26 janeiro 2020

No parto da Zete aprendi os territórios do cuidado



Estela Márcia Rondina Scandola


Quando o tio Pintado chegou lá em casa ficou no quintal, exatamente antes dos dois degraus de vermelhão de entrada na sala que tinha poço d´água. Minha mãe gritava correndo da cozinha para a sala: nasceu? É o quê? Fala, Rídio!
Corremos todas à porta e ele não pode nem entrar... estava sem mostrar os dentes lindos que tinha. Em meio a tantas perguntas, tirou o chapéu (já era o mais careca da família depois do vovô), segurou pela aba de feltro e bateu como que espantando o pó e disse: rachou de novo!
Paaaaaara, homi! Deixa disso!, O mundo precisa de mulher. Ela vai ser uma boa mulher – Minha mãe raramente se irritava. Mas quando falava devagar e firme comigo, eu quase fazia xixi nas pernas. Percebi que, com o meu tio foi o mesmo, mas ele disfarçou.
Nem querdito! agora são quatro! – o Pintado
E vão ser sempre fortes e saudáveis... as duas grandes já fazem de tudo na casa – Minha mãe – e vamos deixar de conversa que tenho que terminar os biscoitos de pinga e os sequilhos.
Eu sempre gostei mais dos biscoitos de pinga. Eram mais firmes e podiam ser levados soltos no bornal ou em trouxa de pano de prato. Os sequilhos tinham que ser carregados sempre em latas e isso dificultava prá escola. E tinha também que conversávamos sempre que biscoitos de pinga tinham pinga... então, será que já éramos grandes prá tomar pinga? Prá comer pera no vinho? E o manjar de vinho da vó Stein... será estamos tomando bebida de gente grande?
 Só fui gostar de cachaça (não de pinga) após os 40 anos com várias amigas cachaceiras... e sempre lembramos do biscoito de pinga. Passei a provar as de Minas e agora as da Paraíba (são as melhores!)... oh diliça... descobri também que os biscoitos de pinga continuam existindo em tudo quanto é lugar!
Mamãe encheu o bornal (descobri, já na faculdade, que era chique falar embornal... mas isso não dava história... bornal, sim!), pegou a lata areada e brilhante e colocou os sequilhos. Perguntou: E a canjica? E ele respondeu: a mãe fez a canjica.  As meninas cozinharam frango, fizeram o pão e cuidaram da casa. Pintado subiu na bicicleta, fez o tlim-tlim da buzina e se foi carregado.
Volinha veio e disse: deixa tudo aí que eu acabo de passa a roupa. Vai vê se a Tita precisa de arguma coisa. Vô falá pro Dale ir buscar garapa e o Berto depois leva cerveja preta. Feito os acordos, minha mãe guardou o terço que tinha ficado rezando prá Nossa Senhora do Bom Parto durante o dia inteiro. Tinha me colocado prá fazer tarefa e caligrafia enquanto rezava... eu tinha a impressão que se esquecera de mim... qual nada! Eis que virou e disse: Terminou tudo? vai tomá banho rápido, vem aqui prá amarrá o cabelo e depois coloca o conga que você vai comigo.
Respirei fundo ... nem maluca em desobedecer. Quando alguém ganhava neném, todas as mulheres ficavam envolvidas no cuidado e era uma correria danada. As crianças tinham que levar e trazer recados (como pudemos sobreviver sem watsapp?), e sempre falar baixo. Uma cuidava das meninas mais velhas, outra da casa, outra da comida pros da casa e outra com as comidas prás visitas... enfim, mobilização geral. Função do Pintado: obedecer a quase todas as mulheres e fazer o corre prá avisar todo mundo. Bicicletar o tempo todo, indo e vindo na casa prá ver se tinha mais algum serviço a fazer, além de correr o trecho dando as notícias. Já tinha feito isso quando chamou a parteira.
Tia Tita me lembrou, enquanto eu fazia esse texto, que o Rídio (que eu chamava de tio Pintado só prá minha mãe)  tinha máquina de limpar arroz com o vô Primo e que deixava de ir ao trabalho só na precisão... que não era caso de dias no parto. Só um dia e já voltava pro trampo.
Quando chegamos no portão de madeira com tramela já estava aberto. Indo à pé ainda com sol, eu já estava com o conga sujo na parte branca... já vi: nova escovação, novo desencardir... oh vida, só pensava nisso...  podia ter vindo de bicicleta, mas minha mãe carregava uma bolsa grande cheia de lençóis, fronhas brancas e toalhas – algumas simples de algodão e outras com direito a barra de crochê e até ponto cruz. Quando se tem neném troca-se roupa de cama e banho todos os dias na primeira quinzena. Tomara que a Lúcia cuide disso, senão vai sobrar prá mim o leva-e-traz com minha monareta.
Com o entardecer entendemos que seríamos distribuídos em territórios em que não se grita, não se brinca com algazarra, não se canta. Jogar bola, nem pensar! Crianças prum lado – ao todo era só Bitô, Otô, as da casa e eu. As meninas da casa providenciavam o transporte de comida, limonada e notícias. Lúcia e Quéia brincavam menos e trabalhavam mais. Os meninos só brincavam, mas as brincadeiras tinham que ser sem conversê... então o melhor era a rodada de bicicleta e eu que era a menor das crianças, ia em todas. Só tinha uma bicicleta com garupa para todas as duplas que circulavam a quadra e voltavam. A fila organizada pelos meninos que sempre guiavam e a gentes mulheres iam na garupa... Por isso que quando eu estava com minha monareta eu não deixava ninguém guiar...só amigas, kkkkkkkk . Passar anel só as meninas brincavam quando não queriam mais a bicicleta. Menino não entrava na roda. As crianças tinham uma função: não dar trabalho para as mulheres.
Os homens, ah... esses tinham também uma função: entreter uns aos outros, aqueles que acompanhavam suas mulheres logo eram incorporados à roda deles. Meu pai só era acionado prá providenciar a cerveja ou me dar colo... mas logo eu enjoava, não tinha nada legal naquela roda. Era conversa de quem tinha filho homem, filha mulher, quem era forte, quem tinha fraqueza... não entendia nadica disso na época e nem fazia análise sociológica, como diria o Leandro.
 A cerveja forte era a antárctica e todos eles tomavam essa e, no meio dos copos (daqueles do tipo copo sujo) nem sempre gelados, rodava um outro copo,  pequeno e pesado, que se sorvia de uma vez só que era o de pinga. Vô Dale sempre comparecia prá alegrar as rodas... contava piada do tipo Mazzaroppi e todos riam. Eles podiam... Dale, não sei se era o "motorista da vez", mas não entrava na roda da pinga e bebia pouca cerveja. Era comum as crianças o procurarem prá resolver rinhas infantis. Nunca batia, nem dava beliscão, cascudo ou puxão de orelha... Esses três tipos de formas de mostrar que a gente tinha errado era bem democrático conosco...quase todas as crianças eram agraciadas com essas atitudes dos adultos, mesmo que tivéssemos feito algo bem legal... no erro e no acerto, cascudo...
Quando ia ficando depois das 7 ou 8 da noite, todos iam se retirando e eram as mulheres que iam saindo e chamando os homens e as crianças. Sempre ficava uma mulher e eu nunca soube qual o critério. Cuidaria da mulher, da criança nascida, das outras crianças, das trocas de roupas, da sopa prá tia, do charuto perfeito na criança... era muito trabalho messsssmo!
A criança era guardada uma semana no quarto na penumbra prá ir, de pouco a pouco, acostumando-se com o sol. Ainda lembro que as tias lembravam que o Bitô nasceu de olho aberto. Faixa no umbigo depois de limpar o coto com uma toalha lavada e quarada, endireitar as pernas do bebê e fazer o charuto perfeito (na época as mais velhas faziam essa função porque senão era perigoso furar o bebê com os alfinetes). Fazer o charuto também era importante prá criança não se sentir desprotegida, largada no mundo... aos 15 dias, quando começava a afrouxar o rolo feito de cueiro, primeiro soltava os braços, depois relaxava o abdômen e só depois as pernas...
Era como um preparo prá ficar de frente pro mundo. O peito era logo dado e se a criança tivesse alguma dificuldade, colocava mamadeira de leite de vaca com água e às vezes engrossava com maizena (só fui saber que isso era marca de amido de milho quando já estava na faculdade!). O que uma sabia, ensinava prá outra e eu escutava sempre nas rodas de conversas com as mulheres.
Uma vez (acho que a Maria Nonato, acho...) perguntou prá minha mãe: mas Dercy, você deixa a Estelinha escutar tudo? E ela respondeu na minha frente e olhando prá mim (do jeito: aprende que eu tô falando!): Quando nasce mulher temos que colocar prá aprender tudo – de cuidar de tudo e ir até onde a matemática permitir. Não se sabe o que vai precisar na vida (não sei se foi nesses dias da Zete nascendo... só  sei que foi!).
No parto da Zete eu tinha 6 anos... e eu só lembrava da frase do tio Pintado: rachou outra vez! Foi durante os primeiros dias de cuidado com Marina e Laura em casa que o sonho foi liberado e lembrei-me de coisas tão importantes e eram tantos os detalhes que tive que escrever antes das seis da manhã, logo ao primeiro choro no colo do Luca... oh cansaço revigorante!
Transpor todos os territórios que estão pré-desenhados para cada grupo, cada pessoa, cada mundo... Eles, ainda poucos,  realizam os serviços da casa, atendem a companheira, cuidam do umbigo da bebê e limpam o cocô rindo. Mas os territórios ainda estão demarcados. Tomar o mijo é coisa de homens que se juntam em rodas e se acolhem uns aos outros e falam dos fortes e dos fracos, mas já há discordância entre eles... todas as comidas ainda são providenciadas pelas mulheres, sendo os únicos homens, os padeiros em que compramos prontas as delícias...
Os territórios estão em rompimento, mas ainda muiiiiiiiito lentamente. Há que se acelerar e será, entre tudo o que fazemos, por nossos cantos... e, se a minha cuidadora estivesse fisicamente aqui cantarolaria sentada em cadeiras de fio olhando o sol descer.


Estela Márcia Rondina Scandola

9 comentários:

  1. Que texto rico, que bela forma de resgatar lembranças e costumes que marcam nossas vidas, especialmente das mulheres. Parabéns Estela!

    ResponderExcluir
  2. Texto maravilhoso! Parabéns professora Estela.

    ResponderExcluir
  3. Respostas
    1. que bom que proporciono esses sentimentos... fico felizinha. Ainda mais porque vou tirando essas coisas todas de mim!

      Excluir
  4. Lindeza de texto!!Quanta história e emoção num vai e vem do tempo!

    ResponderExcluir
  5. Que delicia de leitura. Obrigada por compartilhar seu olhar sobre o mundo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tavo pensando aqui se não era isso já uma percepção de gênero que fui desenvolvendo... vai sabê!

      Excluir
  6. Parabéns Estela tudo de bom .

    ResponderExcluir

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog