1
O homem aproximou-se por trás, sem ser visto.
Deu apenas um tiro, que atravessou o crânio do deputado, espirando sangue e
resto de massa cinzenta nas caras assustadas dos jornalistas.
Antes, porém, ele gritou:
- Vai roubar merenda no inferno, corrupto sem
vergonha.
2
O rapaz esgueirou-se pela calçada, passando
entre carros, irregularmente estacionados na calçada. Com um prego, fechado na
mão esquerda, aparecendo apenas a ponta, riscou cada uma das latarias.
3
A menina de 13 anos contou cada minuto que sua
avó, de 76 anos, passou na recepção da Unidade de Saúde, sentada em sua cadeira
de rodas, já com o estofamento esfacelado pelos mais de 15 anos de uso.
Viu quando a médica estacionou sua BMW branca
nos fundos da UBS, mais de duas horas depois do horário previsto.
A menina, com uma pedra, sem ninguém ver,
quebrou cada uma das lanternas do carro da médica, como ainda não se sentia
vingada, quebrou também os retrovisores.
4
Ela disse para o gerente:
- Esse arroz tá frio e essa carne cheia de
nervos, não dá para cortar. Além disso esperamos quase duas horas pelo pedido,
já estamos quase embriagados de tanto tomar cerveja quente.
Cinicamente o gerente disse:
- Essa faca não ajuda em nada. Vou trocá-las e
volto já.
Virou as costas e foi buscar as facas. O grupo,
sem nada dizer, levantou-se e foi embora.
5
A mulher, com várias sacolas colocou o pé na
faixa de pedestres e começou atravessar a rua. Apressada a mulher da Mercedes
azul marinho, obrigada a parar, buzinou impertinente.
A mulher, sem alterar o passo, parrou,
descansou as sacolas no chão, em frente ao carrão, tirou dela um ovo e
arremessou contra o para-brisa de dois mil reais.
Depois, sem pressa, ergueu as sacolas e
continuou atravessando a rua.
6
Depois de dez minutos sentado, sem nada ouvir
ou poder dizer, olhando a mulher em sua frente preencher papéis: dois livros
ato, e mais dois formulários, que teve que assinar dando ciência de que estava
sendo atendido, finalmente ouviu a voz da médica:
- O senhor tem diabetes, mas vem muito pouco
aqui. Já tem mais de seis meses que passou pela última consulta. Não acha que é
muita falta de responsabilidade consigo mesmo?
- Sabe o que é...
- Não sei, pode me dizer por que demora tanto
para vir à consulta médica?
- É que seu atendimento é muito ruim, por isso
eu evito ao médico ficar em sua presença, só venho mesmo em último caso.
No
final, depois de responder a pergunta, procurou sorrir, como se tivesse apenas
respondido de forma protocolar o questionamento. A mulher, sem voz, abaixou a
cabeça e continuou fazendo anotações.
7
De dentro do carro, reconheceu a cara do novo
ministro da educação.
- Vai mais devagar. Pediu ele ao colega, já
arrancando o tênis do pé.
O rapaz, filho de um vaqueiro do sertão da
Bahia, acabara de ser aprovado para cursar Filosofia em uma universidade
pública, mas agora nem sabia se entraria com a diminuição das vagas, imposta
por aquele burocrata.
- Toma essa, ministro pilantra. Gritou arremessando
o tênis, que acertou na cara do homem, em pé na calçada, enquanto dava
entrevista para uma tv.
8
O diretor da Escola de Saúde Pública, na roda
com os estudantes que lhe cobrava providência quanto a falta de livros e
internet na biblioteca, acendeu um cigarro. Sem cerimônia, sem disfarçar a
impaciência, baforava fumaça na cara dos estudantes, que tossiam incomodados.
Discretamente, Luzia, menina pequena, magrinha,
saiu da roda. Quando voltou trazia um extintor, que descarregou na cara do
diretor. Do cigarro não saiu mais fumaça, mas todos continuaram tossindo.
9
A estudante foi para a comunidade assim:
Sapato de salto alto – R$ 538,00.
Camiseta bordada – R$ 164,00.
Relógio de ouro – R$ 2.600,00.
Brincos de diamante –R$ 5.850,00.
Calça jeans – R$ 544.90.
Jaleco Banco bordado com seu nome – R$ 326,00.
Quando saiu do outro lado da viela, seu
orçamento já era bem menor.
10
Quando perguntado o que sentia, pelo menino de
jaleco branco e estetoscópio nos ombros, o homem disse, com toda certeza:
- Acho que tô com princípio de peleumonia.
O menino, parou de escrever na ficha e olho
para o homem pela primeira fez.
- Se o senhor sabe que tá com PELEUMONIA, não
precisava vir aqui, não é mesmo?
- Meu pai morreu de peleumonia e eu tô sentindo
a mesma coisa que ele sentiu antes de morrer...
- Não existe peleumonia, seu... Interrompeu
bruscamente o menino de branco. É pneumonia. E quem sabe se o senhor tem
PNEUMONIA, é o médico, não o senhor, que nem estudo tem. O senhor por acaso
sabe ao menos ler?
O homem baixou a cabeça, não disse mais nada. O
menino levantou-se, fez ausculta no pulmão.
Do seu lado estava o filho, adolescente de 16
anos. Nada disse e o menino de jaleco branco não pareceu perceber sua presença.
Depois da ausculta, escreveu alguma coisa na
ficha e estendeu um papel com sua assinou:
- Peça para recepcionista um raio X e volte
quando estiver pronto.
O homem e seu filho levantaram-se e foram
saindo. Ainda no porta, o menino sorriu e disse:
- E não se esqueça, não existe peleumonia. É
P-NEU-MO-NIA, seu...
Antes que os dois tivessem saído completamente,
gritou:
- O próximo.
No meio do atendimento seguinte, alguém abre
bruscamente a porta do consultório, interrompendo a consulta e anuncia com
urgência:
- Seu carro tá pegando fogo, doutor.
Ele corre ao estacionamento, mas o fogo no seu
Jeep já não tinha mais como ser apagado.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]
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