Maria Amélia Mano
Antônio
tem cicatriz atravessada no ventre, história de queda de andaime. Bebe pingado
com pão na chapa de manhã. Fuma os cigarros de palha do pai já morto; só pra se
lembrar dele. Levantou as paredes da própria casa e bateu laje, mesmo com dedo
cortado por navalha de tirar barba. Molhou os pés quando tanque transbordou em
edifício. Lama. Deixou pegadas no salão do condomínio. Engenheiro chamou
atenção na frente de todos. Bebeu cachaça e ficou devendo no bar. Não fez
reboco na casa própria. Nem cerca. Nem jardim. Nem quintal. Gosta de desenhar,
mas não tem motivo. Não sonha mais. Se sente só. Acha que é feliz.
Ana
diz que tem dor no espinhaço. Acerta na textura do arroz com linguiça preferido
do patrão. Usa o mesmo pente que arrumava os cabelos da mãe já morta; só pra se
lembrar dela. Pinta pano de prato pra vender. Capricha pra dar o mesmo tom das
flores lilases caídas no parque. As que vê de dentro do ônibus lotado todas as
manhãs. Era criança, dia de chuva, caiu no caminho de casa e viu caderno de
escola se sujar no barro. Lama. Levou pito da professora na frente de todos.
Passou noite chorando. Mora em quarto de pensão. Gosta de fazer versos, mas não
tem motivo. Sonha com jardim e horta. Se sente só. Acha que é feliz.
Antônio
e Ana esperam algo mágico que salve leite, arroz, feijão, ovo e pó de café
barato do fim do mês. Vale-transporte. Se conheceram no culto. Se olharam no
canto. Se apaixonaram no abraço. Engravidaram no descuido. Se juntaram no
cansaço. Rebocaram casinha juntos. É uma menina. Nome de pai de Antônio e mãe
de Ana. Antônio fez puxadinho, desenhou bailarina na parede e Ana pintou de
lilás. Antônio deixou de fumar. Ana mudou penteado. Antônio voltou a sonhar.
Ana fez jardim e horta no quintal com cerca nova. Antônio juntou cimento,
areia, pedra e água pra calçada de concreto e criar filha sem lama e sem
humilhação. Ana fez poesia.
Agora
sim, Antônio e Ana têm certeza de que são felizes.
Ilustração: Ana Bierman
Texto para a Oficina Santa Sede Mosaico
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