Tatuagem de parece - mangabeira. Ernande, 2015. |
Para meu amigo Mateus Meira...
O vigia
Com o fuzil nas mãos,
olha da guarita o barbudo cabisbaixo que caminha sozinho no pátio, durante o
banho de sol e pensa: não acredito que ele matou a própria mãe.
O pastor
Admirado, do altar olha
as cabeças baixas a sua frente, sabe que suas palavras têm poder, suas orações
chegam aos corações mais resistentes dessa gente tão carente de esperança. Por
um milésimo de segundo pensa: hoje a coleta vai ser boa, para gloria do senhor!
O médico
No fundo do
consultório, de uma casa alugada, que serve de Unidade Básica de Saúde,
sente-se frustrado olhando sem nenhuma curiosidade as pessoas que entram, uma
após a outra, em intervalos de poucos minutos: gente suja, cheirando mal, não
ganho o suficiente para aguentar isso.
O gari
Chega em seu posto de
trabalho bem cedo, olha a rua arborizada, cheia de folhas, bitucas de cigarro,
terra, sacos plásticos, garrafas vazias de refrigerante e todos os restos
deixados pelos transeuntes, nem sempre apressados e pensa: quando o dia terminar
tudo vai estar limpo.
O deputado
Indeciso sobre seu voto,
olha as propostas e analisa as opções, os prós e contra e pensa: em
qual delas eu ganha mais?
O motorista de ônibus
Dirige apressado pelo
transido, freia bruscamente nos quebra-molas, entra em alta velocidade nas
curvas, deixa de parar nos pontos, ouve, às vezes, alguém protestar: pensa que
tá carregando boi? Olha pelo retrovisor e pensa: o importante é manter meu horário.
A professora
Olha para Beatriz,
magrinha, sorriso maior do que a boca, caminhando em sua direção, com seu
vestidinho de flores já sem cor, chinelo de dedo, nas mãos, como oferenda, um desenho exageradamente
colorido e sem forma definida, Pensa: vou enfeitar a porta de minha geladeira.
O policial
Ao sair do hospital, após
tratar de mais um ferimento, olha para o curativo e pensa: um dia não vou
conseguir sair andando daqui.
O soldado
Nas manifestações
contra a morte de mais um morador da comunidade, olha e pensa: essa gente não
são os inimigos.
O torturador
Olha o desfalecido que acaba de espancar o corpo e humilhar a alma, pensa com ódio: daqui
pode até sair vivo, mas não inteiro.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10
às 6tas-feiras]
Belo texto! Nos faz refletir sobre as diferentes formas de olhar, de sentir e de compreender o que nos cerca.
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