Estela Márcia Rondina Scandola
Quando o tio Pintado chegou lá em casa ficou no quintal,
exatamente antes dos dois degraus de vermelhão de entrada na sala que tinha
poço d´água. Minha mãe gritava correndo da cozinha para a sala: nasceu? É o
quê? Fala, Rídio!
Corremos todas à porta e ele não pode nem entrar... estava sem
mostrar os dentes lindos que tinha. Em meio a tantas perguntas, tirou o chapéu
(já era o mais careca da família depois do vovô), segurou pela aba de feltro e
bateu como que espantando o pó e disse: rachou de novo!
Paaaaaara, homi! Deixa disso!, O mundo precisa de mulher. Ela vai
ser uma boa mulher – Minha mãe raramente se irritava. Mas quando falava devagar
e firme comigo, eu quase fazia xixi nas pernas. Percebi que, com o meu tio foi
o mesmo, mas ele disfarçou.
Nem querdito! agora são quatro! – o Pintado
E vão ser sempre fortes e saudáveis... as duas grandes já fazem de
tudo na casa – Minha mãe – e vamos deixar de conversa que tenho que terminar os
biscoitos de pinga e os sequilhos.
Eu sempre gostei mais dos biscoitos de pinga. Eram mais firmes e
podiam ser levados soltos no bornal ou em trouxa de pano de prato. Os sequilhos
tinham que ser carregados sempre em latas e isso dificultava prá escola. E
tinha também que conversávamos sempre que biscoitos de pinga tinham pinga... então,
será que já éramos grandes prá tomar pinga? Prá comer pera no vinho? E o manjar
de vinho da vó Stein... será estamos tomando bebida de gente grande?
Só fui gostar de cachaça (não de pinga) após os 40 anos com
várias amigas cachaceiras... e sempre lembramos do biscoito de pinga. Passei a
provar as de Minas e agora as da Paraíba (são as melhores!)... oh diliça...
descobri também que os biscoitos de pinga continuam existindo em tudo quanto é
lugar!
Mamãe encheu o bornal (descobri, já na faculdade, que era chique
falar embornal... mas isso não dava história... bornal, sim!), pegou a lata
areada e brilhante e colocou os sequilhos. Perguntou: E a canjica? E ele
respondeu: a mãe fez a canjica. As meninas cozinharam frango,
fizeram o pão e cuidaram da casa. Pintado subiu na bicicleta, fez o tlim-tlim
da buzina e se foi carregado.
Volinha veio e disse: deixa tudo aí que eu acabo de passa a roupa.
Vai vê se a Tita precisa de arguma coisa. Vô falá pro Dale ir buscar garapa e o
Berto depois leva cerveja preta. Feito os acordos, minha mãe guardou o terço
que tinha ficado rezando prá Nossa Senhora do Bom Parto durante o dia inteiro.
Tinha me colocado prá fazer tarefa e caligrafia enquanto rezava... eu tinha a
impressão que se esquecera de mim... qual nada! Eis que virou e disse: Terminou
tudo? vai tomá banho rápido, vem aqui prá amarrá o cabelo e depois coloca o
conga que você vai comigo.
Respirei fundo ... nem maluca em desobedecer. Quando alguém
ganhava neném, todas as mulheres ficavam envolvidas no cuidado e era uma
correria danada. As crianças tinham que levar e trazer recados (como pudemos
sobreviver sem watsapp?), e sempre falar baixo. Uma cuidava das meninas mais
velhas, outra da casa, outra da comida pros da casa e outra com as comidas prás
visitas... enfim, mobilização geral. Função do Pintado: obedecer a quase todas
as mulheres e fazer o corre prá avisar todo mundo. Bicicletar o tempo todo,
indo e vindo na casa prá ver se tinha mais algum serviço a fazer, além de
correr o trecho dando as notícias. Já tinha feito isso quando chamou a
parteira.
Tia Tita me lembrou, enquanto eu fazia esse texto, que o Rídio
(que eu chamava de tio Pintado só prá minha mãe) tinha máquina de
limpar arroz com o vô Primo e que deixava de ir ao trabalho só na precisão...
que não era caso de dias no parto. Só um dia e já voltava pro trampo.
Quando chegamos no portão de madeira com tramela já estava aberto.
Indo à pé ainda com sol, eu já estava com o conga sujo na parte branca... já
vi: nova escovação, novo desencardir... oh vida, só pensava
nisso... podia ter vindo de bicicleta, mas minha mãe carregava uma
bolsa grande cheia de lençóis, fronhas brancas e toalhas – algumas simples de
algodão e outras com direito a barra de crochê e até ponto cruz. Quando se tem
neném troca-se roupa de cama e banho todos os dias na primeira quinzena. Tomara
que a Lúcia cuide disso, senão vai sobrar prá mim o leva-e-traz com minha
monareta.
Com o entardecer entendemos que seríamos distribuídos em
territórios em que não se grita, não se brinca com algazarra, não se canta.
Jogar bola, nem pensar! Crianças prum lado – ao todo era só Bitô, Otô, as da
casa e eu. As meninas da casa providenciavam o transporte de comida, limonada e
notícias. Lúcia e Quéia brincavam menos e trabalhavam mais. Os meninos só
brincavam, mas as brincadeiras tinham que ser sem conversê... então o melhor
era a rodada de bicicleta e eu que era a menor das crianças, ia em todas. Só
tinha uma bicicleta com garupa para todas as duplas que circulavam a quadra e
voltavam. A fila organizada pelos meninos que sempre guiavam e a gentes
mulheres iam na garupa... Por isso que quando eu estava com minha monareta eu
não deixava ninguém guiar...só amigas, kkkkkkkk . Passar anel só as meninas
brincavam quando não queriam mais a bicicleta. Menino não entrava na roda. As
crianças tinham uma função: não dar trabalho para as mulheres.
Os homens, ah... esses tinham também uma função: entreter uns aos
outros, aqueles que acompanhavam suas mulheres logo eram incorporados à roda
deles. Meu pai só era acionado prá providenciar a cerveja ou me dar colo... mas
logo eu enjoava, não tinha nada legal naquela roda. Era conversa de quem tinha
filho homem, filha mulher, quem era forte, quem tinha fraqueza... não entendia
nadica disso na época e nem fazia análise sociológica, como diria o Leandro.
A cerveja forte era a antárctica e todos eles tomavam essa
e, no meio dos copos (daqueles do tipo copo sujo) nem sempre gelados, rodava um
outro copo, pequeno e pesado, que se sorvia de uma vez só que era o
de pinga. Vô Dale sempre comparecia prá alegrar as rodas... contava piada do
tipo Mazzaroppi e todos riam. Eles podiam... Dale, não sei se era o
"motorista da vez", mas não entrava na roda da pinga e bebia pouca
cerveja. Era comum as crianças o procurarem prá resolver rinhas infantis. Nunca
batia, nem dava beliscão, cascudo ou puxão de orelha... Esses três tipos de
formas de mostrar que a gente tinha errado era bem democrático conosco...quase
todas as crianças eram agraciadas com essas atitudes dos adultos, mesmo que
tivéssemos feito algo bem legal... no erro e no acerto, cascudo...
Quando ia ficando depois das 7 ou 8 da noite, todos iam se
retirando e eram as mulheres que iam saindo e chamando os homens e as crianças.
Sempre ficava uma mulher e eu nunca soube qual o critério. Cuidaria da mulher,
da criança nascida, das outras crianças, das trocas de roupas, da sopa prá tia,
do charuto perfeito na criança... era muito trabalho messsssmo!
A criança era guardada uma semana no quarto na penumbra prá ir, de
pouco a pouco, acostumando-se com o sol. Ainda lembro que as tias lembravam que
o Bitô nasceu de olho aberto. Faixa no umbigo depois de limpar o coto com uma
toalha lavada e quarada, endireitar as pernas do bebê e fazer o charuto
perfeito (na época as mais velhas faziam essa função porque senão era perigoso
furar o bebê com os alfinetes). Fazer o charuto também era importante prá
criança não se sentir desprotegida, largada no mundo... aos 15 dias, quando
começava a afrouxar o rolo feito de cueiro, primeiro soltava os braços, depois relaxava
o abdômen e só depois as pernas...
Era como um preparo prá ficar de frente pro mundo. O peito era
logo dado e se a criança tivesse alguma dificuldade, colocava mamadeira de
leite de vaca com água e às vezes engrossava com maizena (só fui saber que isso
era marca de amido de milho quando já estava na faculdade!). O que uma sabia,
ensinava prá outra e eu escutava sempre nas rodas de conversas com as mulheres.
Uma vez (acho que a Maria Nonato, acho...) perguntou prá minha
mãe: mas Dercy, você deixa a Estelinha escutar tudo? E ela respondeu na minha
frente e olhando prá mim (do jeito: aprende que eu tô falando!): Quando nasce
mulher temos que colocar prá aprender tudo – de cuidar de tudo e ir até onde a
matemática permitir. Não se sabe o que vai precisar na vida (não sei se foi
nesses dias da Zete nascendo... só sei que foi!).
No parto da Zete eu tinha 6 anos... e eu só lembrava da frase do
tio Pintado: rachou outra vez! Foi durante os primeiros dias de cuidado com
Marina e Laura em casa que o sonho foi liberado e lembrei-me de coisas tão
importantes e eram tantos os detalhes que tive que escrever antes das seis da
manhã, logo ao primeiro choro no colo do Luca... oh cansaço revigorante!
Transpor todos os territórios que estão pré-desenhados para cada
grupo, cada pessoa, cada mundo... Eles, ainda poucos, realizam os
serviços da casa, atendem a companheira, cuidam do umbigo da bebê e limpam o
cocô rindo. Mas os territórios ainda estão demarcados. Tomar o mijo é coisa de
homens que se juntam em rodas e se acolhem uns aos outros e falam dos fortes e
dos fracos, mas já há discordância entre eles... todas as comidas ainda são
providenciadas pelas mulheres, sendo os únicos homens, os padeiros em que
compramos prontas as delícias...
Os territórios estão em rompimento, mas ainda muiiiiiiiito
lentamente. Há que se acelerar e será, entre tudo o que fazemos, por nossos
cantos... e, se a minha cuidadora estivesse fisicamente aqui cantarolaria
sentada em cadeiras de fio olhando o sol descer.
Estela Márcia Rondina Scandola
Que texto rico, que bela forma de resgatar lembranças e costumes que marcam nossas vidas, especialmente das mulheres. Parabéns Estela!
ResponderExcluirBrigadu
ExcluirTexto maravilhoso! Parabéns professora Estela.
ResponderExcluirDelicia de ler!
ResponderExcluirque bom que proporciono esses sentimentos... fico felizinha. Ainda mais porque vou tirando essas coisas todas de mim!
ExcluirLindeza de texto!!Quanta história e emoção num vai e vem do tempo!
ResponderExcluirQue delicia de leitura. Obrigada por compartilhar seu olhar sobre o mundo.
ResponderExcluirTavo pensando aqui se não era isso já uma percepção de gênero que fui desenvolvendo... vai sabê!
ExcluirParabéns Estela tudo de bom .
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