, mas culpado da existência dos maus políticos. Alguma semelhança com a introdução deste texto, não é mera coincidência.
Será que esse senhor, com tanto poder, tanto estudo, tanto dinheiro, privilégios e mordomias pagas com o dinheiro que poderia ser mais bem aproveitado se aplicado na melhoria da vida do povo, está fazendo algo mais do que jogar areia em olhos já tão embotados?
Dizer que o povo é culpado pelos maus políticos poderia ser uma baboseira sem tamanho, uma demonstração de ignorância contumaz, cegueira diante do “obvio ululante”, se não fosse uma estratégia astuta de culpabilizar a vítima, assim como faz alguns profissionais de saúde ao dizer que a responsabilidade por estar doente é do indiviso que sofre, é o mesmo que culpar a mulher estuprada e não o facínora machista que a estuprou.
Parece que a intenção deste ministro ao afirmar o absurdo, está clara para quem se beneficia do esquema, assim como o estuprador sabe o que significa ser inocentado (por seus parceiros machos) por ser um doente violento, perigoso e covarde, porém o que dizer das vítimas da injúria? Será que não acabam se convencendo que são responsáveis por cair na armadilha?
Se o povo é realmente culpado da existência de tantos políticos covardes, criminosos comuns, charlatões, mentirosos, safados, integrantes de quadrilhas, como diria os titãs: “filho-da-puta, corrupto, ladrão”, poderia ele reclamar pelo modo como é roubado, vilipendiado, humilhado, destratado pela maioria dos políticos, dos juízes e até pelos servidores públicos?
Se ele é culpado por sua tragédia, só lhe restaria escolher melhor, não é isso?
Fica parecendo que o sistema é bom, que funciona e possibilita boas escolhas. Será que é assim o nosso sistema eleitoral?
Será que senhores, como esse ministro e outros da mesma laia dele, (de terno e gravata, com o bolso e a barriga cheias a custo do estado), quando dizem que o povo não escolhe bem, não estão simplesmente querendo dizer que o povo não está escolhendo quem eles gostariam que fossem escolhidos? Será que eles se importam com a escolha de pessoas honestas, honradas, decentes?  Qual administração na história do Brasil investiu realmente em promover os menos endinheirados? Será que ministros, juízes, promotores, deputados, senadores e todos esses têm condições morais de julgar as escolhas populares? Será que quem faz do Brasil uma monarquia retrograda, corrupta, violenta e indigna não são essa gente que deixam soltos, e se candidatando com aval da lei ridícula da ficha limpa, gente como Maluf, Cunha, Sarney, entres dezenas de outras famílias que fazem inveja a Don Vito Andolini Corleone?
Um ministro dizer que a sociedade é culpada pelos maus políticos não é ignorância, não é burrice, nem miopia, essa gente não tem direito a ser ignorante. Esse ministro e os jornalistas que não ofereceram contraditórios às afirmações ridículas, agem de má fé, possivelmente em conluio, mas pode ser apenas que não sabem, não possam dizer a verdade, não queiram, tenham se acostumado a mentir, por dever profissional e colaboracionismo.
Só em fevereiro de 2016, em apenas um estado brasileiro, a Paraíba, 180 prefeituras foram arroladas em denúncias de desvio de verbas. No estado de São Paulo estão desviando dinheiro da merenda escolar, da construção do metro (que não pode ser investigada por 50 anos). Em Minas Gerais aeroportos são construídos com dinheiro público em terras de parentes do ex-governador, quase todas as grandes empresas que fazem negócio com o estado estão envolvidas com pagamento de propinas, órgãos de imprensa e personalidade públicas estão envolvidas em sonegação de impostos, grandes infratores multados por órgãos ambientais não pagam as multas milionárias fictícias, se o presidente da câmara dos deputados é um canalha convicto e chantagista (que lavou dinheiro até na Igreja de um conhecido pastor boca aberta, que segundo o Boechat, deveria procurar uma rola), se o presidente do senado é réu de dezenas de processos e o judiciário, com seu aparato técnico, financeiro, moral, não consegue fazer nada, por que o povo conseguiria?
A justiça não consegue (ou não quer fazer nada), não consegue punir ninguém (a menos que a punição lhe interesse de alguma forma), e pessoas envolvidas com tudo isso, em qualquer eleição, são candidatas com aval da lei da ficha-limpa (ridícula demais), a culpa é do povo?
Se o judiciário, com todo seu aparato jurídico, leis, normas, verbas, não consegue fazer nada, como o povo pode conseguir. Posso entender que a justiça não quer fazer nada e que o Ministro está sugerindo que o povo deveria linchar os corruptos?
Será que o povo, vítima deste sistema montado pelas classes dirigentes: politica, financeira e culturalmente, pode ser responsável por não conseguir escolher corretamente entre o canalha da hora e o ladrão do patrimônio público de sempre?
Quem permite que esse sistema eleitoral (que não parece ser mais do que uma armadilha) continue funcionando, quem decide quem poderá ser ou não candidato, quem escolhe financiar esse ou aquele candidato, não são os verdadeiros responsáveis pela eleição dessa gente e faz do povo o bode expiatório perfeito de sempre?
Se os deputados, senadores, empresários, ministros, juízes, promotores e todos os outros, não fazem nada para mudar a lei (armadilha eleitoral) que garante a eleição, a reeleição de pai para filho, a culpa é do povo que não faz as leis, que não tem como obrigar que as leis já feitas sejam cumpridas com bom senso?
Qual o mecanismo que possibilita a sociedade punir o procurador de justiça que engaveta denúncias contra seus aliados de classe?
Qual a ferramenta pública que possibilita ao cidadão de bem punir o juiz que abusa do poder, que ganha acima do teto do estado, que usufrui de auxílio moradia, mesmo tendo casa onde está lotado, que emprega seus familiares juntos aos políticos e órgãos de imprensa, que faz consultoria para grandes empresas interessadas em fazer negócios com o estado ou se livrar de multas?
Como o povo pode, por sua iniciativa, destituir um prefeito, um governador, um presidente, um vereador, um deputado ou senador inútil, corruptos e que lhe enganou durante as eleições?
Qual o mecanismo público (que funciona) obriga o Ministro da Saúde a cumprir o que o conselho de saúde delibera?
Qual o mecanismo público que possibilita ao cidadão comum denunciar e demitir um servidor público incompetente, que atende mal, que causa prejuízo ao interesse público e que quase nunca vai trabalhar?
Qual o mecanismo que dá poder ao povo para confiscar os bens das empresas envolvidas em corrupção, em proibi-las de fazer novos negócios com o estado?
Vamos ser sinceros, o povo não tem poder, a não ser na retórica (quando interessa) de alguém que deseja tapar o sol com a peneira. A suposta democracia representativa, o sistema eleitoral e as possibilidades de escolha nada mais são do que farsas bem montadas que possibilita que outros (endinheirados) continuem governando, como sempre foi, desde o império português.
Partidos decidem quem vão filiar e poderá ser candidato à um cargo público, quase sempre os partidos, representado por meia dúzia de gente, opta pelo que há de pior entre as possibilidades, como fala José Padilha.
Para completar, quem decide quem, entre as escolhas dos partidos, vai ganhar as eleições, são os financiadores de campanha, geralmente grandes empresas, como essas envolvidas na Lava Jato. Elas fazem isso porque querem o controle do estado (e controlam), querem fazer negócios milionários, e não se importam em pagar propina, roubar, mutilar a nação.
Se o ministro vê nisso democracia e transparência e que o povo, sem pegar em armas, tem condições de mudar a situação, é bobo ou quer culpar a vítima pelo estupro.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

04 dezembro 2015

CORRENTINHA DE CROCHÊ

Charge: ladrões de utopia[1]
Ernande Valentin do Prado

Em 1996, num sábado, por volta das 20 horas, as vésperas das eleições, entrei no comitê de campanha do Partido do Trabalhadores (PT) no Bairro Eucaliptos, na cidade de Fazenda Rio Grande, região metropolitana de Curitiba. Rosa e Salete faziam correntinhas de crochê embaixo da melhor lâmpada da sala, para amarrar as credenciais que seriam usadas no dia seguinte pelos fiscais e delegados do partido na eleição.
Alguém tomou para si a tarefa de confeccionar e imprimir, em casa, cada uma das credenciais que os militantes destacados para fiscalização das sessões eleitorais usariam. Ficou muito bonito, elegante, bem feito, expressava toda a dedicação da militância àquela campanha. Neila, Fernando e Ednei, colaram cada uma das figuras no papel cartão, que alguém trouxe de uma gráfica aonde trabalhava, já cortado no tamanho certo e com os furos por onde passaria o barbante.
Mas para Rosa e Salete, barbante era inaceitável:
— Fica feio, disseram elas.
— Vão dar conta de fazer correntinhas para todas as credenciais? Perguntei incrédulo e achando aquilo uma perda de tempo.
— Claro, já fizemos tudo isso, respondeu Rosa e Salete mostrou uma caixa com as credenciais e as correntinhas que já estavam prontas.
— Mas não têm nada mais importante para fazer, ainda indaguei, sem me dar por vencido.
— Não! Disseram de forma categórica.
Salete, Rosa, Neila, Fernando, Ednei, Dona Maria, Toninho, Samuel, seu Moura, Chico Bento, Abel, Santino, Bonette, Domingos, Zé Aparecido, Zé Francisco e seus irmãos, Vilmar, Emerson, Lirani, Dowglas, José Marcelo, Sirlei e mais duas dezenas de pessoas, que nem consigo lembrar os nomes, passaram o dia a disposição do partido: atenderam quem procurava o comitê atrás de informações, lembravam o local e o horário das votações, aonde cada militante deveria se posicionar no dia seguinte para o último esforço. Cálculos dos institutos de pesquisa diziam que 30% dos votos eram conseguidos na boca de urna, e ninguém fazia isso tão bem quanto a militância do PT. 
Rosa e Salte distribuíam o material aos militantes, orientavam como cada um deveria agir, quem procurar em caso de problemas, de precisar de mais material, a hora que chegaria o lanche, o companheiro de dupla e revezamento.
— A gente passou o dia aqui, fizemos tudo isso e tudo que falta vai ficar pronto até amanhã, não esquenta a cabeça.
— Mas já é tarde, tem muita coisa para fazer, ainda insisti! Os dedos de vocês devem estar doendo, devem estar cansadas e amanhã ainda vamos trabalhar o dia inteiro.
— Quer parar de encher o saco! Disse Salete com seu costumeiro sorriso gigante no rosto. E concluiu: pegue aqui uma correntinha e passe por esse buraquinho...
No dia seguinte iriamos pôr a prova toda nossa campanha. Já tinha agendada uma festa de comemoração para as 20 horas no comitê do Partido, construído de forma coletiva no terreno do Domingos. Depois da meia-noite, um grupo ainda sairia para posicionar material de campanha em pontos estratégicos e retirar material dos adversários da direita. Foram meses de preparação, de trabalho diário, de vivências intensas, muito aprendizado, confraternizações, solidariedades, trabalho coletivo. Era a primeira eleição municipal do recém formado diretório municipal. Não tínhamos nenhum cabo eleitoral, nenhuma pessoa contratada para trabalhar exclusivamente nas eleições. Cada um dos candidatos a vereador, o candidato a prefeito, a vice, os coordenadores de campanha, foram escolhidos de forma democrática em cada um dos quatro núcleos espalhados pela cidade. Todos os militantes filiados ao partido puderam e votaram, de forma que o resultado lógico era se responsabilizar pela campanha, pelo mandato de cada um dos eleitos (caso houvesse). O comitê de campanha foi emprestado por um militante (Zé Aparecido), metalúrgico que tinha a sala para aluguel, mas deixou para gente usar, também cuidou de toda pintura do ambiente, pagava a água e a energia. O comitê fazia tanto sucesso, ficava cheio o dia todo com voluntários e até com adversários que passavam para bater papo e espionar. Depois das aulas juntavam estudantes em frente ao comité e ficavam entregando panfletos para os passantes e para os carros que desaceleravam no quebra-molas. 
Tínhamos uma Kombi muito velha à nossa disposição, também emprestada por um dentista, Luiz, candidato a vice prefeito e casado com a Rosa. O combustível a gente conseguia fazendo “vaquinha” entre todos ou quem dirigia se encarregava de encher o tanque. Com ela andávamos toda a cidade fazendo campanha, carregando pessoas e material: panfletos, cartilhas, cartazes, baldes com cola, que Domingos nos ensinou a fazer, e tinta, broxas e pincéis. Não era difícil ela enguiçar e pessoas da comunidade empurrar para pegar no tranco. Quem dirigia a Kombi, quase sempre, era o Toninho (meu irmão), o Elvis, o Bonette, o Leslie, nosso candidato a prefeito. Todos os fins de semana, sábados e domingos, feriados, dias santos, que antecederam os sessenta dias finais das eleições. A militância se reunia bem cedo: crianças, mulheres, idosos, homens, gente das igrejas, das associações de moradores, dos sindicatos, das escolas: professores, estudantes, zeladores. Cada fim de semana visitávamos casa por casa de determinado bairro: distribuíamos material de campanha, colávamos adesivos nas janelas, nos portões, nos carros e, principalmente, conversávamos com as pessoas. Chamávamos de arrastão. Íamos em peso, com a Kombi de apoio, quem tinha carro ia com ele, quem tinha bicicleta, moto, ia com elas, que não tinha nada ia a pé ou na Kombi (uma vez apareceu uma charrete).
No fim do dia, por volta das 18 horas, nos reuníamos no comitê de campanha e avaliamos o que tínhamos conseguido. Em todas as reuniões alguém aparecia com um bolo, uma torta, um prato de salgado. Fazíamos um leilão estranho: calculava-se o valor do bolo, determinava-se que tínhamos que arrecadar o valor. Cada um dava o que podia ou queria. Com o dinheiro comprávamos refrigerantes no bar da frente. Quase sempre o dono do bar dava os refrigerantes ou um desconto muito significativo. Era a forma dele participar. E quase sempre sobrava dinheiro para as despesas da campanha (quase nada, mas somava-se a outros quase nada).
Era o momento da celebração do dia. Microempresário, pedreiro, profissional liberal, músico, professor, dentista, metalúrgico, motorista de ônibus, sapateiro, padeiro, advogado, todos ombro-a-ombro. Os adolescentes contavam histórias das visitas, as discussões com pessoas que não acreditavam que o partido era uma opção, que nossos candidatos eram honestos, que não recebíamos doações de empresários, que iriamos mudar a cidade, o estado, o Brasil, o mundo. As mulheres vinham com seus filhos, com o marido ou não. O bebê da Rosa passava de braço em braço enquanto ela, sempre ocupada, dava jeito em alguma coisa. Os militantes da igreja falavam de sua fé, do que representava aquele dia, aquele estar junto. Os do sindicato falavam do momento histórico, da união da classe trabalhadora. Quem estivesse afim falava: as lideranças, os candidatos, os militantes, curiosos que se juntavam por causa do barulho, da agitação, por ver rostos conhecido, por querer comer o bolo. Era, mais do que qualquer coisa, uma festa, um momento de confraternização, de combinar aonde seria o próximo arrastão, o que seria feito durante a semana. 
Quase sempre apareciam para trabalhar na campanha durante a semana: estudantes, pessoas de folgas ou desempregadas. E, mesmo quem trabalhava o dia todo, oferecia-se para distribuir panfletos na fila de ônibus, antes de embarcar, na porta da firma, fazer visitas em casas de conhecidos, depois do trabalho.
Nosso candidato a prefeito tinha uma Brasília amarela muito velha, com ela andava para todo lado fazendo campanha. Parava o carro nos lugares mais movimentados e deixava tudo aberto.
— Não vai fechar, perguntava eu? Ele respondia: quem vai querer roubar o carro de um PTista?
Em um certo sábado, estava agendo a pintura de um muro, cedido em um lugar muito bom do bairro, por onde passava a principal linha de ônibus, visibilidade gigante. O morador disse que todos os candidatos haviam ido lá pedir o muro, queriam até pagar pelo espaço, mas ele não cedeu. Para lá foi Vilmar, nosso pintor de muro, de faixas, enfim, tudo que era arte, letras e cores, era com ele. Quase sempre fazia isso nas horas de folgas e, embora fosse seu ganha pão, nada cobrava pelo serviço e, muitas e muitas vezes, ainda dava a tinta, os pinceis, as réguas.
Quando cheguei já vi de longe uma aglomeração de gente. Quase sempre, nos fins de semana, essas atividades viravam festa. Lá estava nosso candidato a prefeito ajudando a pintar o muro, segurando a régua para Vilmar riscar. Até tinta no rosto já tinha.
— Você tem mesmo que estar aqui, disse eu, sem esconder certa irritação e impaciência. A tarefa dele, naquele dia e horário, não era pintar muro.
— Vim ajudar, respondeu na maior calma.
Leslie era quase sempre muito calmo e relevava meu senso de planejamento quase sempre na fronteira entre a objetividade e o autoritarismo. Ele foi meu professor de Literatura no segundo grau, no Colégio Décio Dossi. Estávamos na primeira reunião de fundação do PT em Fazenda Rio Grande, sem que um soubesse das atividades “subversivas do outro”. E foi o primeiro candidato a prefeito de nossa história na cidade. Depois, em outra eleição, foi o vereador mais votado, mas isso é outra história.
— Você não deveria estar na reunião com a associação comercial?
— Já fui, terminou logo, não tinha quase ninguém. Por isso vim ajudar aqui.
— Tá bom, disse eu. Mas não precisa pintar mais, deixa o Vilmar trabalhar, tem gente demais para ajudá-lo.  Vamos aproveitar para distribuir uns santinhos, fazer visitas as lideranças da paróquia que moram aqui perto.
Leslie, sem discutir, disse:
— Então vamos.
O que queria dizer, quando comecei essa conversa, é o seguinte: as correntinhas de crochê, apesar de hoje não significar absolutamente nada para o que o PT se tornou, era só uma delicadeza coerente, bonita, significativa e representativa de um modo de fazer/ser, como todas as outas que vivemos nessa eleição de 1996 em particular, mas também durante mais de 10 anos de intensos sonhos e utopias, com ou sem eleições para disputar.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


1. Para saber mais sobre Lor, o cartunista que fez essa charge, clique aqui 

07 novembro 2014

UM DIA ME DISSERAM QUE AS NÚVENS NÃO ERAM DE ALGODÃO

Ernande Valentin do Prado 


Fui filiado ao PT - Partido dos Trabalhadores por mais ou menos 12 anos. Uma coisa que aprendi com o PT daquele tempo é que uma decisão tomada pela maioria em assemblei não deve e não pode ser modificada pela conveniência da executiva ou da minoria dirigente. Alias, foi quando essa pratica deixou de existir que me desliguei do partido em 2001.
Naquele tempo o Diretório do PT na minha cidade, Fazenda Rio Grande - Região Metropolitana de Curitiba tinha muitos filiados. Pessoas do POVO mesmo: operários, professores, pequenos comerciantes, estudantes, sindicalistas, pessoas de associações de moradores, donas de casa, pedreiros, mecânicos, auxiliares de enfermagem, dentista, lideres de movimentos de toda ordem - sem terra, sem casa, sem emprego. E todos eram ouvidos e uma decisão tomada por essa gente era sagrada, mesmo que não representasse a vontade da direção do Partido. E isso frequentemente acontecia. E acontecia porque o poder da direção era delegado e não usurpado, condição que Demo (2006) cita como fundamental para dar legitimidade a todo processo democrático.
Quando me filiei ao PT era metalúrgico e cursava o segundo grau no Colégio Décio Dosse[2]. Trabalhava em uma fábrica de autopeças em Curitiba. Levantava por volta das cinco da manhã todos os dias e ia dormir por voltas das 23h30min. Fabricava peças para carros que nunca conseguiria comprar com meu salário. Nada diferente do que vivia a maioria das pessoas da minha cidade, que nem chegava a ser um município de verdade. Íamos para lá apenas para dormir. Passavamos o dia todo trabalhando e gerando renda em Curitiba. Mas na hora de usufruir o que a metrópole tinha de melhor não podíamos, pois éramos de outra cidade. Além disso, o Município tinha Dono. Seu nome Geraldo Cartário. Deputado muito influente e poderoso. Na verdade quase um PODEROSO CHEFÃO. Em uma campanha eleitoral, por exemplo, ele derrubou o muro da casa de um eleitor porque este pintou o nome de outro candidato concorrente.
O PT nesta cidade nasceu combatendo tudo isso e seguiu sua missão diária com chuva ou sol, com eleições a vista ou não. Era um trabalho cotidiano praticado por pessoas simples que encaravam a política como missão de cidadania, como forma de autoafirmação e nunca como profissão. Nossos candidatos, em épocas de eleições, eram escolhidos pela maioria e a essa maioria comprometia-se em fazer a campanha, inclusive pagar por ela.
Era muito bonito ver as pessoas dedicando-se a campanha dos companheiros. E isso acontecia geralmente após trabalhar o dia inteiro, ou antes, de ir para o trabalho – o que quer dizer de madrugada nas filas de ônibus. Isso incluía também dedicar os fins de semana para fazer arrastão: bater de porta em porta para pedir votos – aprendemos com as TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, pintar muro e distribuir panfletos. Tudo isso, como já disse, sem receber um centavo em troca ou promessas de emprego ou qualquer cargo que fosse. Cargo de assessoria também era uma decisão da maioria.
Em compensação depois das eleições os eleitos sabiam que o mandato não lhes pertencia totalmente, que tinha a quem dar satisfação, que tinha uma maioria para ouvir antes de cada projeto, antes de cada decisão. E isso, por mais difícil que fosse, acontecia. Na segunda eleição que participamos elegemos dois vereadores e todas as terças-feiras às 19 horas os vereadores se reuniam para planejar a semana, os projetos e as manifestações na câmara de vereadores. Era uma reunião aberta a todo filiado do Partido (e realmente acontecia).
Desta forma nosso Diretório ganhou fama na região, pois mesmo dentro do PT essa era uma postura em desuso. Nossas posições sempre foram radicais demais até para as tendências mais radicais do partido. Éramos o único diretório da região a não aceitar coligações fora do arco das esquerdas e a se definir como socialista. Talvez pelas posições claras fomos também o mais novo e único diretório da Região Metropolitana, com exceção de Curitiba, a eleger representantes para câmara de Vereadores. Foi uma história de sucesso “meteórico”.
Não apenas elegemos nossos vereadores, fizemos os dois vereadores mais votados da cidade e gastando menos de dez por cento do que gastaram outros partido e isso por canta do trabalho voluntários dos militantes, imagino.
Mas por que os militantes trabalhavam no sol, na chuva e pagava para isso?
Faziam isso porque acreditavam e acreditavam porque tinham controle das decisões. Não apenas trabalhavam, mas pensavam o trabalho. Todos e todas eram ouvidos e tinham suas decisões respeitadas. Acredito que esse foi (e é) o segredo.
No PT era comum haver muitas votações. Isso quando não se conseguia chegar a um consenso depois das discussões. Porém no Diretório Municipal do PT de Fazenda Rio Grande não conseguir consenso não era uma opção. Passamos mais ou menos cinco anos sem fazer votação para tomar decisões. O consenso era sempre possível. Não economizávamos reuniões, horas e horas de discussões. Com nosso método não havia vencidos e vencedores e todos assumiam o que fora decidido, pois era de fato decisão de todos.
Como disse, e essa é a razão deste texto, uma decisão tomada em assembleia não podia ser modificada, a menos que fosse por unanimidade e de preferencia em outra assembleia. Mesmo contraria as posições pessoais. E penso que é justamente esse o segredo e a força da democracia: respeito à opinião do outro e ao jogo político legitimo e honesto (mas jogo político honesto ainda existe?).
No PT entrei como operário e logo me transformei em um dos dirigentes. Mas nunca deixei que isso me subisse à cabeça. Ocupei todos os cargos disponíveis no Diretório, inclusive alguns em esfera regional. Mas nunca deixei de ouvir e respeitar a decisão do mais simples e calado militante que ocupavam o fundo da sala. SEI DE ONDE VIM E TENHO ORGULHO DISSO.
Essa postura, que ouso chamar de democrática, acompanhou-me em tudo que fiz até hoje. E espero não perder jamais. E apesar de saber que o PT não é mais assim, que muitos dos antigos companheiros não são mais assim, agradeço aos anos que passei no Partido, pois aprendi muito e trago comigo a radicalidade daqueles dias.
A tradição brasileira é presidencialista e o PRESIDENTE tem o poder de tomar decisões baseadas em sua própria vontade, independente do que já havia sido debatido. Nunca fiz isso quando estive em posição equivalente e espero nunca fazer. Se depender só da minha vontade isso nunca farei.
É por conta da minha pouca ou nenhuma disposição em tomar decisões a revelia da maioria que prefiro não ocupar funções onde haja pressão para que isso aconteça.
Decisões em consenso exigem negociações, afinidades, sobretudo de objetivos, empatia, vínculos e disposição para tal. Coisas cada vez mais difíceis de construir nas relações efêmeras da atualidade. O “toma lá da cá” é uma regra de boa convivência entre os pares no dia-a-dia. Não suporto isso, não faço isso, tenho vergonha disso. Não sei nem cortar fila (e não quero aprender).
E como sou radical, graças a Deus, não consigo fazer isso nem para mudar o dia e a hora de uma reunião marcada pela maioria em “assembleia”.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]




[1] Este texto foi originalmente publicado no Blog Cuidado, Saúde e Cidadania com o título de A democracia nossa de cada dia. O título atual é uma referência à música: somos quem podemos ser – Engenheiros do Havaí.
[2] Volto a esse tema em outra oportunidade.

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog