Esses dias Engrácia fez 90 anos.
Piquininha, não está emborcando. Acho que sempre foi assim, destemida grande em
corpo pequeno. E forte. Casada aos 13 anos com um homem de quarenta, foi
pegando criança prá criar. Cada um que precisava ia ficando com ela. Até que depois
de mais de 20 anos de casada embarrigou. Veio Francisco. Tinha pedido demais ao
santo e quando chegou e logo lhe consagrou. O menino ficou chamando também das
Chagas... nome comprido com sobrenome e tudo.
O menino andou pelos mundos
brasileiros e da latino américa. Acreditava que podia mudar o mundo prá todos
enquanto andava por aí. Ia ver a mãe pelo menos uma vez por ano. Até o dia que
assentou ali no Santa Mônica. Engrácia passou a vir no sítio. Nunca quis se
mudar com o filho... não gostava do calor e também não tinha seu peixe de todos
os dias. Aqui era muita carne de vaca, pouco peixe. Mas tinha um detalhe importante:
tinha pouco movimento no sítio... lá no Maranhão, quando tem pouco, tem 10
pessoas passando pela casa todos os dias.
Na comemoração do aniversário foi pro
Igarapé pegar traíra. Tinha carne e gosto bom. Só um cadinho de sal e tudo já
vai bem com um arroz branquinho e farinha.
Numa tarde de sábado, enquanto quietas
nas redes, quando só se escutava a música do ranger dos punhos da rede era a
música, puxei a conversa sobre o trabalho no sítio. Chico tinha ido no
gelabunda com a gurizada. Era uma conversa meio sem jeito... depois fui ligando
tudo com a sabedoria necessária.
- Francisco não pode mais fica aqui
não... não tem mais condições.
- Mas ele gosta daqui. Como vai viver
em outro lugar?
- Não pode mais viver do trabalho na roça.
- A senhora acha? Ele tá novo... vai
agora fazer 50.
- Homi de 50 anos não tem mais nervo
prá trabalhar na terra. Já gastou o músculo bom, a coluna não aguenta mais.
- É, ele está cheio das dores na
coluna.
- Trabalho na roça é coisa prá gente
mais nova.
Pensei se eu falava de tudo que tinha
aprendido sobre saúde do trabalhador, dos cortadores de cana que só tem 12 ou
13 anos de vida útil, da LER, da diferença entre agricultura familiar e
trabalho de empregado... parecia que eu queria falar de tudo o estudado e o
vivido, mas calei. Lembrei dos
movimentos que trabalhei nas capacitações da CUT, da Escola Centro-Oeste, na
Escola de Saúde Pública, lembrava dos conteúdos, das gentes... calei. Ali,
livros e livros tinham pouco lugar. A Engrácia era um livrão imenso. Melhor ler
esse aqui, atualizado.
Mas lembrei também das licenças saúde
que o Francisco já tinha tirado desde que veio pro assentamento, das 10 de
sessões de fisioterapia que não resolviam suas dores... Vixe, será que ele
tinha ficado incapaz? Mas a p... do INSS vai indeferir isso... e o tal do fator
95 para aposentar?
- Mas se ele ficar aqui, como é que
vai fazer?
- Vai ter que arrumar mulher prá
casar... e ter as crianças.
- Valha-me! Acho que não vai rolar,
não. Pode ser que arrume mulher, mas filhos acho que já teve os três. Não vai
querer mais...
Eu comecei a rir alto por dentro e
baixo por fora. Quando as “crianças” foram prá cidade, meu amigo havia sofrido
tanto que não sei se ia querer outras crianças ali... mas também... ele iria
querer isso? O Manu chama o sítio de paraíso... a Danda e a Maíra não sei o que
pensam... mas de vez em quando dão presença... acho que não vai rolar... eu que
acho.
- Roça sem criança prá ajudar não dá
certo. É catar o ovo, dar milho prás galinhas, fechar uma torneira, buscar o
quiabo pro almoço... é muita coisa prá fazer que se não tem criança não dá
conta de ficar no sítio.
Lembrei grande quando meu amigo
estourou as veias e músculos num buraco do sítio... só podia ficar com as
pernas prá cima. O mato quase tomou conta do quiabo, em volta da casa não se
carpiu mais nada... mas era o Manu que abria e fechava o registro da água,
fazia a comida, varria a casa e corria de um lado para o outro levando e
trazendo recado.
Ai, minhas deusas... e o que faço com
todas as minhas discussões sobre trabalho infantil? E o povo do PETI,
CONAPETI... ? como é que se vai prescindir das crianças e suas
responsabilidades no sítio? É possível agricultura “familiar” com qual família?
Quantas pessoas na família e de que idade precisam ser para que a agricultura
familiar exista?
Essa Engrácia me desconcertava (e
desconsertava). Muito lúcida, de frases curtas e que entravam no meu cérebro e
atacava minhas ideias prontas... Com quem conversar desses (des)aprendizados
que caminhavam pelo meu cérebro em forma de minhoca na terra? Eu sempre canto
que sou a metamorfose ambulante junto com o Raulzito... mas daí pensar o ser
criança no sítio da agricultura familiar exige mais que pensar... é des-pensar,
des-falar... ainnnnnn
Socorro!!!! Com quem vou conversar
disso?... minhas deusas me salvem... e agora, nas Conferências da Criança, o
que tenho prá falar e elaborar propostas?
- Mas... oh Engrácia, se as crianças
trabalham desse jeito vão ficar sem tempo prá ir na escola... e aí?
- vai ter que ver, né? Sítio dá muito
trabalho... é uma coisinha aqui, outra coisinha ali... não falo de capinar
muito... mas aguar as plantas, cuidar das mudas, da horta, mexer um doce, catar
um limão... tudo dá prá criança fazer... vai prá escola, volta e fazendo umas
coisas...
Ela própria já tinha pensado nisso...
acho que tinha adivinhado os pensamentos... mas o tal do trabalho infantil era
mais complexo ainda. Eu tinha que ficar atenta senão eu era só uma urbanóide
pensando o rural.
Lembrei do Tatuí, da família do tio
Artino e seus quatro filhos. Tia Tereza e a produção de linguiça, a varreção do
quintal imenso que a Nelira fazia, a lavação de roupa... plantar arroz no
varjão, Nivaldo e Nenê que faziam... feijão, mandioca pouca...e muito milho. Preciso
conversar de novo com minhas lembranças. Lembrei da surra que minha mãe e a tia
Idê levaram porque enquanto carregavam banha pro sítio vizinho, se perderam na
brincadeira e não cuidaram do caldeirão... ficaram as duas cheias de banha na
roupa e no corpo e apanharam porque perderam o produto e ainda o vestido
impossível de limpar. Pronto! Vou ter que relembrar as histórias...
Quando me lembro dos sítios da minha
infância é sempre tudo prazeroso... Até o trabalho era uma aventura. Mas eu era
da cidade... o sítio era a quebra da rotina... quando fiz bolha na mão de
varrer o quintal no tatuí, doeu prá casseta, mas foi uma vez... não houveram
mais calos. Só aquela bolha ali e pronto!
A rede no Marangatu ficava nos mourões
da varanda... vi o cheiro da chuva chegando... senti o beija-flor no chapéu
chinês... olhei longe na história e pertinho do coração. Fico sempre emocionada
quando minhas lembranças encontram o presente. As flores sempre fazem isso
comigo. Nossos quintais sempre foram floridos. O brinco de princesa lembrava
meu brincar com a Ana Constâncio pendurando as flores na orelha...
Eu queria mesmo era ser poeta, poeta
do cotidiano, poeta dos flashes de felicidade ou de nostalgia... ou das duas
coisas... Fico sempre pensando, quando me sinto assim que queria ter convivido
com o João do Vale. Quem sabe ele me ensinasse a fazer as trovas e depois cantá-las.
Não há música dele que eu não tenha vontade de dançar, chorar, rir e seguir poetando...
ah se eu fosse poeta...
- Oh Engrácia, você gosta de dançar?
- Às vezes é bom.
E parou... será que ela dança ou não? Será
que dançou quando foi casada aos 13 prá 14 anos? “O amor é bandoleiro e todo
mundo quer cheirar”, lá na música com o Luiz Vieira que depois vi que foi feita
com o cara o Carcará... sempre poetando esses dois... pode ter sido a música
das danças da novice da Engrácia...
- Mas oh, Engrácia, pode ser que
crianças não tenha mais na vida do Chico, né.. agora casar é uma, né? Tem
tantas mulheres que gostariam do Chico como companheiro... ele é unanimidade
(ri muito lembrando das apaixonadas pelo Chico... as declaradas e as
disfarçadas!) Esse meu irmão é querido demais.
- Mas tem mulher que não gosta da lida
do sítio. Se gostar do Chico e do sítio já vai ser bom.
Pah! Outra porrada que vou pensar de
novo... tem muitas mulheres que gostam do sítio de forma romântica... as
flores, as frutas, a rede... mas ... e as roupas encardidas, o quintal prá
varrer, a comida grande prá fazer? Vixe... vou pensar depois...
- Ele precisa de mais gente perto.
- Mas você podia ficar aqui... ele ia
gostar da mãe sempre junto.
- Eu não sirvo mais prá muita coisa.
Ele precisa de uma mulher prá dividir a lida, fazer um doce, um queijo, um
bolo...
- Melhor o Chico fazer... daquelas que
conheço... sei não... vão ficar na rede igual eu...
- Aí é com ele, né?
Ficamos rindo as duas e lembrei da
solidão no sítio. O trabalho no plantio, no cuidado das plantações... Na
colheita até que tinha gente, mas no dia-a-dia é sozinho mesmo.
- Precisa ter alguém prá conversar,
trocar uma ideia. Homem não pode ficar sozinho. Vai ficando duro. Depois não
vai mais querer uma mulher prá casar. Ou então vai ficando triste.
Os olhos de Engrácia sempre foram um mistério prá mim... penso que eu não tenho a sensibilidade necessária para conseguir compreender a profundidade deles. Vai ver que é a coisa que a música vai falando: muita gente desconhece... muita gente desconhece...
Meu livro chamado Sabedoria Engrácia
foi fazer seu arroz com peixe e me deixou com as ideias... De fato, sabedoria é
coisa prá gente pouca!
A aranha tece
puxando o fio da teia
A ciência da abeia, da aranha e a minha
Muita gente desconhece
Muita gente desconhece, olará, viu?
Muita gente desconhece
Estela
Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua
Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.
Muito bom!
ResponderExcluirEngrácia adorou... eita que isso é bão!
Excluir