23 novembro 2018

TUDO AO MESMO TEMPO AGORA

Imagem capturada pelo Google, 2018. 



Ernande Valentin do Prado

Queria conseguir esconder minha má vontade com pessoas que andam atrasadas, principalmente com aquelas que não contentes em estar atrasadas, fazem questão de espalhar simpatia como se não estivessem atrapalhando. Pode ser que os atrasados compulsórios se comportem assim para disfarçar ou talvez só não tenham desconfiômetros ativos.
Tanto faz o motivo de quem não chega na hora, quando o atraso é um hábito, nada justifica, porque tudo são desculpas.
Tenho um colega que é da turma dos atrasados compulsórios. Certa vez ele passou de todos os limites que eu já tinha visto: chegou no meio de uma reunião, interrompeu, cumprimentou cada um dos presentes e depois disse:
― Só vim para avisar que hoje não posso vir.
― Como aguentar um cara assim?
Simplesmente não aguento.
Falando sério: quando era estudante de Enfermagem, já projetando as dificuldades da vida profissional, achava que os atrasos seriam um problema que dificilmente eu conseguiria resolver.  Quebrava minhas cabeça tentando imaginar: “como fazer a equipe cumprir o horário de trabalho e, pior, como ficar de olho em tudo ao mesmo tempo?
Não tinha ideia do que poderia fazer para acompanhar tudo, todos e principalmente o cumprimento dos horários de entrada e saída dos trabalhadores.
Hoje em dia essa preocupação pode parecer ridícula, mas “no meu tempo” de faculdade aprendia-se que controlar tudo e todos era tarefa da Enfermagem. Estudávamos o cuidado direto das pessoas (que era o que mais me interessava) e principalmente a gestão da equipe e dos cuidados. Será que os cursos de hoje em dia ainda têm essa preocupação?
Nos serviços que observo pessoalmente e em outros que tenho notícias, a Enfermagem não tem mais essa função de gestão da equipe, o que não deixa de ter um lado muito bom e outro muito ruim, tanto para o serviço quanto para enfermagem. Para enfermagem, ao abrir mão de ser o maestro da equipe, diminuiu seu trabalho e ela pode se concentrar nos cuidados diretos. Para equipe a situação foi outra, ficou sem o maestro conhecedor da música que todos deveriam executar. E sem maestro todo mundo deve saber como a orquestra toca atualmente. Não que o problema seja só a falta de maestro, parece ser só um dos sintomas.
Enfim, pode ser só saudosismo o que sinto.
Antes de dizer como lidei (e aprendi lidando) com essas situações, vou falar um pouco das características do grupo onde essa vivência aconteceu.
Estávamos dentro de uma Unidade Básica e a equipe era bem maior do que o normal da Estratégia Saúde da Família, embora funcionasse como tal. Eram sete Agentes Comunitários de Saúde (ACS), três Técnicos de Enfermagem, um farmacêutico, um Técnico de Farmácia, uma Técnica para vigilância epidemiológica, dois motoristas, dois técnicos administrativos, três recepcionistas, uma Assistente Social, uma nutricionista, uma faxineira/cozinheira e um almoxarife, mais o médico e a dentista. Todos subordinados, em teoria, ao coordenador, que nesta época era sempre o enfermeiro.
No primeiro mês eu fingi que dava conta de tudo. Acabava o papel higiênico e vinham me avisar; acabava a medicação e vinham me dizer; queimava uma lâmpada e vinham me contar. Mais do que informar, queriam que eu tomasse providências para resolver. E não adiantava dizer: se não tem papel higiênico, vá ao almoxarifado e pegue.
Ao fim do primeiro mês procurei o Secretário de Saúde e disse que não dava conta daquilo, que não entendia porque eu teria que cuidar de medicação se tinha farmacêutico na UBS.  O mesmo sobre o almoxarifado. Ele ponderou que sempre foi assim e que a “outra” Enfermeira sempre trabalhou desta forma. Também disse que precisava que alguém coordenasse essas coisas.
― E tem que ser eu?
Realmente não precisava, ele concordou.
Sugeri que uma das técnicas de enfermagem poderia ser promovida à coordenadora da UBS, já que tinha quatro técnicas na UBS. Argumentei que ela poderia cuidar de toda essa parte administrativa e eu responderia pela assistência.
Ele aceitou e depois de consultar o prefeito e a Técnica, nomeou-a, que foi surpreendentemente eficiente. Sempre consegui trabalhar com ela em parceria e sem invadir seu espaço ou ter meu espaço invadido.
Agora voltando à questão inicial, entrada e saída dos profissionais.
Na primeira reunião que conduzi, sem a presença do médico e do dentista, que não se consideraram parte da equipe, fui questionado, pelos ACS, sobre o horário de trabalho: entrada, saída, se poderia ir para a visita domiciliar diretamente de casa, sem passar pela UBS e se continuariam trabalhando apenas meio expediente, como faziam até então.
Inicialmente pactuamos que teriam que ir até a UBS todos os dias antes de iniciar as visitas e que isso poderia ser revisto com o tempo. Que trabalharíamos o dia todo, porém, não seria necessário fazer visitas de rotina depois do almoço, caso fosse possível cumpri-las pela manhã. A tarde nos dedicaríamos a outras coisas, como estudar, planejar, organizar e fazer uma visita ou outra, em situações especiais.  
Sobre horário de entrada e saída: o pacto era bem simples: ninguém deveria chegar depois e nem sair antes do coordenador.
Sinceramente achei que ninguém iria ouvir e talvez tenham imaginado que eu seria o primeiro a não cumprir o horário, portanto ninguém precisaria se preocupar. O que aconteceu é que, de um modo geral, quase cem por cento da equipe respeitou o pacto e nunca foi necessário rediscutir.
Aprender a delegar foi outra coisa surpreendente em minha vida profissional. Sempre fiz questão de saber de tudo o tempo todo e os ACS me informavam de tudo, tudo mesmo, até fofocas pessoais sobre a vida dos outros (coisa que com o tempo parou, pois não era necessário ser tão tudo).  
No início traziam as situações e esperavam orientações sobre como lidar, como proceder e solucioná-las e paulatinamente foram empoderando-se de tal forma que passaram a informar as situações e o como já tinham encaminhado ou resolvido.
Faziam isso não apenas os ACS, mas a Técnica de Enfermagem, a Nutricionista, a Profissional de Educação Física, a Coordenadora da UBS, a coordenadora da Vigilância Epidemiológica e Sanitária, o Secretário de Saúde e todos os outros que se consideravam parte da equipe.
Tenho certeza que aprender a delegar foi fácil porque a equipe era muito boa. E o sucesso da primeira função delegada, ou seja, a Coordenação da UBS (embora na época eu não soubesse que estava delegando e sim me livrando de uma função que não queria exercer), determinou os sucessos seguintes.  
Com o tempo fui deixando de ocupar o centro de tudo e, ao contrário do que acontece com muitas pessoas, não deixei de perceber minha importância na equipe, mesmo parecendo que tudo começou a andar sozinho. Na época em que fiz a especialização, ficava uma semana fora, quando voltava, tudo que havíamos planejado tinha sido executado: reuniões de equipe, ações educativas, monitoramentos, programa de rádio, atendimento na delegacia, atividade de saúde do trabalhador e tudo que estivesse agendado para aquela semana.
Talvez seja por conta desta equipe e desta forma de trabalhar que nunca deixei de acreditar que o SUS dá certo e é até bem fácil de fazer o que precisa ser feito.
E para você, como é?


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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