20 setembro 2020

DA SABEDORIA DE ENGRÁCIA



Esses dias Engrácia fez 90 anos. Piquininha, não está emborcando. Acho que sempre foi assim, destemida grande em corpo pequeno. E forte. Casada aos 13 anos com um homem de quarenta, foi pegando criança prá criar. Cada um que precisava ia ficando com ela. Até que depois de mais de 20 anos de casada embarrigou. Veio Francisco. Tinha pedido demais ao santo e quando chegou e logo lhe consagrou. O menino ficou chamando também das Chagas... nome comprido com sobrenome e tudo.

O menino andou pelos mundos brasileiros e da latino américa. Acreditava que podia mudar o mundo prá todos enquanto andava por aí. Ia ver a mãe pelo menos uma vez por ano. Até o dia que assentou ali no Santa Mônica. Engrácia passou a vir no sítio. Nunca quis se mudar com o filho... não gostava do calor e também não tinha seu peixe de todos os dias. Aqui era muita carne de vaca, pouco peixe. Mas tinha um detalhe importante: tinha pouco movimento no sítio... lá no Maranhão, quando tem pouco, tem 10 pessoas passando pela casa todos os dias.

Na comemoração do aniversário foi pro Igarapé pegar traíra. Tinha carne e gosto bom. Só um cadinho de sal e tudo já vai bem com um arroz branquinho e farinha.

Numa tarde de sábado, enquanto quietas nas redes, quando só se escutava a música do ranger dos punhos da rede era a música, puxei a conversa sobre o trabalho no sítio. Chico tinha ido no gelabunda com a gurizada. Era uma conversa meio sem jeito... depois fui ligando tudo com a sabedoria necessária.

- Francisco não pode mais fica aqui não... não tem mais condições.

- Mas ele gosta daqui. Como vai viver em outro lugar?

- Não pode mais viver do trabalho na roça.

- A senhora acha? Ele tá novo... vai agora fazer 50.

- Homi de 50 anos não tem mais nervo prá trabalhar na terra. Já gastou o músculo bom, a coluna não aguenta mais.

- É, ele está cheio das dores na coluna.

- Trabalho na roça é coisa prá gente mais nova.

Pensei se eu falava de tudo que tinha aprendido sobre saúde do trabalhador, dos cortadores de cana que só tem 12 ou 13 anos de vida útil, da LER, da diferença entre agricultura familiar e trabalho de empregado... parecia que eu queria falar de tudo o estudado e o vivido, mas calei.  Lembrei dos movimentos que trabalhei nas capacitações da CUT, da Escola Centro-Oeste, na Escola de Saúde Pública, lembrava dos conteúdos, das gentes... calei. Ali, livros e livros tinham pouco lugar. A Engrácia era um livrão imenso. Melhor ler esse aqui, atualizado.

Mas lembrei também das licenças saúde que o Francisco já tinha tirado desde que veio pro assentamento, das 10 de sessões de fisioterapia que não resolviam suas dores... Vixe, será que ele tinha ficado incapaz? Mas a p... do INSS vai indeferir isso... e o tal do fator 95 para aposentar?

- Mas se ele ficar aqui, como é que vai fazer?

- Vai ter que arrumar mulher prá casar... e ter as crianças.

- Valha-me! Acho que não vai rolar, não. Pode ser que arrume mulher, mas filhos acho que já teve os três. Não vai querer mais...

Eu comecei a rir alto por dentro e baixo por fora. Quando as “crianças” foram prá cidade, meu amigo havia sofrido tanto que não sei se ia querer outras crianças ali... mas também... ele iria querer isso? O Manu chama o sítio de paraíso... a Danda e a Maíra não sei o que pensam... mas de vez em quando dão presença... acho que não vai rolar... eu que acho.

- Roça sem criança prá ajudar não dá certo. É catar o ovo, dar milho prás galinhas, fechar uma torneira, buscar o quiabo pro almoço... é muita coisa prá fazer que se não tem criança não dá conta de ficar no sítio.

Lembrei grande quando meu amigo estourou as veias e músculos num buraco do sítio... só podia ficar com as pernas prá cima. O mato quase tomou conta do quiabo, em volta da casa não se carpiu mais nada... mas era o Manu que abria e fechava o registro da água, fazia a comida, varria a casa e corria de um lado para o outro levando e trazendo recado.

Ai, minhas deusas... e o que faço com todas as minhas discussões sobre trabalho infantil? E o povo do PETI, CONAPETI... ? como é que se vai prescindir das crianças e suas responsabilidades no sítio? É possível agricultura “familiar” com qual família? Quantas pessoas na família e de que idade precisam ser para que a agricultura familiar exista?

Essa Engrácia me desconcertava (e desconsertava). Muito lúcida, de frases curtas e que entravam no meu cérebro e atacava minhas ideias prontas... Com quem conversar desses (des)aprendizados que caminhavam pelo meu cérebro em forma de minhoca na terra? Eu sempre canto que sou a metamorfose ambulante junto com o Raulzito... mas daí pensar o ser criança no sítio da agricultura familiar exige mais que pensar... é des-pensar, des-falar... ainnnnnn

Socorro!!!! Com quem vou conversar disso?... minhas deusas me salvem... e agora, nas Conferências da Criança, o que tenho prá falar e elaborar propostas?

- Mas... oh Engrácia, se as crianças trabalham desse jeito vão ficar sem tempo prá ir na escola... e aí?

- vai ter que ver, né? Sítio dá muito trabalho... é uma coisinha aqui, outra coisinha ali... não falo de capinar muito... mas aguar as plantas, cuidar das mudas, da horta, mexer um doce, catar um limão... tudo dá prá criança fazer... vai prá escola, volta e fazendo umas coisas...

Ela própria já tinha pensado nisso... acho que tinha adivinhado os pensamentos... mas o tal do trabalho infantil era mais complexo ainda. Eu tinha que ficar atenta senão eu era só uma urbanóide pensando o rural.

Lembrei do Tatuí, da família do tio Artino e seus quatro filhos. Tia Tereza e a produção de linguiça, a varreção do quintal imenso que a Nelira fazia, a lavação de roupa... plantar arroz no varjão, Nivaldo e Nenê que faziam... feijão, mandioca pouca...e muito milho. Preciso conversar de novo com minhas lembranças. Lembrei da surra que minha mãe e a tia Idê levaram porque enquanto carregavam banha pro sítio vizinho, se perderam na brincadeira e não cuidaram do caldeirão... ficaram as duas cheias de banha na roupa e no corpo e apanharam porque perderam o produto e ainda o vestido impossível de limpar. Pronto! Vou ter que relembrar as histórias...

Quando me lembro dos sítios da minha infância é sempre tudo prazeroso... Até o trabalho era uma aventura. Mas eu era da cidade... o sítio era a quebra da rotina... quando fiz bolha na mão de varrer o quintal no tatuí, doeu prá casseta, mas foi uma vez... não houveram mais calos. Só aquela bolha ali e pronto!

A rede no Marangatu ficava nos mourões da varanda... vi o cheiro da chuva chegando... senti o beija-flor no chapéu chinês... olhei longe na história e pertinho do coração. Fico sempre emocionada quando minhas lembranças encontram o presente. As flores sempre fazem isso comigo. Nossos quintais sempre foram floridos. O brinco de princesa lembrava meu brincar com a Ana Constâncio pendurando as flores na orelha...

Eu queria mesmo era ser poeta, poeta do cotidiano, poeta dos flashes de felicidade ou de nostalgia... ou das duas coisas... Fico sempre pensando, quando me sinto assim que queria ter convivido com o João do Vale. Quem sabe ele me ensinasse a fazer as trovas e depois cantá-las. Não há música dele que eu não tenha vontade de dançar, chorar, rir e seguir poetando... ah se eu fosse poeta...

- Oh Engrácia, você gosta de dançar?

- Às vezes é bom.

E parou... será que ela dança ou não? Será que dançou quando foi casada aos 13 prá 14 anos? “O amor é bandoleiro e todo mundo quer cheirar”, lá na música com o Luiz Vieira que depois vi que foi feita com o cara o Carcará... sempre poetando esses dois... pode ter sido a música das danças da novice da Engrácia...

- Mas oh, Engrácia, pode ser que crianças não tenha mais na vida do Chico, né.. agora casar é uma, né? Tem tantas mulheres que gostariam do Chico como companheiro... ele é unanimidade (ri muito lembrando das apaixonadas pelo Chico... as declaradas e as disfarçadas!) Esse meu irmão é querido demais.

- Mas tem mulher que não gosta da lida do sítio. Se gostar do Chico e do sítio já vai ser bom.

Pah! Outra porrada que vou pensar de novo... tem muitas mulheres que gostam do sítio de forma romântica... as flores, as frutas, a rede... mas ... e as roupas encardidas, o quintal prá varrer, a comida grande prá fazer? Vixe... vou pensar depois...

- Ele precisa de mais gente perto.

- Mas você podia ficar aqui... ele ia gostar da mãe sempre junto.

- Eu não sirvo mais prá muita coisa. Ele precisa de uma mulher prá dividir a lida, fazer um doce, um queijo, um bolo...

- Melhor o Chico fazer... daquelas que conheço... sei não... vão ficar na rede igual eu...

- Aí é com ele, né?

Ficamos rindo as duas e lembrei da solidão no sítio. O trabalho no plantio, no cuidado das plantações... Na colheita até que tinha gente, mas no dia-a-dia é sozinho mesmo.

- Precisa ter alguém prá conversar, trocar uma ideia. Homem não pode ficar sozinho. Vai ficando duro. Depois não vai mais querer uma mulher prá casar. Ou então vai ficando triste.

Os olhos de Engrácia sempre foram um mistério prá mim... penso que eu não tenho a sensibilidade necessária para conseguir compreender a profundidade deles. Vai ver que é a coisa que a música vai falando: muita gente desconhece... muita gente desconhece...


Meu livro chamado Sabedoria Engrácia foi fazer seu arroz com peixe e me deixou com as ideias... De fato, sabedoria é coisa prá gente pouca!

A aranha tece puxando o fio da teia
A ciência da abeia, da aranha e a minha

Muita gente desconhece
Muita gente desconhece, olará, viu?
Muita gente desconhece

Estela Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.

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