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Imagem capturada pelo Google, 2018. |
Ernande Valentin do Prado
Queria conseguir
esconder minha má vontade com pessoas que andam atrasadas, principalmente com
aquelas que não contentes em estar atrasadas, fazem questão de espalhar
simpatia como se não estivessem atrapalhando. Pode ser que os atrasados
compulsórios se comportem assim para disfarçar ou talvez só não tenham
desconfiômetros ativos.
Tanto faz o
motivo de quem não chega na hora, quando o atraso é um hábito, nada justifica,
porque tudo são desculpas.
Tenho um colega
que é da turma dos atrasados compulsórios. Certa vez ele passou de todos os
limites que eu já tinha visto: chegou no meio de uma reunião, interrompeu,
cumprimentou cada um dos presentes e depois disse:
― Só vim para
avisar que hoje não posso vir.
― Como aguentar
um cara assim?
Simplesmente não
aguento.
Falando sério:
quando era estudante de Enfermagem, já projetando as dificuldades da vida
profissional, achava que os atrasos seriam um problema que dificilmente eu
conseguiria resolver. Quebrava minhas cabeça tentando imaginar: “como
fazer a equipe cumprir o horário de trabalho e, pior, como ficar de olho em
tudo ao mesmo tempo?
Não tinha ideia
do que poderia fazer para acompanhar tudo, todos e principalmente o cumprimento
dos horários de entrada e saída dos trabalhadores.
Hoje em dia essa
preocupação pode parecer ridícula, mas “no meu tempo” de faculdade aprendia-se
que controlar tudo e todos era tarefa da Enfermagem. Estudávamos o cuidado
direto das pessoas (que era o que mais me interessava) e principalmente a
gestão da equipe e dos cuidados. Será que os cursos de hoje em dia ainda têm
essa preocupação?
Nos serviços que
observo pessoalmente e em outros que tenho notícias, a Enfermagem não tem mais
essa função de gestão da equipe, o que não deixa de ter um lado muito bom e
outro muito ruim, tanto para o serviço quanto para enfermagem. Para enfermagem,
ao abrir mão de ser o maestro da equipe, diminuiu seu trabalho e ela pode se
concentrar nos cuidados diretos. Para equipe a situação foi outra, ficou sem o
maestro conhecedor da música que todos deveriam executar. E sem maestro todo
mundo deve saber como a orquestra toca atualmente. Não que o problema seja só a
falta de maestro, parece ser só um dos sintomas.
Enfim, pode ser
só saudosismo o que sinto.
Antes de dizer
como lidei (e aprendi lidando) com essas situações, vou falar um pouco das
características do grupo onde essa vivência aconteceu.
Estávamos dentro
de uma Unidade Básica e a equipe era bem maior do que o normal da Estratégia
Saúde da Família, embora funcionasse como tal. Eram sete Agentes Comunitários
de Saúde (ACS), três Técnicos de Enfermagem, um farmacêutico, um Técnico de
Farmácia, uma Técnica para vigilância epidemiológica, dois motoristas, dois
técnicos administrativos, três recepcionistas, uma Assistente Social, uma
nutricionista, uma faxineira/cozinheira e um almoxarife, mais o médico e a
dentista. Todos subordinados, em teoria, ao coordenador, que nesta época era
sempre o enfermeiro.
No primeiro mês
eu fingi que dava conta de tudo. Acabava o papel higiênico e vinham me avisar;
acabava a medicação e vinham me dizer; queimava uma lâmpada e vinham me contar.
Mais do que informar, queriam que eu tomasse providências para resolver. E não
adiantava dizer: se não tem papel higiênico, vá ao almoxarifado e pegue.
Ao fim do
primeiro mês procurei o Secretário de Saúde e disse que não dava conta daquilo,
que não entendia porque eu teria que cuidar de medicação se tinha farmacêutico
na UBS. O mesmo sobre o almoxarifado. Ele ponderou que sempre foi assim e
que a “outra” Enfermeira sempre trabalhou desta forma. Também disse que
precisava que alguém coordenasse essas coisas.
― E tem que ser
eu?
Realmente não
precisava, ele concordou.
Sugeri que uma
das técnicas de enfermagem poderia ser promovida à coordenadora da UBS, já que
tinha quatro técnicas na UBS. Argumentei que ela poderia cuidar de toda essa
parte administrativa e eu responderia pela assistência.
Ele aceitou e
depois de consultar o prefeito e a Técnica, nomeou-a, que foi
surpreendentemente eficiente. Sempre consegui trabalhar com ela em parceria e
sem invadir seu espaço ou ter meu espaço invadido.
Agora voltando à
questão inicial, entrada e saída dos profissionais.
Na primeira
reunião que conduzi, sem a presença do médico e do dentista, que não se
consideraram parte da equipe, fui questionado, pelos ACS, sobre o horário de
trabalho: entrada, saída, se poderia ir para a visita domiciliar diretamente de
casa, sem passar pela UBS e se continuariam trabalhando apenas meio expediente,
como faziam até então.
Inicialmente
pactuamos que teriam que ir até a UBS todos os dias antes de iniciar as visitas
e que isso poderia ser revisto com o tempo. Que trabalharíamos o dia todo,
porém, não seria necessário fazer visitas de rotina depois do almoço, caso
fosse possível cumpri-las pela manhã. A tarde nos dedicaríamos a outras coisas,
como estudar, planejar, organizar e fazer uma visita ou outra, em situações
especiais.
Sobre horário de
entrada e saída: o pacto era bem simples: ninguém deveria chegar depois e nem
sair antes do coordenador.
Sinceramente achei
que ninguém iria ouvir e talvez tenham imaginado que eu seria o primeiro a não
cumprir o horário, portanto ninguém precisaria se preocupar. O que aconteceu é
que, de um modo geral, quase cem por cento da equipe respeitou o pacto e nunca
foi necessário rediscutir.
Aprender a
delegar foi outra coisa surpreendente em minha vida profissional. Sempre fiz
questão de saber de tudo o tempo todo e os ACS me informavam de tudo, tudo
mesmo, até fofocas pessoais sobre a vida dos outros (coisa que com o tempo
parou, pois não era necessário ser tão tudo).
No início traziam
as situações e esperavam orientações sobre como lidar, como proceder e
solucioná-las e paulatinamente foram empoderando-se de tal forma que passaram a
informar as situações e o como já tinham encaminhado ou resolvido.
Faziam isso não
apenas os ACS, mas a Técnica de Enfermagem, a Nutricionista, a Profissional de
Educação Física, a Coordenadora da UBS, a coordenadora da Vigilância
Epidemiológica e Sanitária, o Secretário de Saúde e todos os outros que se
consideravam parte da equipe.
Tenho certeza que
aprender a delegar foi fácil porque a equipe era muito boa. E o sucesso da
primeira função delegada, ou seja, a Coordenação da UBS (embora na época eu não
soubesse que estava delegando e sim me livrando de uma função que não queria
exercer), determinou os sucessos seguintes.
Com o tempo fui
deixando de ocupar o centro de tudo e, ao contrário do que acontece com muitas
pessoas, não deixei de perceber minha importância na equipe, mesmo parecendo
que tudo começou a andar sozinho. Na época em que fiz a especialização, ficava
uma semana fora, quando voltava, tudo que havíamos planejado tinha sido
executado: reuniões de equipe, ações educativas, monitoramentos, programa de
rádio, atendimento na delegacia, atividade de saúde do trabalhador e tudo que
estivesse agendado para aquela semana.
Talvez seja por
conta desta equipe e desta forma de trabalhar que nunca deixei de acreditar que
o SUS dá certo e é até bem fácil de fazer o que precisa ser feito.
E para você, como
é?
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]